14/10/2016
Ponto na Curva
Vontade do cidadão tem de ser protegida da corrupção eleitoral religiosa
Por Roberto Livianu, diretor do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), promotor de Justiça em São Paulo e doutor em Direito pela USP.

E Renato Ribeiro de Almeida é advogado, professor de Direito Eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
O controle do abuso do poder nas eleições é um dos principais focos do Direito Eleitoral, conferindo a legislação importante papel ao Ministério Público, que, desde a Constituição de 1988 foi investido na condição de organismo protetor da cidadania no plano coletivo.
A redação do artigo 41-A (trazida pela Lei 9.804/1999) é bastante ampla e estende o entendimento para além do simples oferecimento de valores em troca do voto, mas também reconhece que doar, oferecer, prometer ou entregar ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, qualquer tipo de vantagem pessoal, inclusive cargo ou função pública, constitui igualmente o mencionado ilícito eleitoral na esfera cível.
As mesmas condutas caracterizam, na seara criminal, o crime de corrupção eleitoral, previsto no artigo 299 do Código Eleitoral. No caso desse tipo penal, o referido artigo do Código Eleitoral é de ação múltipla, bastando a comprovação de qualquer das condutas elencadas para que se tenha a prática criminosa.
O bem jurídico tutelado é a preservação da vontade do eleitor quando da livre escolha de seus candidatos. No caso, mesmo que a conduta do agente não altere o resultado final das eleições, posto que restrito a um grupo reduzido de cidadãos ou até mesmo um único eleitor, a prática da captação ilícita de sufrágio é tão reprovável que justifica a cassação do registro ou do diploma, o que implica impedir que o candidato beneficiado exerça cargo público eletivo.
Em outras palavras, a legislação eleitoral salienta que embora o voto seja livre e manifestado individualmente na cabine de votação, este não pode decorrer da conjugação espúria de interesses que conspurcam o que mais se espera de uma eleição: que ocorra de forma isonômica, que a vontade do eleitor seja respeitada e que, portanto, o pleito seja processado de forma justa, permitindo competição leal.
A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é pacífica no sentido de bastar a comprovação do ilícito para a obtenção espúria de um simples voto para que sejam aplicadas as sanções prevista pelo artigo 41-A.
Um dos primeiros casos que chegaram ao TSE, tido por muitos como quase folclórico, decorre da situação de determinado candidato a cargo eletivo municipal no interior da Bahia que oferecera ao um eleitor uma caixa d’água em troca do voto. O candidato foi eleito, mas o eleitor espalhou entre seus conhecidos que havia sido sagaz ao receber o presente, mas que votara no candidato da oposição.
Ao tomar conhecimento desse fato, o novo prefeito ordenou que fossem até a residência do eleitor e removessem a referida caixa d’água, já que o eleitor não cumprira a com sua parte no acordo. Após a retirada, inconformado, o eleitor levou os fatos ao conhecimento do Ministério Público Eleitoral, sendo promovida ação na Justiça Eleitoral que culminou na cassação do diploma do agente[1]. Três questões processuais são importantes nesse ponto:
i) Possuem legibilidade ativa para propor ação judicial pela prática prevista no artigo 41-A da Lei das Eleições partido político, coligações, candidatos ou o Ministério Público, podendo cada um dos interessados propor ação de forma individual ou em litisconsórcio ativo facultativo. O cidadão não tem legitimidade para ingressar sozinho no polo ativo da demanda, mas pode levar os fatos e provas aos mencionados legitimados;
ii) A prática da captação ilícita de sufrágio tanto pode ter como agente o próprio candidato quanto qualquer pessoa a ele ligado, imprimindo-se como suficiente que haja o candidato participado do ilícito ou com ele consentido, de forma explícita ou tácita;
iii) Há necessidade de comprovação do dolo, ou seja, o pedido de voto, que pode ser tanto de forma explícita quanto implícita, indireta ou insinuada. O TSE já firmou jurisprudência sobre as expressões “conto com você”, “conto com seu apoio”, “não se esqueça de mim”.

Em 2009, a Lei 12.034 incluiu no artigo 41-A o parágrafo 2o, cuja redação literal é: “as sanções previstas no caput aplicam-se contra quem praticar atos de violência ou grave ameaça a pessoa, com o fim de obter-lhe o voto”.
Nos tempos atuais, diante da ocupação cada vez maior de espaços por parte de líderes religiosos na política, impõe-se que a Justiça Eleitoral, Ministério Público, advogados militantes na área eleitoral e até os próprios candidatos estejam atentos em relação a possíveis constrangimentos de autoridades eclesiásticas junto a seus fiéis em favor do voto em si ou em terceiro em detrimento da sinceridade do eleitor.
Nesse ponto, a redação do mencionado parágrafo admite a interpretação de que se configurada grave ameaça a pessoa, com fim de obter-lhe o voto, a conduta de uma autoridade religiosa impor aos seus fiéis que determinado candidato deve ser eleito em detrimento de outros.
No caso, a ameaça de sanção pela prática do pecado em votar em candidato não preferido ou não abençoado pela autoridade espiritual constrange a vontade do eleitor que é seu fiel, especialmente por meio de construções mentais e religiosas que, na situação limítrofe, tutelaria o entendimento do eleitor.
Esse entendimento é mais grave do que o previsto pelo parágrafo 4o do artigo 37 de Lei das Eleições, que estende, por meio de acepção própria do Direito Eleitoral, o conceito de bens de uso comum para além do disposto do Código Civil.
Nesse caso, é proibida a campanha política nos templos religiosos, por serem locais de frequência pública, mesmo que considerados de natureza privada. No caso, para que seja garantida a maior igualdade possível na disputa pelos cargos eletivos, não se admite a mistura entre religião e proselitismo político, valendo lembrar o caráter laico do Estado brasileiro, modelo adotado desde a Constituição de 1891.

Voltando ao caso do parágrafo segundo do artigo 41-A, captação ilícita de sufrágio ultrapassa o conceito de mera propaganda política em templo religioso, já que caracteriza a ideia de que o ato pessoal de não votar no candidato preferido pela igreja constituiria pecado, que seria punido por Deus. Estar-se-ia impondo a vontade do líder espiritual pela ameaça.
Nesse ponto, evidente que um fiel, assíduo na frequência e também nos hábitos comuns a determinado credo, tomará as palavras proferidas como um mandamento, justamente por confiar e acreditar no que é dito pela autoridade eclesiástica. Nada mais ameaçador e assustador a um fiel do que o pensamento que seu pecado — no caso a desobediência a seu líder religioso — poderá ensejar a fúria divina, problemas pessoais, entre outras perturbações possíveis.

Já há condenações esparsas baseadas nesse entendimento. Mas certamente seu número é ainda reduzido diante do proselitismo político diário praticado por disseminadores de credos de variadas naturezas e denominações.
Sendo assim, as eleições municipais de 2016, em conturbado momento político por que passa o país, cujas preferências ideológicas confundem-se com crenças religiosas, exigirão da Justiça Eleitoral, do Ministério Público Eleitoral e dos advogados eleitoralistas redobrada atenção. Deve sempre ser protegida a livre manifestação de vontade do eleitor e a corrupção eleitoral, repelida, seja ela econômica, religiosa ou de qualquer outra natureza.
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