Por Plínio A. B. Gentil

10/11/2015

Têm sido frequentes, aqui e ali, as manifestações classificando de doutrinadores e ideologizantes os rumos que a educação pública no Brasil vem adotando, seja por meio de livros didáticos, seja por conteúdos curriculares, seja ainda pelo posicionamento de professores em sala de aula. Estes costumam ser chamados de tendenciosos e vistos como profissionais que pretendem incutir uma determinada visão de mundo em seus alunos. Chamam a isso de ideologização do ensino, e frequentemente atribuem essa “tendência” a algo vago e impreciso que estaria associado à influência do marxismo sobre os educadores de maneira geral.

Aqui é preciso, inicialmente, propor uma correção de termos. Com a palavra “ideologização”, os críticos dessa “educação doutrinadora esquerdizante” devem querer expressar o sentido da inculcação de uma ideologia a alguém, no caso os estudantes indefesos. Só que o vocábulo ideologia possui uma significação diversa da pretendida. Ideologia quer dizer, na verdade, uma versão, a propósito de fatos e coisas da vida em sociedade, capaz de incutir, naquele que sofre as piores consequências desses fatos e coisas, uma falsa ideia de que essa é a melhor forma de o mundo andar. Que, apesar das inconveniências e eventuais injustiças, o modelo de sociedade adotado é o que melhor atende às necessidades de todos e ainda que, se porventura alguns não se dão bem assim, é certamente porque não fizeram adequadamente a sua parte, não se esforçaram o suficiente, ou não confiaram na vida para a qual se encontravam predestinados. Assim visto, o sentido da palavra ideologia claramente refere-se, isto sim, a uma descarada técnica de dissimulação, por meio da qual aqueles que exercem domínio sobre outros, em qualquer esfera da vida social, escamoteiam desses outros o fato de que entre eles existe uma relação de dominação. É a ideologia que se encarrega — e consegue — fazer parecer que, entre todos, o que existe é nada mais do que uma justa igualdade.

Ora, se ideologia é isso, o termo ideologização só pode significar a propagação de uma ideologia. Mas, considerando o sentido da palavra ideologia, essa propagação há de querer dizer a disseminação de uma mentira, tendente a esconder a dominação daqueles que são dominados. Pois bem, se os professores “influenciados pelo marxismo”, de que nos falam os críticos da tal “educação ideologizante”, procuram, ao contrário disso, justamente demonstrar aos dominados que o modelo social vigente os oprime, e lhes explicar porque isso acontece, então tais mestres podem estar fazendo tudo, menos ideologizando. Porque, em vez de estarem mentindo, estão é abrindo os olhos dos seus alunos.

E não pode mesmo ser outra a função do mestre. O bom mestre há de ser um educador. Educador é o mistagogo: figura da Grécia antiga, significando o sacerdote que inicia o sujeito nos mistérios da religião. É quem lhe revela os mistérios, o que está escondido. É quem ensina o rito, desvenda o que é desconhecido. O educador conduz à leitura do mundo. Lembre-se o internacionalmente reconhecido Paulo Freire: ler o mundo, ler a vida, ler o livro, nessa ordem cronológica. “Nunca foi possível, para mim, separar a leitura das palavras da leitura do mundo…”; “a educação é política…, sustenta Freire”[1]. Sem visão da totalidade, sem pesquisa que admita haver coisas para desvendar e considere ser possível transformar o mundo, sem o educador, enfim, não se compreende o contexto em que se desenvolve a vida das pessoas em sociedade.

Aí é que está. O que pretendem os críticos de uma educação que é politizante, mas erradamente chamada de ideologizante, é que os mestres limitem-se a apresentar dados e tabelas, datas e nomes, sem os amarrar ao chão de suas origens e à sequência que afinal explica o seu papel no panorama geral que é objeto do estudo. Guerras, heróis, generais, reis e presidentes soltos no espaço de um pseudoconhecimento que jamais os contextualiza. A queda de Roma é jogada, por exemplo, como um fato desprendido de certo esgotamento do modelo escravagista que marcou a decadência do império; o nazismo alemão da Segunda Guerra, como produção de mentes doentias, sem qualquer relação com a concentração do capital e o desejo de expansionismo movido pelo objetivo de ampliar os mercados.

Na verdade, esses críticos são patrulheiros da ideologia — que esconde a realidade — e seus guardiões. Não pretendem que o educador eduque. Ao lhe negar a possibilidade de mostrar a marcha da civilização como uma sequência histórica lógica e concatenada, em que há menos heróis e bandidos e mais mecanismos impessoais de dominação, que fazem das pessoas meros executores dos impulsos de um arranjo de sociedade, essa crítica pouco fundamentada postula para o mestre a função de reproduzir a ideia padrão de que tudo sempre foi assim e assim sempre será, para o bem de todos e a glória de Deus. Sim, porque é útil introduzir Deus na jogada: trata-se de uma forma de legitimar a ideia e demonizar toda contestação. Em outras palavras, o que os críticos desejam é, sem tirar nem pôr, ideologizar. Isto é, propagar uma mentira que anule o caráter dominador do modelo de sociedade e que torne palatáveis e digestivas as brutais diferenças de oportunidades oferecidas a estes e aqueles.

Em termos finais, enrolar para todos e fingir que a ciência é neutra e não resultado de um jogo de interesses em que o mais poderoso dita o que é científico. E convidar seus alunos a irem dormir pensando que o mundo é justo e a sonhar que reizinhos por aí afora, de coroa e manto, simplesmente flutuam no ar e, de quando em quando, com um mesmo gesto, determinam guerras, celebram a paz e distribuem doces.

Ora, ora, ora. E ainda há projetos de lei querendo transformar em criminoso o professor que falar de política na aula[2]. Em outro tempo, já se propôs, como diretriz curricular do ensino público no estado de São Paulo, excluir os conhecimentos de história, geografia e ciências do primeiro ao terceiro ano e manter 10% dessas disciplinas no quarto e quinto anos do ensino básico, nível no qual se ensinaria maciçamente o português e a matemática[3]. A pátria de Paulo Freire está retrocedendo. Nesse ritmo, considerando que todo projeto insano tem a magia de atrair adeptos, não vai demorar muito para alguém propor — e quem sabe aprovar — a revogação da Lei Áurea. Um professor de história do futuro, que seja um verdadeiro educador, vai ter um trabalho imenso.

Plínio A. B. Gentil é procurador de Justiça em São Paulo, doutor em Direito e em Educação e professor universitário. Integrante do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). De 1986 a 1988 exerceu cargo de direção no Ministério da Justiça.