Ricardo Prado Pires de Campos.

Era noite, quase dez horas, eu estava num shopping jantando sozinho, após um dia de trabalho, quando fui abordado por dois garotos. O menor olhou para mim e disse: Tio, paga um lanche? Ele e seu companheiro deveriam ter algo entre 8 e 12 anos de idade, não mais que isso. Respondi que pagava e pedi ao garçom para trazer outro sanduiche, enquanto esperava. Tentei imaginar o que dois garotos, daquela idade, estavam fazendo na rua naquele horário. Meus filhos, nessa idade, seguramente, estariam em casa ou com alguém responsável.

Na rápida conversa que tivemos até que chegasse o lanche, não me contive e perguntei de onde eram e o porquê não estavam com o pai (presumi que fossem irmãos, embora não tenha segurança disso)? O mais jovem e único a falar respondeu que a mãe tinha saído de manhã para trabalhar e eles estavam sem ter o que comer, então, saíram para andar em busca de comida. Estavam longe do local de moradia, um bairro localizado na periferia da Capital.

Quando ouvi  a resposta, entendi a impropriedade da pergunta. Não havia pai, somente mãe na casa e ela tinha que sair para trabalhar, então, as crianças permaneciam sozinhas, e nada as impedia de saírem para explorar a cidade, com todos os riscos inerentes a essa atividade.

Nesses tempos de efervescência do conservadorismo, tenho ouvido reiteradas vezes, que as pessoas são responsáveis por seu destino, que ajudar os outros é estimular a vagabundagem. Li, numa rede social, a afirmação de um influenciador que: “Se alguém estava comendo o pão sem trabalhar, um outro trabalhador estava ficando sem ter o que comer”. Parece simples, mas está errado. Muitos produzem mais do que consomem, mas, também, há quem não consiga produzir o necessário.

A discussão sobre a PEC da transição, a qual visa obter recursos para bancar o auxílio Brasil ou Bolsa Família em 2023, tem trazido à baila essa mesma questão.

Li, num importante periódico, o argumento de alguém do mercado financeiro de que a Argentina e a Venezuela haviam optado por resolver o problema social antes de resolver o problema fiscal e, por essa razão, estariam com sérias dificuldades financeiras e sociais. Ou seja, para o entrevistado, a solução do problema financeiro do Brasil, seu déficit orçamentário, tem de ser resolvido antes da questão social da fome.

Primeiro, as finanças, depois, a vida; ou primeiro, a economia, depois, a saúde. Ouvimos isso durante a pandemia, com resultados trágicos. Como se fosse possível haver finanças ou economia, onde não há vida.

Causa perplexidade que muitas pessoas não se deem conta do sofrimento alheio. Reconheço que o dinheiro nem sempre é elástico e permite fazermos todos os gastos que gostaríamos, mas no que tange à sociedade brasileira combater e erradicar a fome é um falso problema.

O Brasil possui produção de alimentos muito maior do que o consumo da população nacional, tanto que exportamos para boa parte do mundo[i]. É verdade, as exportações são importantes porque geram dólares e isso nos permite importar grande quantidade de produtos que não produzimos apenas com insumos nacionais (como chips e outros equipamentos utilizados em celulares ou veículos, dentre muitas outras coisas, também relevantes).

Não devemos impedir a exportação, como algumas vezes fez a Argentina com a carne, para baratear o preço para a população local. Esse mecanismo é artificial e causa outras deformações no mercado. A produção de carne argentina caiu nesses períodos. O problema permite outra solução, como a que foi adotada durante a pandemia, tanto pelo governo brasileiro, como o governo norte-americano e muitos outros. Basta colocar dinheiro nas mãos da população que ela adquire os bens de que necessita, e isso não atrapalha as empresas, nem a produção. Ao contrário, na medida que estimula o consumo, isso é ótimo para as empresas e para a economia.

O subproduto nefasto dessa prática pode ser a inflação. Mas nem sempre ela se apresenta apenas pela injeção de mais dinheiro na economia, especialmente se houver aumento de produção.

O que nos parece absolutamente indiscutível é que os brasileiros não precisam passar fome,  pois, não temos falta de comida. Temos alimentos em excesso, produzimos muito mais do que consumimos. O que faz com que parte da população passe fome é a falta de dinheiro.

A pergunta que se coloca, então, é: Devemos dar dinheiro para as pessoas que estão passando fome no Brasil?

Muitas pessoas acreditam que sim; mas parte considerável acredita que não, pois, isso vai estimular a vagabundagem. Dizem: “Se eu preciso trabalhar para comer, como meu vizinho pode comer sem trabalhar? Isso é injusto”.

Primeiro, as pessoas não trabalham apenas para conseguir dinheiro para comer; mas também, para adquirir roupas, moradia, transporte, acesso à saúde e a educação, e uma série de outros itens, inclusive lazer, viagens e muito mais. Portanto, trabalhar continuará sendo necessário para a melhoria das demais condições de vida.

Em segundo, ausência de trabalho nem sempre está ligado à vagabundagem, mas a impossibilidade física, psíquica ou de legalidade, às condições do mercado e dezenas de outros fatores.  Crianças não podem trabalhar, ou não conseguem produzir o suficiente para bancar seu sustento; muitos idosos e doentes, também, não estão em condições de gerarem renda; e muitas famílias não  possuem patrimônio para bancar essas despesas. O que devemos fazer com essas pessoas, deixar que morram de fome? “Não podemos dar-lhes dinheiro, pois, estaremos estimulando à vagabundagem”. Ora, por favor, arrumem um argumento melhor.

Nós não trabalhamos apenas por dinheiro. Trabalhamos porque precisamos nos manter em atividade, gostamos da boa sensação de produzir, temos tempo para gastar. Claro, há pessoas que odeiam o trabalho, adoram ficar na praia ou na frente da televisão ou do celular, o tempo todo, e se não tiverem contas a pagar, não vão se dignar em produzir o que quer que seja.

Bem, esse tipo de trabalhador e muitos outros, estão sendo substituídos por máquinas, por computadores, por câmeras, por robôs. A indústria automobilística, o sistema financeiro e o próprio agronegócio, com suas colheitadeiras, estão precisando cada vez menos de mão de obra humana.

É verdade que, nos call centers, não vemos a hora de sermos atendidos por uma voz humana, mas essa hipótese está ficando extremamente rara. Até as companhias aéreas querem que despachemos as malas por conta própria.

Nesse mundo de máquinas digitais, boa parte do trabalho humano está se tornando dispensável.

Se as máquinas fazem a produção, mas a economia precisa de consumo e as pessoas precisam de bens, qual é a dificuldade de se distribuir um pouco de dinheiro para assegurar um mínimo de dignidade para todos?

Vão dizer, não é pouco dinheiro, afinal, o benefício deve custar mais de 100 bilhões de reais por ano. Ocorre que, somente neste ano de 2022, o Governo irá gastar mais de 500 bilhões de reais em juros da dívida pública.

Segundo matéria publicada no portal do Infomoney, a dívida pública federal fechou outubro num montante de R$ 5,778 trilhões. E a um custo de mais de 10% ao ano[ii].

Se o governo pode pagar mais de 500 bilhões, em juros, para a população mais rica, por qual razão não pode pagar um pouco para a população mais pobre?

Quanto ao Orçamento da União, claro que é importante e, seguramente, o Governo deve zelar para que ele não saia do controle e nem gere inflação. Afinal, a queda da inflação foi uma das grandes conquistas da população brasileira com o Plano Real (governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso), e um grande ganho para toda a população, mas especialmente a mais pobre, aquela que não tem poupança, nem é credora do Governo Federal.

Aliás, os grandes credores do Governo brasileiro não são mais os estrangeiros, eles não chegam a 10% na atualidade. Os grandes credores da dívida pública federal são os brasileiros, representados por instituições financeiras (e seus clientes) com 28,68%, os fundos de investimento com 24,63% e as Instituições de Previdência com 22,92%. As Seguradoras aparecem com 4,05%. Portanto, os credores da dívida em sua grande maioria são brasileiros: são as pessoas e as empresas que possuem aplicações em instituições financeiras, em fundos de investimento ou em previdência.

Cabe ao Governo negociar com a sociedade brasileira e o Congresso Nacional como fazer para extinguir a fome e a miséria de nossa sociedade, afinal, essas chagas atrapalham a vida de todos e não apenas da população carente. Um Brasil sem miseráveis seria mais pujante, mais belo, geraria mais renda com turismo e uma economia com maior consumo, tudo que as empresas precisam para crescer.

E, de quebra, atingiríamos dois dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU e daríamos concretude aos mandamentos de nossa Constituição:

ODS 1 – Erradicação da pobreza: Erradicar a pobreza em todas as formas e em todos os lugares

ODS 2 – Fome zero e agricultura sustentável.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

(Constituição Federal).

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*Ricardo Prado Pires de Campos é professor de Direito, escritor, procurador de Justiça aposentado, e atualmente preside o MPD – Movimento do Ministério Público Democrático

[i] “Em 2021, o Brasil alcançou uma produção suficiente para alimentar 1,6 bilhão de pessoas. No mesmo ano, a indústria de alimentos alcançou um faturamento de R$ 922,6 bilhões, representando um aumento de 16,9% em relação ao ano anterior. Em meio a tanta abundância, um número choca: 33,1 milhões. É o total de pessoas que, hoje, estão em situação de insegurança alimentar grave” (Letícia Piccolotto, brazillab.org.br/noticias/brasil-produziu-comida-para-1-6-bilhao-mas-33-milhoes-passam-fome-como).

[ii] “Já o custo médio acumulado em 12 meses da DPF caiu de 10,47% ao ano para 10,04% a.a. no mês passado” (Infomoney.com.br) Dívida Pública Federal sobe e fecha outubro em R$ 5,778 trilhões, diz Tesouro. Por Estadão Conteúdo, 25 nov 2022.

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica