MP NO DEBATE
Impugnação da paternidade e a atuação do Ministério Público

 
Por Rogério Alvarez de Oliveira

 
O tema da paternidade, muito caro a todos nós, vem experimentando notável evolução nos últimos anos, quer em razão dos avanços científicos, que têm oferecido múltiplas oportunidades aos casais ou possibilitando a busca do vínculo biológico com precisão, quer em razão do próprio progresso de nossa sociedade, que buscou afastar tabus como a filiação ilegítima e o casamento homoafetivo.

 
O direito, como não poderia deixar de ser, também vem buscando adaptar-se a essa nova realidade, passando a tutelar relações antes ignoradas. Nesse passo, emergiu com toda força a afetividade como valor jurídico e expressivo.

 
O afeto, portanto, vem marcando de modo significativo os julgados que envolvem o Direito de Família, especialmente nos casos de impugnação da paternidade. Há que se fazer um parêntese: é preciso distinguir entre afeto e amor, pois enquanto aquele se relaciona com os cuidados e atenção ao ente, e, portanto, se traduz em dever, o segundo é uma faculdade e, como tal, por sua complexidade, se restringe ao campo da filosofia.

 
Em julgamento que serviu de paradigma, o STJ deixou claro que “na hipótese, não se discute o amar – que é uma faculdade – mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos”. Portanto, interessa ao Direito apenas a afetividade, e não o amor, como valor a ser considerado nas relações humanas.

 
Do mesmo modo, segundo as palavras de João Baptista Villela, “a verdadeira paternidade não é um fato da Biologia, mas um fato da cultura. Está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen”.

 
Portanto, o vínculo socioafetivo aparece como uma força que não pode mais ser desprezada. Afinal, não por menos o artigo 1.593 do Código Civil admite não somente o parentesco consanguíneo, mas também o civil de outra origem. Assim, temos as seguintes espécies de filiação: biológico, por adoção, por inseminação artificial e posse do estado de filiação.

 
Como se sabe, o prazo para impugnação da paternidade não se sujeita à decadência (artigo 1.601 do Código Civil). Desse modo, considerando a facilidade de se obter exame de DNA, houve notável proliferação de ações negatórias de paternidade visando ao afastamento do vínculo biológico de filiação pelos pais que se sentiam enganados ou induzidos em erro.

 
Entendeu-se, em um primeiro momento, que a verdade biológica deveria prevalecer a todo custo. Em seguida, que esta verdade deveria prevalecer se demonstrado o erro ou vício de consentimento do pai de registro. No entanto, felizmente, vem sedimentando-se o entendimento de que o vínculo socioafetivo deve prevalecer ante ao biológico, mesmo que demonstrado o vício de consentimento ou erro.

 
Em breve, o STF irá julgar o Recurso Extraordinário 898.060, com repercussão geral reconhecida, no qual se discute a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica.

 
Dada a complexidade das relações humanas, certamente que se haverá de analisar caso a caso, pois são inúmeras as situações que se vislumbram envolvendo filiação e paternidade. Também há que se distinguir, ainda, o direito ao conhecimento da origem genética do direito à filiação, pois nem sempre a esta (filiação) e a parentalidade têm origem biológica. A filiação decorre das relações humanas, não sendo um dado da natureza, mas da cultura humana.

 
A origem genética, ao revés, decorre da natureza humana, expressa na carga hereditária que cada um de nós carrega consigo, com as características próprias do corpo e da mente, podendo interessar a cada um conhecer sua origem, até mesmo para evitar doenças ou simplesmente conhecer sua história. Uma vez reconhecida a filiação socioafetiva, não há óbice para a investigação da origem genética para fim exclusivamente da personalidade, sem reflexos patrimoniais.

 
Para se ter uma ideia sobre a complexidade das questões envolvendo o tema, segue um breve e resumido demonstrativo esquemático sobre a viabilidade, ao meu ver, considerados os julgados predominantes, das ações envolvendo a filiação:

 
filho X suposto pai biológico (investigatória) – viabilidade

suposto pai biológico X filho (investigatória/declaratória) – viabilidade

filho X pai socioafetivo (declaratória, posse de estado de filho) – viabilidade

filho X pai socioafetivo post mortem (declaratória, idem supra) – viabilidade

filho X suposto pai biológico (declaratória, de origem genética) – viabilidade

filho X suposto pai biológico post mortem (investigatória) – viabilidade

pai registral X filho (negatória, vício ou erro, s/ socioafetividade) – viabilidade

pai registral X filho menor (negatória fundada em mera dúvida) – inviabilidade

pai registral X filho (negatória – adoção à brasileira) – inviabilidade

pai registral E filho menor (negatória consensual) – inviabilidade

pai registral E filho maior (negatória consensual) – viabilidade

pai registral X pai afetivo e filho (multiparentalidade) – viabilidade

herdeiros do pai falecido X filho (negatória) – inviabilidade

 
Em outras palavras, a investigação somente é cabível quando não há paternidade, de qualquer espécie, nunca para desconstituí-la. Ou seja, não é possível alterar estado de filiação que já existe. Esta, por sinal, nunca esteve tão vulnerável como no momento atual em que, por meio de um exame insensível, verdades construídas com afeto podem ser desmontadas.
Nesse contexto, o papel do Ministério Público reveste-se de vital importância. Atuando como fiscal da ordem jurídica em ações dessa natureza, cumpre-lhe, antes de tudo, examinar se se trata de direito oponível a pessoa menor ou incapaz, pois sua intervenção se dá por força do disposto no artigo 178, II, do Código de Processo Civil atual.
Sendo assim, deverá zelar pela correta aplicação dos direitos e princípios que norteiam a matéria, especialmente o da dignidade humana e do melhor interesse da criança, haja vista a filiação de pessoa menor tratar-se de direito indisponível (direito indisponível de reconhecimento do estado de filiação), irrenunciável e não passível de transação de qualquer espécie.
Desse modo, cabe ao MP, respeitadas as opiniões diversas, opor-se ao pedido de homologação de acordo visando a excluir a paternidade biológica de filho menor, ainda que existente exame de DNA negativo, pois, nessa hipótese, há que se perquirir sobre a existência da filiação socioafetiva mediante o devido processo legal, e também sobre a existência de erro ou vício de consentimento, com toda a produção instrutória para esse fim.
O membro do MP também deve se opor à pretensão de seguimento de ação negatória de paternidade fundada em mera dúvida, pois tal intento certamente acarretará insegurança a todos envolvidos e, não menos grave, transtornos e danos psicológicos e emocionais irreparáveis ao menor, tão somente para satisfazer o desejo mesquinho do pai registral de ver afastada a paternidade. É recomendável, ainda, que se oponha aos pedidos negatórios de paternidade em que esta se deu nos moldes da “adoção à brasileira”, pois ausente, nesse caso, qualquer erro ou vício de consentimento.
Para tanto, o MP deverá elaborar suas manifestações fundamentadamente, requerer a produção de provas e diligências e, se o caso, interpor os recursos cabíveis, pois possui legitimidade para tanto, de modo a fazer prevalecer a verdade social e o melhor interesse da criança ou adolescente.
Rogério Alvarez de Oliveira é promotor de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.
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Imagem: Arquivo/Pixabay