Respeito à justiça indígena

O reconhecimento da condenação entre pares indígenas num caso de assassinato ocorrido dentro de uma comunidade de Roraima é o tema exposto pelo associado André Paulo dos Santos Pereira no MP do Debate desta semana. O promotor de Justiça do MP-RR analisa o entendimento do TJ-RR da validade do julgamento indígena e da dispensável interferência estatal. No artigo, defende a necessidade de que os processos envolvendo índios sejam continuamente lidos a partir da ótica diferenciada e de modernos conceitos pluralísticos e multiculturais e com rompimento de estigmas preconceituosos do passado.

MP NO DEBATE

Caso Denilson – apontamentos sobre um julgamento indígena

Por André Paulo dos Santos Pereira

No dia 18 de dezembro de 2015, o Tribunal de Justiça do Estado de Roraima julgou um processo peculiar, que ficou conhecido como “caso Denilson”[1]: um índio matou outro, numa comunidade indígena, foi julgado e condenado pelos seus pares e, posteriormente, houve denúncia perante o juízo da comarca de Bonfim (RR), que deixou de apreciar o mérito da ação e declarou ausência do direito de punir estatal, ao argumento de evitar o duplo jus puniendi.

Conforme sintetiza Xavier[2], para o juízo de primeira instância, julgado pelo magistrado Aluízio Ferreira Vieira, o direito de punir seria compartilhado entre o estado e a comunidade indígena, dentro de terras indígenas, como sistemas de Justiça paralelos e independentes, com a prevalência do comunitário; não haveria bis in idem porque se trata de julgamento por sistemas diferentes.

Houve recurso para o Tribunal de Justiça, que manteve a decisão do juízo a quo, mas com diferente fundamento: o non bis in idem. Resume Xavier[3]que o direito de punir seria monopólio estatal, que poderia autorizar um sistema penal indígena paralelo, subordinado à jurisdição não indígena. O julgamento indígena do infrator não se sobrepõe à jurisdição estatal, mas deve ser reconhecido por ela, a partir da exegese do artigo 231 da Constituição Federal, artigo 9º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e artigo 57 da Lei 6.001/1973 (Estatuto do Índio).

No caso Denilson, pela primeira vez no Brasil um tribunal ad quemreconheceu que o julgamento de um crime efetuado pela comunidade indígena é válido, invocando o princípio do non bis in idem para impedir novo julgamento estatal. A atual redação do artigo 231 da Constituição Federal existe desde 1988. A Convenção 169 da OIT foi promulgada no Brasil em 19 de abril de 2005, e o Estatuto do Índio está vigente desde 21 de dezembro de 1973. O que mudou então?

Na verdade, havia o fundamento jurídico positivado, quase latente. Porém, faltava um caso paradigmático e uma manifestação jurisdicional reconhecendo-o a partir desse viés. Parece vanguardista (e de fato o é), mas sua legitimação normativa não é recente.

Outro ponto a ser destacado é que tal decisão, longe de ser pacífica, aponta numa direção, cujo caminho ainda há de ser construído. Faltam normas para a plena (ou melhor) aplicabilidade desse instituto ainda desconhecido.

Se é verdade que os costumes indígenas têm guarida constitucional, incluindo seus métodos de resolução de controvérsias e julgamentos de crimes, seu balizamento e limites ainda são tíbios. Boa parte do Estatuto do Índio é incompatível com os parâmetros constitucionais adotados pela CF/88, e sua melhor normatividade ainda está no artigo 9º da Convenção 169 da OIT, que diz: “Na medida em que for compatível com o sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros”.

Logo, o reconhecimento estatal dos métodos de repressão indígena aos delitos exige alguns requisitos mínimos, a serem verificados no caso concreto:

a) compatibilidade com o sistema jurídico nacional: não é necessário ser igual, apenas compatível, com possibilidade de coexistência e similitude mínima. Por exemplo, na exigência de ampla defesa e contraditório, cabe ressaltar que os “julgamentos indígenas” em geral são precedidos de amplos e longos debates envolvendo todos os interessados e os membros da comunidade, havendo, portanto, paridade;

b) compatibilidade com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos: também dependente da análise casuística. Uma pena de tortura física, por exemplo, não pode ser chancelada apenas por ser um método de repressão indígena de delitos, já que é incompatível com os direitos humanos;

c) métodos tradicionais: como o reconhecimento decorre de usos e costumes indígenas, deve ser tradicional daquele povo, o que aliás, se harmoniza com a proteção constitucional do artigo 231, que reconhece aos índios suas tradições. Na dúvida, um exame antropológico com laudo pode apresentar a comprovação necessária para a tradicionalidade daquele método de repressão.

Podemos acrescentar um novo requisito, a partir do entendimento iterativo do Supremo Tribunal Federal, que é a razoabilidade e a proporcionalidade entre a punição e o crime. Isso porque situações concretas não razoáveis, como uma pena de (apenas a) expulsão da comunidade para um crime de homicídio com requintes de crueldade, não pode ser chancelada pela jurisdição estatal, já que não guarda relação de proporcionalidade mínima entre o fato e a punição.

Interessante buscar, na experiência do Direito Comparado, o exemplo dos Estados Unidos. No sistema americano, conforme Bulzomi[4], o Indian Civil Rights Act of 1968 limitava a chamada “jurisdição tribal criminal” para o misdemeanor (crime punível com pena de até 1 ano de prisão[5]), mas impedia o julgamento dos felonies (aqueles puníveis com pena de prisão superior a um ano[6]). Destaca ainda Bulzomi[7] que o Tribal Law and Order Act of 2010 (TLOA) aumentou a competência indígena para os felonies cuja pena não seja superior a 3 anos por fato, limitada a 9 anos[8]. Entretanto, Bulzomi[9] afirma que esse aumento na competência indígena depende da habilidade da tribo de providenciar um advogado habilitado para o réu, e o juiz que preside o julgamento ser um advogado licenciado com “treinamento legal suficiente”; a tribo ainda deve disponibilizar a legislação penal e processual e o registro dos procedimentos tribais. Por fim, é proibido à corte indígena aplicar penas cruéis[10].

Como se vê, na experiência estadunidense há limites rigorosos nas regras de competência e procedimento penal, não sendo suficiente o crime cometido por índio contra índio em terra indígena. Além disso, o crime cometido por não índio contra índio em terra indígena é de competência federal[11].

No caso brasileiro, não há uma legislação federal como o TLOA, estabelecendo quais crimes podem ser julgados pela comunidade indígena e quais não, nem se estabelecem regras procedimentais mínimas. Tal lacuna pode conduzir a excessos nos dois sentidos — negando o direito ao reconhecimento da punição aplicada tradicionalmente pelos indígenas ou admitindo-o indistintamente, de forma desproporcional e desarrazoável.

Na falta de normas mais específicas, a doutrina e a jurisprudência comumente negligenciam os direitos indígenas ou os tratam a partir de parâmetros ultrapassados. Porém, novos tempos pedem novos direitos, ou o reconhecimento daqueles há muito negados.

Aqui há um novo desafio para o profissional jurídico, um novo olhar sobre velhos problemas. É preciso que os processos envolvendo índios sejam lidos a partir de uma ótica diferenciada e de modernos conceitos pluralísticos e multiculturais, rompendo com certos estigmas preconceituosos do passado. Afinal, a construção de uma sociedade igualitária e democrática passa necessariamente pelo reconhecimento e respeito dos direitos dos povos indígenas há séculos olvidados.


[1] TJ-RR, Apelação Criminal 0090.10.000302-0, Câmara Única, Turma Criminal, rel. des. Mauro Campello, julgado em 18/12/2015.
[2] Fernando César Costa Xavier, Questão de concurso aborda direito de punir de comunidade indígena. Disponível em <http://emporiododireito.com.br/questao-de-concurso-aborda-direito-de-punir-de-comunidade-indigena-por-fernando-cesar-costa-xavier/>acessado em 6/7/2017.
[3] Op. Cit.
[4] Michael J. Bulzomi, J.D. FBI Law Enforcement Bulletin, Indian Country and the Tribal Law and Order Act of 2010. Disponível em <https://leb.fbi.gov/2012/may/indian-country-and-the-tribal-law-and-order-act-of-2010> acessado acessado em 6/7/2017.
[5] Disponível em <http://criminal.findlaw.com/criminal-law-basics/what-distinguishes-a-misdemeanor-from-a-felony.html> acessado em 6/7/2017.
[6] Disponível em <http://criminal.findlaw.com/criminal-law-basics/what-distinguishes-a-misdemeanor-from-a-felony.html> acessado em 6/7/2017.
[7] Op. Cit.
[8] Op. Cit.
[9] Op. Cit.
[10] 25 USCode §1302. Disponível em <https://www.law.cornell.edu/uscode/text/25/1302?qt-us_code_temp_noupdates=0#qt-us_code_temp_noupdates> acessado em 6/7/2017.
[11] Bulzomi, Op. Cit.

André Paulo dos Santos Pereira é promotor de Justiça do MP-RR, mestre em Economia, professor da Universidade Federal de Roraima e integrante do Ministério Público Democrático.

Crédito Foto: Ana Volpe/Agência Senado

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