Por José Carlos Blat
A experiência no combate a corrupção, ao longo de quase 25 anos a frente de casos emblemáticos, resultou em uma série de reflexões de ordem prática sobre a real efetividade da prestação jurisdicional, nas esferas cível e criminal, bem como seus reflexos na órbita administrativa.
O grande problema surge a partir do conhecimento do fato que traduz a suspeita de improbidade administrativa e/ou crime contra a administração pública e as respectivas providências iniciais nas diversas esferas de apuração, que por muitas vezes resultam na produção repetitiva de provas e na criação de um verdadeiro círculo vicioso na troca incessante de ofícios entre os órgãos apuradores, solicitando uns dos outros informações sobre o andamento de procedimentos para impulsionar suas investigações burocratizadas.
A falta de sintonia e de integração entre os órgãos de investigação infelizmente ainda é uma realidade no Brasil.
Diversas iniciativas positivas têm representado um certo avanço nos esforços de trabalho integrado entre os órgãos que fazem investigações, mas ainda há muito a aprimorar nessas atuações conjuntas.
Nos dias atuais, muito se fala da operação “lava jato”, que é uma força-tarefa com a participação do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e da Receita Federal.
O caso da “lava jato” começou com uma investigação de crimes praticados com a utilização de um posto de gasolina em Brasília e hoje representa a maior investigação de corrupção do planeta.
O modelo de atuação conjunta da “lava jato” não é inédito e tampouco representa uma inovação, mas é, na verdade, um aprimoramento de experiências anteriores bem-sucedidas.
Exemplo de uma dessas experiências bem-sucedidas foi o célebre caso da “máfia dos fiscais” na cidade de São Paulo, que teve início em 1998 com a denúncia de uma comerciante contra um fiscal municipal, que exigia o valor de R$ 30 mil para a expedição de alvará de licença, localização e funcionamento de uma academia de ginástica em um bairro nobre da capital.
Após a instauração de um procedimento de investigação criminal, os promotores de Justiça do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) ouviram a comerciante e, na sequência, fizeram uma diligência que culminou com a prisão do fiscal corrupto no interior da Administração Regional de Pinheiros. Para a surpresa de todos, com o fiscal preso foi encontrada uma agenda contendo centenas de apontamentos cifrados de pagamentos de propina de comerciantes, que, se não cedessem a essas exigências ilegais, não conseguiam colocar seus estabelecimentos em funcionamento.
O pioneiro Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado do Ministério Público de São Paulo criou um disque-denúncia que foi difundido por diversos órgãos de imprensa e resultou em mais de 2.500 denúncias de infrações penais e improbidade administrativa contra todas as administrações regionais, Secretaria de Saúde, Secretaria de Educação, serviço funerário, varrição e medição de lixo, licitações de obras, comércio ambulante, funcionários-fantasmas, dentre outras, comprometendo 70% da Prefeitura de São Paulo e indicando também o envolvimento de vereadores paulistanos e outros políticos.
Esse volume assustador de denúncias levou à criação de uma força-tarefa com os promotores de Justiça do Gaeco e do Patrimônio Público e Social da capital, delegados de polícia, procuradores do município e fiscais da Receita Federal.
O trabalho desenvolvido nessa força-tarefa da máfia dos fiscais teve como consequência uma série de condenações na esfera criminal e cível de vereadores, secretários municipais e servidores públicos municipais, bem como punições administrativas.
O então prefeito de São Paulo, Celso Pitta, chegou a ser afastado do cargo em razão de ação de improbidade administrativa proposta por promotores de Justiça do Patrimônio Público.
O município de São Paulo sofreu um prejuízo de aproximadamente R$ 13 bilhões com os esquemas de corrupção que funcionaram entre os anos de 1993 e 1999, sendo que muitas ações de improbidade administrativa e de reparação dos danos foram ajuizadas a época, mas boa parte ainda não teve decisão transitada em julgado.
A maior investigação da história da cidade de São Paulo teve também repercussões políticas, sendo que na eleição municipal subsequente os eleitores renovaram em 50% a Câmara Municipal de São Paulo, não elegendo aqueles que estavam envolvidos com os esquemas criminosos.
O caso da máfia dos fiscais originou a primeira delação premiada, a primeira comunicação do Coaf sobre movimentações financeiras suspeitas, a primeira denúncia de lavagem de capitais, a primeira inserção de testemunha no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas e a primeira força-tarefa de grande porte para investigação de organização criminosa política.
A legislação foi aprimorada, e os instrumentos de investigação, como a delação premiada e a ação controlada, na atualidade, são mais eficientes. Na esfera cível e administrativa, os acordos de leniência e a Lei Anticorrupção contribuem para uma rápida reparação dos danos ao erário público e estabelecem mecanismos de controle preventivos na tutela do patrimônio público, impondo limites nas relações das empresas privadas com os entes públicos.
Falta ainda a modificação da Lei de Improbidade Administrativa para adequá-la aos novos tempos, concatenando suas sanções aos benefícios da delação premiada e aos acordos de leniência.
A “lava jato” e a força-tarefa da máfia dos fiscais guardam muitas semelhanças, especialmente no trabalho integrado para o enfrentamento de organizações criminosas.
Aliás, se hoje é possível o trabalho integrado decorrente de cooperação jurídica internacional para recuperação de ativos oriundos de crimes contra a administração pública, vale destacar que foi a partir do trabalho da força-tarefa da máfia dos fiscais que as investigações apontaram para o superfaturamento da obra da avenida Água Espraiada (atual avenida Roberto Marinho), com o desvio de mais de R$ 850 milhões para as mesmas empreiteiras envolvidas na “lava jato” e para o ex-prefeito Paulo Maluf e outros agentes públicos.
O superfaturamento da obra da avenida Água Espraiada levou à formação de uma nova força-tarefa entre procuradores da República de São Paulo e promotores do Patrimônio Público e do Gaeco de São Paulo, que resultou na recuperação de ativos em paraísos fiscais e na propositura de ação penal e de ação de improbidade administrativa.
Outras forças-tarefas federais e estaduais foram criadas ao longo destes últimos anos no enfrentamento de graves episódios de corrupção, mas ainda é preciso criar no Brasil inteiro, junto ao Poder Judiciário, varas especializadas no combate à corrupção para julgar casos de improbidade administrativa, crimes contra a administração pública e lavagem de capitais.
De outro lado, os Ministérios Públicos deveriam criar em suas estruturas grupos ou Promotorias de Justiça especializadas no combate à corrupção, com atribuição concomitante para ajuizar ações penais nos crimes contra a administração pública e crimes conexos, bem como ajuizar ações de improbidade administrativa.
O trabalho integrado e bem-sucedido no combate a esses crimes e atos de improbidade administrativa está cada vez mais presente no cenário jurídico nacional, mas ainda é preciso aprimorar, dar novas ferramentas legislativas e estrutura para que os órgãos responsáveis pelas investigações consigam produzir provas suficientes que repercutam com rigor na esfera judicial, com sólidas e fundamentadas condenações e uma rápida reparação dos danos causados ao erário público.
José Carlos Blat é promotor de Justiça criminal em São Paulo, associado do MPD, professor de Direito Penal, Processo Penal e prática forense, integrou o Gaeco entre os anos de 1998 a 2004 e foi um dos fundadores do Grupo Nacional de Combate ao Crime Organizado.
Clique aqui e leia o original no Conjur