A tragédia ocorrida em São Sebastião contabiliza dezenas de mortos, centenas de feridos e milhares de desabrigados. A chuva é um evento da natureza, mas o descaso é resultado da ação humana. Descaso com a vida, com a natureza e com a gestão pública.

Toda vez que enfrentamos uma tragédia de grandes proporções, previamente anunciada, a falta de recursos é apontada como justificativa para a omissão.

Este argumento, por si só, não se sustenta. Os administradores públicos (prefeito, secretário de obras e gestor de reservas ambientais) possuem os instrumentos legais necessários para coibir a invasão em áreas públicas e a construção irregular em áreas públicas e privadas. O setor de fiscalização das prefeituras, se necessário com a ajuda das polícias, podem retirar invasores e demolir construções irregulares. Para isso, sequer precisam de autorização judicial.

É óbvio que a solução do problema é mais simples quando a ação estatal ocorre ao início. Depois de anos de inércia, quando os moradores da área constroem verdadeiros conjuntos habitacionais formando bairros em áreas de risco, haverá um grande drama para a administração pública. A inércia, no entanto, continua sendo a pior solução.

Parte dos morros, que formam a Serra do Mar, foram constituídos em área de preservação ambiental, sendo que muitos deles, devido a sua inclinação, são impróprios para a construção de moradias devido ao risco de desabamento.

Claro que todos sabemos que grandes áreas da Serra do Mar já foram desmatadas há muito tempo, antes da consciência ambiental que levou a edição de inúmeras leis de proteção do pouco que restava. Todavia, ainda temos dificuldade em proteger as áreas restantes.

Aliado à questão da proteção ambiental, temos, na vertente oposta, o gravíssimo problema não resolvido de oferta de moradias dignas para as pessoas de baixa renda.

Obras de infraestrutura, em geral, demandam muitos recursos, e o preço dos imóveis costuma ser elevado, dificultando para parcela significativa da população a compra da casa própria.

Isso leva as pessoas para terras de baixo custo, como loteamentos clandestinos, realizados sem a infraestrutura necessária, ou invasões em terrenos públicos ou privados, inclusive morros e áreas de preservação ambiental.

Algumas dessas são de altíssimo risco, mas, nem sempre, as pessoas percebem. Sem poder contar com assessoria adequada, a população de baixa renda, por vezes, é enganada com a promessa de melhorias futuras que nunca chegam.

A oferta de imóveis a preços populares é questão complexa, pois a procura é sempre maior que as unidades disponíveis, e o Estado brasileiro não investiu absolutamente nada nesse setor nos últimos anos. A anunciada retomada de programas habitacionais pelo governo federal pode ajudar, mas é insuficiente diante da carência de moradias em nosso país. Como a renda de parte significativa das pessoas é pequena, e os juros estão muito altos, a iniciativa privada também não dá conta de financiar a demanda. Será necessário baixar os juros para que os financiamentos imobiliários voltem a colaborar na solução do problema. A população cresce muito rapidamente e o volume de moradias não têm conseguido acompanhar.

É verdade que, nas últimas duas décadas, os trâmites para a regularização de imóveis vêm sendo simplificados. Todavia, alguns requisitos e documentos são imprescindíveis. Invasões em áreas abandonadas, loteamentos clandestinos e construções irregulares sem autorização da prefeitura são questões distintas e que comportam soluções diferentes.

Nas áreas de preservação permanente, a regularização é sempre mais difícil, mas obras de engenharia para mitigação do risco de desabamento e compensação ambiental podem ser avaliadas se a remoção da aglomeração humana não for possível.

No entanto, onde a possibilidade de desabamento e inundação são inafastáveis, é preciso agir e tirar as pessoas da área de risco. Esperar é contribuir com a tragédia. No caso de São Sebastião, o Ministério Público tinha ingressado com inúmeras ações avisando da situação e buscando soluções. A protelação resultou na perda de vidas e destruição gigantesca.

Se as prefeituras fossem mais ciosas em cumprir suas obrigações, e inibissem as construções irregulares, seguramente, não teríamos a maioria dessas tragédias.

A obrigação das prefeituras independe da oferta de moradias. Claro, uma gestão urbanística eficiente teria previsto terrenos para habitação das classes populares, não deixando que a especulação imobiliária empurrasse as pessoas de baixa renda para as encostas dos morros. Embora a oferta de moradias no Brasil seja área de atuação preponderante da iniciativa privada, o Estado não pode simplesmente fechar os olhos para esse tema.

Resolver invasões em seu início é muito mais fácil. Depois de anos, com bairros inteiros construídos, o problema muda de patamar. Todavia, no caso de São Sebastião, havia ações propostas pelo Ministério Público, de forma que a situação já era conhecida, mas foi sendo arrastada e, aparentemente, negligenciada. O papel do MP, ao que tudo indica, estava sendo cumprido com diversos processos que buscavam equacionar a questão. É urgente implantar as medidas técnicas necessárias e, agora, apurar as responsabilidades de quem, tendo o dever de resolver o problema, não o fez.

Ricardo Prado Pires de Campos é mestre e professor de Direito e foi promotor e procurador de Justiça, e atualmente preside o MPD – Movimento do Ministério Público Democrático.