Menos de 3% dos menores infratores da Fundação Casa cometeram crimes hediondos, diz MP

Proposta que aumenta para dez anos o tempo de internação na entidade atingiria minoria
POR LEONARDO GUANDELINE

*Foto: Rebelião na Fundação Casa de Itaquera – Agência Estado/22-8-2010 / Sérgio Neves

22/06/2015 8:34 / ATUALIZADO 22/06/2015 9:07
SÃO PAULO — Caso a proposta de aumentar de três para dez anos o tempo de internação para menores que cometerem crimes hediondos seja aprovada, ela não atingirá praticamente ninguém na Fundação Casa, antiga Febem, na cidade de São Paulo. Um estudo inédito da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, realizado entre agosto do ano passado e maio deste ano, mostra que apenas 2,8% dos jovens que cumprem medida socioeducativa na capital paulista praticaram esse tipo de crime. Fazem parte da lista de crimes hediondos o homicídio qualificado, o latrocínio, a extorsão mediante sequestro qualificada, o estupro e o estupro de vulnerável.
O levantamento do Ministério Público indica também que a maioria absoluta dos jovens que foram condenados a cumprir cometeu roubo: 52,8%. O tráfico de drogas é responsável por 22,8 % das punições.
O estudo ainda revela que uma minoria insignificante dos jovens condenados cumpre os três anos de internação, tempo máximo previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo o relatório, 0,6% ficaram mais de dois anos internados. E apenas 0,1%, três anos.
Em um ofício obtido pelo GLOBO e enviado em novembro passado à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, a Fundação Casa admite que o tempo médio de permanência dos adolescentes na internação é de 232 dias, pouco mais de sete meses.
O estudo foi feito de forma amostral. Num total de 22 mil processos da Comarca de São Paulo, foram analisados 4.400 casos. Desses, 3.713 foram condenados a medidas socioeducativas, dos quais 1.558 sofreram internações (42% do total).
O levantamento é inédito no país, segundo o promotor de Justiça Tiago Rodrigues, também integrante do Ministério Público Democrático (MPD). Rodrigues, um dos responsáveis pelo estudo, é contrário às duas principais propostas relativas à maioridade penal discutidas na última semana no Congresso e que devem constar da pauta desta semana – o projeto de lei do senador José Serra (PSDB-SP), que aumenta o tempo máximo de internação de três para dez anos para menores que cometerem crimes hediondos, cujo regime de urgência foi aprovado no Plenário do Senado na última quarta-feira; e o relatório do deputado federal Laerte Bessa (PR-DF), favorável à redução da maioridade penal de 18 anos para 16 anos para os menores que praticarem, além de crimes hediondos, homicídio doloso, lesão corporal grave e seguida de morte, aprovado em uma comissão especial da Câmara, no mesmo dia – e aponta que ambas não resolverão o problema da violência e da insegurança no país.
A partir dos resultados obtidos, o promotor de Justiça Tiago Rodrigues classifica a proposta de Serra, levada à Brasília pelo governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB), elaborada pelo secretário de Segurança Pública paulista, Alexandre de Moraes, e apoiada pelo governo federal como alternativa à redução da maioridade penal, de “inócua” por não estabelecer tempo mínimo de internação.
– Há uma clara subutilização do período de internação, cuja média é de pouco mais sete meses. Por que nós vamos alterar o prazo máximo de três anos se sequer esse prazo é utilizado? De que é adianta? É uma discussão totalmente estéril. Eu quero acreditar que não, mas muitas vezes soa como uma mera prestação de contas à população. Isso se agrava com a constatação de que o projeto não estabelece um período mínimo de internação – diz Rodrigues.
Para o promotor de Justiça, a falta de estrutura e a superlotação das unidades podem explicar o porquê de menores não cumprirem uma pena média maior na Fundação Casa. Segundo ele, “o sistema está superlotado” na capital paulista e também no interior.
— Se esses adolescentes, de fato, ficarem internados por mais tempo, será necessária a construção de mais unidades — acrescenta.
Na cidade de São Paulo, a Fundação Casa tem 2.949 vagas e 3.644 internos, 23,57% a mais do que comporta, segundo um balanço divulgado pela instituição este ano. No interior, são 6.129 adolescentes para 5.214 vagas.
Num dos ofícios enviados à Justiça e obtidos pelo GLOBO, ao juiz da Comarca de Santa Cruz das Palmeiras, a 250 km da capital, a Fundação Casa dizia, em agosto de 2014, que “necessita do auxílio dos demais sujeitos do processo socioeducativo para solucionar a problemática da atual escassez de vagas”, ou seja, pede ajuda para equacionar a questão da superlotação. Num outro, ao Departamento de Execuções da Infância e da Juventude (Deij), a instituição disse, em abril de 2014, que “encontra-se, hoje, com gargalo na movimentação de adolescentes que recebem medida de internação e dependem, única e exclusivamente, da saída de adolescentes”. Num terceiro ofício, também de abril do ano passado, dizia a Fundação Casa, ao mesmo Deij, que “torna-se claro e inequívoco que a demanda aumentou em números absolutos” e que “o número de adolescentes que receberam a internação definitiva vem aumentando significativamente, sendo esse maior que o número de adolescentes liberados, culminando no represamento da demanda”.
Ao mesmo tempo, adolescentes têm permanecido por um tempo considerado longo pela Promotoria nas unidades de internação provisória da fundação – acima de 60 dias. “Assim, está evidenciada a violação dos direitos constitucionais legais dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação por tempo indeterminado”, diz um ofício enviado em março do ano passado à presidente da Fundação Casa, Berenice Gianella, e ao governador Geraldo Alckmin, pela juíza coordenadora do Deij, Maria Elisa Silva Gibin.
O promotor ainda critica a chamada PEC da redução da maioridade, cujo relatório favorável foi aprovado na quarta-feira numa comissão especial da Câmara dos Deputados. Para Tiago Rodrigues, a aprovação na redução “não vai alterar em nada a punibilidade”. Ele acredita que é necessário fortalecer o processo socioeducativo. Fala também que “é preciso, para aumentar o nível de punição, estruturar e fortalecer as instituições do sistema de Justiça”.
— A população fez um diagnóstico verdadeiro e preciso, e identificou insegurança, impunidade e intranquilidade. A população está cansada disso. São problemas graves que precisam de uma solução. A divergência está na solução apresentada. A solução não é a redução da maioridade penal e a eliminação do processo socioeducativo, mas o contrário, o fortalecimento desse processo. A trincheira da população é a mesma que a nossa. Nós só divergimos na medida a ser adotada. Aproximadamente 90%, 95% dos crimes de homicídio não resultam em punição, quer porque a autoria não é conhecida, quer porque não são reunidas provas suficientes para condenação ou porque os jurados decidem que aquele é um caso de absolvição. Se for reduzida a maioridade penal, 90% ou 95% dos crimes vão continuar não sendo punidos.
Para Rodrigues, os que defendem a redução “presumem que mecanismos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do e Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) são insuficientes para garantir segurança da população e a punição de adolescentes infratores”.
— Mas nós não sabemos, porque a lei não foi inteiramente aplicada. Não podemos decretar o erro de um projeto que não foi executado — ressalta o promotor.
— Vamos aplicar as regras existentes, usar o potencial que a lei nos permite, o prazo de internação, e a semiliberdade, que também é subutilizada. Aqui (em São Paulo) apenas 9,8% das medidas socioeducativas aplicadas são de semiliberdade — conclui.
Em nota enviada ao GLOBO, a assessoria de imprensa da Fundação Casa diz que o estudo realizado por um grupo de promotores da capital “demonstra desconhecimento da história e da atualidade do atendimento socioeducativo paulista, além de conter considerações precipitadas, desarrazoadas e desprovidas de análise técnica adequada”. Segundo a fundação, a Constituição Federal e o ECA “determinam que o tempo de internação do adolescente, que é a privação de liberdade, deve ser breve” e que “a Carta Magna e a lei não impõem tempo mínimo de privação de liberdade simplesmente porque o sistema socioeducativo não é sistema prisional, no qual há pena pré-determinada pelo juiz em dias, meses ou anos”.
“Se o grupo de promotores considera que o tempo médio do levantamento que realizaram é pouco, esse prazo ocorreu com a ciência e aval do MPE”, diz a nota da fundação, ao comentar o tempo médio de internação de menores na cidade de São Paulo. A Fundação ainda contesta as afirmações do promotor sobre a subutilização da semiliberdade. “No processo judicial do adolescente, são os promotores que indicam qual medida socioeducativa deveria ser aplicada, para o julgamento do juiz”, conclui, acrescentando que a conclusão de Rodrigues “desprestigia o trabalho das equipes da Fundação Casa, assim como dos demais promotores, defensores e juízes que analisam os casos e decidem pela liberação dos adolescentes segundo as metas atingidas, e não de acordo com o tempo que o MPE/SP supostamente considera necessário”.
O deputado federal Laerte Bessa (PR-DF), em nota enviada ao GLOBO, contesta o promotor de Justiça Tiago Rodrigues e cita, como justificativa ao seu relatório favorável à redução da maioridade penal, o aumento de 60,5% de menores apreendidos em flagrante no Distrito Federal pela prática de atos infracionais no primeiro quadrimestre deste ano em comparação ao mesmo período de 2014. “Ainda, dos 355 homicídios esclarecidos de 01/01/2015 a 15/05/2015 no DF, 139 tinham menores de 18 anos como autores, o que equivale a 39% dos homicídios esclarecidos pela Polícia Civil do DF”, acrescenta o parlamentar, também defendendo melhores investimentos nas polícias por parte do Poder Púbico para aumentar a punibilidade. “Essa insuficiência de punição, seja pela baixa resolução de crimes, seja pelo pouco tempo de internação dos adolescentes, tem contribuído sobremaneira para o aumento da criminalidade juvenil”, conclui o parlamentar, para quem a redução da maioridade penal “deve ser conjugada com melhorias no ECA”.
Procurada pelo GLOBO na sexta-feira, a assessoria de imprensa do senador José Serra (PSDB-SP) não enviou resposta aos questionamentos da reportagem até o fechamento desta matéria.
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