Opinião – O que significa um processo penal democrático?
Por Márcio Berclaz
04/05/2016
A democracia comporta muitos significados. Por mais que a expressão esteja um tanto quanto banalizada nos dias de hoje, democracia, como modelo normativo, contempla uma perspectiva representativa, deliberativa, participativa e também deveria albergar um traço significativo de radicalidade, ou seja, abertura e espaço para o conflito. O conflito do processo penal, bem se sabe, não é pequeno. A necessária punição de delitos pelo Estado impacta na liberdade e nos direitos fundamentais do cidadão.
Quais são as características do processo penal democrático? Como se avalia o grau de democracia de um determinada estrutura de processo pena?
Processo penal democrático, fundamentalmente, é um processo penal impulsionado a partir da lógica de um sistema acusatório e não inquisitório.
O processo penal acusatório, por sua vez, é a compreensão de que a persecução desenvolve-se a partir de uma necessária separação de funções entre acusação, defesa e julgamento; o processo penal acusatório exige que a gestão da prova seja feita pelas partes, até mesmo para preservar a imparcialidade e o papel do juiz; mais do que isso, o sistema acusatório pressupõe que a forma de o juiz tomar contato com a prova seja a mais imediata, direta e oral possível, sem mediações ou obstáculos tradutores ou deturpadores do sentido. Um processo penal acusatório é aquele que privilegia a tomada de decisões dentro de um sistema de audiências a partir de uma gestão administrativo-judiciária que deve ser feita por profissionais, não por juízes.
A não compreensão do papel de cada uma das partes, em especial do juiz, a quem cabe ocupar-se da função de julgar o caso a partir da carga probatória a ser desempenhada pela acusação e do trabalho desenvolvido pela defesa, não só produz um processo autoritário, como deturpa e viola, por si só, a preservação de direitos fundamentais.Desrespeitar o princípio acusatório implica em diversas e nefastas consequências para o respeito às regras do jogo (como sempre bem destaca Aury Lopes Júnior), bem como na falta de filtros, barreiras e controles da legalidade de investigações, das prisões e de imputações. Bem aplicar o princípio acusatório impacta a instrução processual, o julgamento ordinário, mesmo em sede recursal, impactando, em último grau, a própria execução penal.
Lamentavelmente, diferentemente do restante da América Latina (e o Chile que, desde o Código de Processo Penal de 2000, mudou radicalmente de um sistema inquisitivo para acusatório é um ótimo exemplo), no Brasil ainda estamos mergulhados em um Código de Processo Penal de 1941, recheado de reformas pontuais que lhe trouxeram ainda mais inconsistência sistêmica, o que faz com que não só a dogmática, mas especialmente a jurisprudência dos Tribunais Superiores, ainda estejam muito distantes dos padrões democráticos de processo penal que precisamos.
A esperança existente reside no fato de discutir-se no Congresso Nacional projeto de reforma do Código de Processo Penal, uma oportunidade para superar o ranço do passado na direção de um processo penal democrático e acusatório que coloque cada um no seu devido “lugar”, permitindo que haja adequado equilíbrio entre um processo penal mais eficaz e capaz de dar respostas melhores e menos seletivas à sociedade brasileira e a sempre necessária defesa de direitos e garantias fundamentais de investigados e acusados.
O que decorrerá deste projeto originado no Senado e atualmente em discussão e fase de audiências públicas na Câmara dos Deputados decorrerá do quanto não apenas a comunidade acadêmico-universitária (em todos os seus níveis, da graduação à extensão), as corporações e as entidades associativas relacionadas às instituições e atores do sistema de justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil), os valorosos centros e institutos dedicados ao estudo transformador do processo penal (Instituto Baiano de Direito Processual Penal -IBADPP, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal – IBRASPP), os meios de comunicação e, sobretudo, a sociedade brasileira, estiverem dispostos e comprometidos em reconhecer que, lamentavelmente, passados quase 28 anos da Constituição da República, ainda não temos um processo penal mínima e suficientemente democrático capaz de respeitar o sistema acusatório.
Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).
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Imagem: Arquivo/web