Por Charles Hamilton Santos Lima e André Silvani da Silva Carneiro
Parece por demais evidente a compreensão de que o Ministério Público é essencial à função jurisdicional estatal, assim como o princípio do devido processo legal é um regramento consagrado e igualmente cristalino, ao menos segundo a Constituição da República.
Tais aspectos constitucionais pátrios assumem ainda maior relevância e destaque para o Ministério Público no âmbito do processo penal, dado que não apenas a sua especial incumbência de custos legis resta preservada, mas ainda se destacando a privativa condição de titular da ação penal pública, protagonismo que tem bases históricas profundas.
Todavia, ao menos no âmbito do Poder Judiciário em Pernambuco, tão elementares percepções passaram a ser institucionalmente relativizadas, com a edição da Recomendação 01, de 13 de novembro de 2014, do Conselho Superior da Magistratura pernambucana, exortando aos juízes com competência penal a realizarem os atos processuais sem a intervenção do Ministério Público.
A recomendação, apoiada em considerações inaplicáveis aos seus graves propósitos, apenas condiciona a que tenha ocorrido a intimação para o ato, pouco interessando até mesmo se no momento de tal formalidade já se sabia da existência de impedimento ou se a impossibilidade surge de forma superveniente, como no caso de atuações simultâneas e incompatíveis materialmente entre si, fisicamente impossíveis de serem compatibilizadas, tal qual ocorre com outras instituições (advocacia, Defensoria e o próprio Judiciário).
Tal prática se afigura contraditória com a própria incumbência constitucional do Poder Judiciário, ao violar o princípio da legalidade, ignorando totalmente os termos dos artigos 5º, LV e 129, I, da Constituição Federal e ainda os artigos 257 e 564, III, alínea “d”, do Código de Processo Penal. Em que pese não ser o ato vinculativo, preservando a autonomia do magistrado, tem servido de anteparo e estímulo a atuações exorbitantes por parte de muitos magistrados.
Na realidade, optou-se por mecanismo unilateral inaceitável em um Estado Democrático de Direito. Por isso mesmo não resolve o problema gerado pelo escasso número de promotores de Justiça em Pernambuco, mas dificulta sobremaneira o seu real enfrentamento, acrescentando outras mazelas à prestação jurisdicional penal já tão precária e falha. É instrumento de gestão administrativa comprometida apenas com números, mas certamente imprestável mecanismo ao operador do Direito: negação do devido processo legal e das privativas funções de custos legis e de titular da ação penal pública pelo Ministério Público, que passa a ser exercida pelo próprio julgador.
De fato, na prática isso tem gerado ações penais monstruosas, onde o papel do Ministério Público se limita ao oferecimento da denúncia (pela central de inquéritos), com nenhuma atuação do promotor natural, senão o recebimento do processo para tomar ciência da sentença, no mais das vezes condenatória. Condenatória!
E é imperativo repisar, claramente: muitas sentenças têm sido proferidas, também com a dispensa das alegações finais do Ministério Público, e, para piorar, alguns magistrados têm negado seguimento ao recurso, sob o inusitado argumento de que falta interesse de agir ao órgão, supostamente evidenciado pela ausência à audiência de instrução. É ou não é a volta ao modelo inquisitorial, quando a figura de acusador e julgador se fundiam num único agente público?
A situação é no mínimo inusitada, remontando a conjectura sensivelmente mais grave até mesmo do que se observava no período em que se admitia a figura do promotor ad hoc, posto que, nesse caso, ao menos um personagem diverso do julgador fazia as vezes do “acusador”. É a situação prática e real do juiz que processa, produz a prova e condena, em feito em que coube ao Ministério Público, de efetivo, o oferecimento da denúncia apenas.
Mas o problema se torna ainda mais grave e preocupante para o Ministério Público nacional, na medida em que o enfrentamento do caso por meio de um Procedimento de Controle Administrativo (PCA), pela Associação do Ministério Público de Pernambuco (Amppe), junto ao Conselho Nacional de Justiça, resultou na validação da malfadada recomendação, com confusos e contraditórios votos da maioria dos conselheiros, ainda firmados em premissas absolutamente equivocadas e com citações jurisprudências inaplicáveis à hipótese.
O prejuízo é evidente: tal práxis agride fortemente o contraditório, o devido processo legal e o direito a um juiz imparcial — garantias constitucionais que dão o sustentáculo ao sistema acusatório.
Particularmente no que concerne à imparcialidade do magistrado, vale reler o seguinte trecho de Gustavo Badaró: “Um julgamento que toda a sociedade acredite ter sido realizado por um juiz parcial será tão pernicioso e ilegítimo quanto um julgamento realizado perante um juiz intimamente comprometido com uma das partes”.
Cabe aqui a advertência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos quando do julgamento do Caso Delcourt vs. Bélgica: “A justiça não só deve ser feita; mas também deve ser vista como sendo feita”.
Por certo, um só ator produzindo a prova e ao final julgando o caso não constitui a melhor representação da justiça sendo feita.
E, se tal enredo permanecer, teremos por fim um Ministério Público não mais essencial… apenas eventual. Em Pernambuco, já é quase assim.
Charles Hamilton Santos Lima é procurador de Justiça de Pernambuco e 1º vice-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).
André Silvani da Silva Carneiro é promotor de Justiça de Pernambuco e associado do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).
Clique aqui para ler o original no Conjur
Imagem: Arquivo/Web
Deixar um comentário