DE CRISES E DE COBRAS
Em 54 Getúlio foi acuado pelo capital estrangeiro, incomodado com seu nacionalismo e concessões à gente do andar de baixo. Como agora, a pressão veio montada em denúncias de corrupção, como se os denunciantes fossem exemplo de castidade. Seu suicídio os derrotou temporariamente. Eis que, vitaminadas, essas forças ressurgem em 64. Aí dão um golpe usando mão de obra militar, como era praxe na América Latina. João Goulart ficou instável porque no centro de uma batalha entre a pressão pelas reformas de base e os interesses do capital, tudo isso num cenário de guerra fria, hoje ausente. Não era preciso temer as reformas de Jango: burguês reformista, não pretendia mexer na estrutura do capitalismo, apenas suavizar alguns dos seus excessos.
Hoje é difícil, no meio da tempestade, analisar os porquês da instabilidade do governo, agravados pela falta de carisma da presidente da república. Um desses porquês é a insatisfação dos derrotados eleitoralmente em 2014.
Outro é o fato, que se repete, da colisão de interesses entre o capital, principalmente o especulativo, adepto de um modelo concentrador, e um governo que dirigiu investimentos a empreendimentos sociais e não tanto a financiar a iniciativa privada. Os bancos particulares fizeram isso, então puderam experimentar lucros volumosos e, consequentemente, pagar alto aos aplicadores. O Brasil rentista vai bem, obrigado, e teme por seus privilégios, que dependem de juros altos. O capital produtivo quer financiamentos do BNDES, é lógico, e, na falta de perspectivas para produzir, vai optar por emprestar seu dinheiro e viver de rendas. Os juros então precisam ser elevados. Ou seja, teremos realmente uma crise, pois a produção cairá e os preços subirão. Ai, Jesus.
Pois é sobre tal pano de fundo que tomou corpo a campanha pelo impeachment da Dilma, baseada num catastrofismo a propósito de uma crise no mínimo curiosa: a Mercedes e a Honda estão vendendo mais do que no mesmo período do ano passado; há um superavit na balança de pagamentos que ultrapassa muito o de um ano atrás; há defasagem de energia, mas em parte ela é devida ao excesso de consumo em 2014, causado pelo aumento da renda dos mais pobres; a ONU estima que seremos o maior exportador de alimentos na próxima década. Como não economista, confesso certa dificuldade em lidar com dados. Só que isto são fatos.
Prosseguindo na minha pesquisa e no mais ingênuo empirismo, observo os shoppings lotados, vejo restaurantes abrindo e bombando, apuro que um jardineiro que conheço está recusando serviços e que o filho dele, que abriu uma modesta oficina, já está contratando empregado.
Ora, quem sou eu para negar a crise que entendidos como a Miriam Leitão, o Sardenberg e o Azevedo afirmam existir? Mas como tenho memória, lembro que nas décadas de 70 e 80 era comum fazer fila nos postos porque o preço da gasolina ia subir à meia-noite e nos fins de semana não tinha combustível pra comprar. Vi inflações mensais de 30, 40 e até perto de 80%, vi o país quase sem reservas cambiais e assim vai. Será que a minha crise é diferente da crise deles?
Daí me dizem que jardineiros, taxistas, mecânicos e as pessoas com as quais converso não são indicadores confiáveis e que eu devo procurar índices oficiais. Obediente, vou então ao site do Banco Central e vejo que as reservas cambiais do país somam, com dados de 11 de agosto, 370, 50 bilhões de dólares. Isso mesmo, favor conferir: https://www.bcb.gov.br/?RP20150811. Junto com a notícia da redução de 44% da venda de caminhões vejo (meus olhos não têm cerca) que há intenção das concessionárias de investir R$ 7 bilhões na ampliação da malha ferroviária porque o volume transportado bateu nas alturas. São dados da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários. Oh, Senhor, estarão as cargas trocando os caminhões pelos trens?
Parece haver algo estranho no ar, não é mesmo? E como não economista, tudo que reivindico é o benefício da dúvida.
Sabemos, por outro lado, como se dá o jogo político. Que anda montado no econômico e encontra amparo na mídia amiga, aquela encarregada de nos contar verdades e abrir os olhos, ai que bom. Me lembro de novo – maldita memória! – da Globo em 84 fingindo que o comício das diretas, com 200 mil pessoas na Praça da Sé, simplesmente não existia. E que o Brizola, em 82, não estava ganhando a eleição no Rio. Oh, céus, e ainda tem essa conversa de que a família Marinho é uma das mais ricas do país e que a Globo tornou-se potência num clima de amizade com os governos militares, que a emissora promovia. Meu Deus, o que pensar?
Voltando ao começo: as forças econômicas, mais ou menos as que atuaram em 54 e 64, estão famintas e com receio de perder os ganhos, o que é especialmente o caso dos financistas aplicadores. Já viram o que foi a guinada dos governos petistas para investimentos sociais e decidiram que chega de festa. Impuseram um preposto dos banqueiros para comandar a economia e exigem um ajuste fiscal, que é eufemismo para corte de gastos com essa gentinha que invadiu os shoppings, aeroportos e faculdades. O resultado vai ser, não há dúvida, uma crise de verdade: baixa produtividade, preços altos, desemprego. Mas juros convidativos para o Brasil rentista, que afinal é o que importa. E, pra botar a cereja no bolo do inimigo, o PT, afundado em casos e mais casos de corrupção, está no banco dos réus da justiça criminal. Nesta altura, já relativamente acalmada, a reação parece que perde um pouco do medo: Globo e Veja, seus porta-vozes, decretaram que impeachment não é solução, o que sinaliza duas coisas: que não será preciso remover a presidente, melhor é fazê-la um fantoche de seus interesses; e que, pelo sim pelo não, quem é que sabe o que viria da parte dos seus mais de 54 milhões de eleitores? Gente na rua é um perigo… aumenta o risco-país. Tudo isto foi pensado, claro.
Enfim, que o governo, seja Dilma ou outro, não atrapalhe essa trama, isto é o que importa. A mídia amiga cuida de espalhar o caos, todos repetem desgraças sem refletir, o mal de Alzheimer dominou geral. Se é preciso uma crise, ela nos é apresentada… “prazer, amiguinhos”. Agora me lembrei da história do pescador, que levou pra beira do rio uma garrafa de pinga e um saco com… uma cobra. A pinga é pra curar picada de cobra, mas vai que lá não tem cobra… Ô memória…
PLínio Gentil, Doutor em Direito e em Educação, professor universitário, Procurador de Justiça no Estado de S. Paulo e Membro do Movimento do Ministério Público Democrático.