Reforma partidária moralizadora depende apenas da aplicação mais rigorosa da lei

Por Airton Florentino de Barros, foi procurador de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, fundador e presidente do MP Democrático. É advogado
1. Inicialmente, para a melhor compreensão do tema, não custa fazer uma síntese de antecedentes históricos.
Sabe-se que, desde a Grécia antiga, havia eleições de representantes populares. É possível ainda que a eleição tenha sido o critério de escolha de chefes de aldeias indígenas brasileiras já no período pré-colombiano. A cidade paulista de São Vicente seria mesmo o berço da democracia continental, porque ali teria se instalado em 1532, por eleição, a primeira Câmara Municipal das Américas, como afirma Tito Ferreira?
De qualquer modo, só a partir da Declaração francesa dos Direitos Humanos, de 1789, difundiu-se a ideia de assegurar a qualquer cidadão, em igualdade de condições, o direito de participar do governo de seu país, consagrando-se só então os ideais democráticos e republicanos, o que se confirmou na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
O grande nó desse sistema é que, para ser eleito, deve o cidadão apresentar-se ao colégio eleitoral, expondo suas ideias e buscando a confiança dos eleitores. E isto nunca foi fácil.
Nas sociedades tribais, dado o pequeno número de habitantes, menos trabalhoso era o julgamento dos candidatos pelos eleitores, dispensando-se até as apresentações.
Com o crescimento demográfico, todavia, ficou muito mais difícil tanto ao candidato apresentar-se à comunidade, como ao cidadão conhecê-lo suficientemente, de modo a depositar nele a confiança a ponto de outorgar-lhe mandato. Aliás, a cega confiança sempre levou o eleitor a comprar gato por lebre.
Mais difícil ainda ao eleitor é limitar os poderes conferidos.
Até por isso, para a alteração de certos dispositivos da primeira Constituição brasileira, por exemplo, a Lei de 12 de outubro de 1832 determinou que os eleitores conferissem procuração com poderes especiais aos deputados que elegessem para aquela legislatura.
Com a evolução natural desse processo, a alternativa foi a criação de agremiações que unissem cidadãos com identidade de propósitos governamentais e propostas de políticas públicas compatíveis com o seu pensamento, com o objetivo de, ao assumirem o comando da administração pública, concretizarem seus ideais.
Acontece que, na medida em que os princípios da democracia se sedimentavam, ideais políticos diversos dos adotados pelos então chefes de Poder não podiam mais ter sua existência desconsiderada. Criaram-se, então, os Partidos Políticos.
Nos Estados absolutistas, não havia lugar para dissidência em relação aos ideais políticos do Poder governante.
No Brasil, a proclamação da República extinguiu os Partidos da Monarquia, enquanto o Estado Novo proibiu a existência de qualquer Partido e os Governos Militares, por sua vez, admitiram artificialmente o bipartidarismo.
Há hoje no país 35 Partidos Políticos registrados no TSE, não preenchendo a maioria os requisitos básicos para esse fim.
2. Embora sintética, a definição legal de Partido Político demonstra claramente sua natureza e função.
É verdade que aos políticos profissionais não interessa a transparência, sendo então compreensível a vagueza literal da CF ao tratar dos Partidos Políticos. Indica ela, de qualquer forma, as características conceituais dos Partidos, ao exigir, por exemplo, para a elegibilidade do cidadão, a prévia filiação partidária (art.14, §3º, V e 77, §2º), normas estatutárias de fidelidade e disciplina partidária (art.17, §1º), além de lhes assegurar recursos públicos e acesso gratuito ao rádio e à televisão (art.17, §3º).
Para bom entendedor, definição mais do que explícita, ainda mais considerando que a Lei especial dispõe que o Partido Político, como pessoa jurídica de direito privado, destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na CF (Lei 9.096/95, art.1º).
Isto significa que, ao votar no candidato de determinado Partido, é como se o eleitor estivesse lhe outorgando poderes especiais para só agir ou votar compativelmente com a implementação das ideias de políticas públicas estatutárias que teriam ensejado a criação daquele ente partidário, objeto de previa publicação (Lei 9.096/95, art.44, II, 45, 49).
Daí a exigência de fidelidade partidária (CF, art.17, §1º; Lei 9.096/95, art.15, V, 22-A e 25), que à evidência não tem a finalidade apenas de vincular o candidato eleito ao seu Partido, mas de assegurar simétrica fidelidade do Partido com seus eleitores.
Diferente das sociedades de pessoas e de capital, é o Partido Político uma sociedade de ideias políticas, que são o núcleo de sua constituição.
Aliás, até em observância do princípio da impessoalidade que norteia a administração pública (CF, art.37), não importam as pessoas que possam assumir a condição de agentes públicos, importando, sim, o seu compromisso com os termos do mandato popular, limitado justamente pelas ideias políticas fundamentais integrantes do estatuto de seu Partido.
Se assim não fosse, o Partido Político não justificaria sua existência e nem teriam a CF e a Lei ordinária exigido, para qualquer candidatura a cargos eletivos oficiais, a prévia filiação partidária (art.14, §3º, V e 77, §2º; Código Eleitoral, art.2º).
3. A grande questão é saber o que seria uma ideologia política que, como é do senso comum, não se define por expressões vagas.
Em oposição aos Estados absolutistas, surgiu a defesa da Democracia. Como os desmandos do absolutismo estavam muitas vezes ligados à Monarquia, agarrou-se ao regime Republicano. As supostas mazelas do Capitalismo justificaram a grande adesão ao Socialismo e vice-versa. O Liberalismo, por sua vez, trouxe uma flexibilização desses dois últimos regimes, de tal modo a fazer com que os socialistas admitissem a economia de mercado e os capitalistas, de seu lado, a função social da propriedade, sem contar que o Neoliberalismo globalizado misturou todas as referidas ideologias num único samburá, substituindo por completo o seu conceito filosófico pela linguagem puramente econômica.
Durante muito tempo, para a identificação ideológica dos Partidos Políticos, bastou o uso dessas expressões, porque até recentemente foi importante a discussão acerca dos princípios doutrinários da democracia e da república, do capitalismo e do socialismo, por exemplo.
Hoje, todavia, até mesmo democracia e república se confundem, constituindo a esta altura, em conjunto, direito da humanidade. Aliás, mesmo os Estados monárquicos apresentam administração republicana, contando com o monarca apenas como figura decorativa de representação solene do Estado.
Tais expressões, portanto, nada revelam hoje acerca da identidade ideológica do Partido Político.
Apesar disso, os Partidos registrados no TSE apresentam-se exatamente dessa forma confusa, distante da democracia esperada, a desinformar o eleitor.
Ora, não importa ao eleitor se o Partido é de Esquerda, de Centro ou de Direita. O que mais lhe preocupa, conforme as ultimas pesquisas de opinião pública, são a saúde, a segurança pública e o emprego.
4. Sucede que, como a evolução civilizatória impede que a Política seja estática, o conceito de ideologia política há de contextualizar-se com realidade contemporânea. E, na atualidade, registrar e divulgar a existência de um Partido Republicano, Democrático, Liberal, por exemplo, equivale a dar-lhe nula identidade ideológica. É que tais expressões são confusas, vagas ou imprecisas, não oferecendo ao eleitor as informações necessárias para a sua escolha.
As ideias que interessam hoje à identificação de um Partido Político são as de políticas públicas concretas que o Partido possa e deva prometer implementar caso chegue ao Poder.
É necessário considerar, pois, que como o Estado só justifica sua existência cumprindo seu dever de assegurar ao cidadão o exercício dos direitos fundamentais e sendo eles definidos na Declaração Universal de Direitos Humanos e na CF como a vida, saúde, liberdade, segurança, propriedade, resistência à opressão, educação, trabalho, transporte, lazer, deve o Partido, como ideologia concreta, anunciar promessa de implementação de ideias de política pública que abranjam esses direitos e demonstrem onde reside sua prioridade.
5. Se o pluralismo político é indispensável, não é menos verdade que a multiplicação de Partidos Políticos com idênticas ideias é reprovável e até inadmissível.
Por força de sua etimologia (dividido ou divisão), chama-se Partido justamente para indicar divisão ou dissidência em relação a uma ideia política já existente. Admitir-se a existência de um único Partido, assim, contrasta com o próprio conceito vocabular, porque sem divisão haveria uma só ideia política absoluta. Pode existir, pois, um Partido para cada ideia efetivamente distinta, não se admitindo, no entanto, a duplicidade ou multiplicação de Partidos com a mesma ideia de outro antes existente. Sem isso, repita-se, deixaria a instituição de ser Partido, para ser unidade ou parte integrante da mesma ideia.
É que o pluralismo político assegurado constitucionalmente (CF, art.1º, V) exige a coexistência de diferentes ideias políticas, daí pressupondo a existência de mais de um Partido Político no país.
Deste modo, o plágio de ideias políticas de determinada agremiação descaracteriza a instituição como Partido Político e prejudica a autenticidade da representação popular na medida em que confunde o eleitor na identificação ideológica de seus candidatos. Não sem razão, é vedado legalmente até mesmo o plágio da denominação, siglas e símbolos partidários (Lei 9.096/95, art.7º, §3º).
Nesse ponto, é importante anotar que nenhum dos Partidos registrados no TSE tem em seu estatuto a indicação de suas ideias fundamentais. Todos, sem exceção, apenas assumem o compromisso de cumprir a Constituição e garantir os direitos fundamentais do cidadão.
Não autenticam, assim, a representação popular, desempenhando, ao contrário, o reprovável fisiologismo.
Não passam de fraude. Sobre prometerem o vago, prometem tudo e não prometem nada. Nenhum compromisso assumem de adotar essa ou aquela política pública. E ao que tudo indica assim procedem deliberadamente a fim de que, flutuando na obscuridade de qualquer ideologia, possam continuar negociando legendas, coligações e tempo de propaganda eleitoral, com a liberdade de, quando no governo, implementarem políticas de gestão distanciadas da ideologia anunciada e, quando não, promoverem a ilícita negociação baseada nos chamados mensalões e nos suspeitos loteamentos de cargos públicos e favorecimentos em liberações de verbas orçamentárias.
6. Não se pode negar a importância da clara identificação ideológica do candidato a cargo eletivo para tornar possível a consciente e livre escolha do eleitorado.
Tem o cidadão o incontestável direito de participar diretamente do governo de seu país. Mas não se apresentará ao eleitorado apenas por suas características pessoais. Será identificado como um cidadão vinculado rigorosamente a determinada ideia política, de forma a dar ao eleitor a certeza de que, além do talento individual do escolhido, contará com um mandatário fiel às políticas públicas que seu Partido prometeu implementar ao chegar ao Poder.
Para que a representação popular se efetive de acordo com a vontade democrática, o núcleo das ideias do Partido será apresentado como sua identidade e compromisso vinculante do próprio Partido, seus filiados e candidatos com os eleitores e não apenas para abrir a agremiação a novas filiações e angariar a simpatia do colégio eleitoral para determinado sufrágio.
Essa a única forma de evitar que o eleitor outorgue mandato em branco, sem nunca saber o caminho que seus candidatos escolherão na hora H, que é o que invariavelmente tem acontecido. Com efeito, um regime em que, no contrato de mandato, o mandatário manda mais que o mandante, porque acha equivocadamente que não lhe deve fidelidade nem prestação de contas.
Forçoso considerar, nesse ponto, que as alterações das ideias políticas fundamentais integrantes do estatuto partidário são obrigatoriamente comunicadas ao TSE não sem motivo (Lei 9.096/95, art.10 e parágrafo). Conforme o caso, a alteração radical da ideologia do Partido poderia até denotar em tese sua tácita dissolução com as consequências legais (art.27), quando, por exemplo, fundisse as suas ideias políticas às de outro Partido.

Apesar disso, tamanha a ausência de identificação da ideologia partidária, que muitos candidatos preferem se apresentar por suas supostas dignidades pessoais, como, por exemplo, Coronel José, Delegada Tereza, Professora Maria, Bispo Francisco.
7. A amplitude da chamada fidelidade partidária também pode ser extraída claramente do regime jurídico vigente.
A nebulosa interpretação da lei a respeito, conveniente aos suspeitíssimos interesses corporativos dos políticos profissionais, não pode prevalecer.
Com efeito, a fidelidade partidária não serve apenas para favorecer o Partido Político, mas sobretudo para assegurar ao eleitor a certeza de que ao escolher determinado candidato estará concedendo poderes especiais para a implementação de determinadas políticas públicas.
Ocorre que, ao contrário do que muitos equivocadamente defendem, os atos dos representantes populares, estejam no Executivo ou no Legislativo, não são todos livres ou discricionários. Em relação à ideologia partidária (ideias de políticas que o Partido promete implementar caso chegue ao Poder), seus atos são vinculados, sob pena de acarretarem danos à representação democrática, ao eleitorado, a todos e a cada cidadão, com a decorrente responsabilidade disciplinar partidária, administrativa, penal e civil.
A fidelidade do candidato filiado ao Partido não teria sentido se o Partido não guardasse frente ao eleitorado a fidelidade em relação ao que prometeu cumprir. É, pois, a fidelidade partidária, ao contrário do que se pensa, muito mais ampla e rigorosa.
Flagrante e deplorável a infidelidade do Partido e de seu candidato eleito à vontade do eleitor, quando, por exemplo, o eleito pelo Partido Socialista acaba integrando a chamada Bancada Ruralista e o eleito pelo Partido Liberal, sem pudor, aceita compor a preconceituosa Bancada Evangélica.
8. Na verdade, há dois planos de ideias partidárias. O das ideias fundamentais, estatutárias, que devem ser permanentes ou de difícil alteração, para que não se modifiquem a cada eleição, surpreendendo o eleitor e quebrando a possibilidade de cumprimento da fidelidade partidária. E o das ideias acessórias, formais, circunstanciais e de adaptação temporal, alteráveis, mas desde que respeitadas as ideias nucleares.
No estatuto inclui-se o que o Partido fará ao assumir o Poder, quais as principais políticas públicas que implementará. No programa, o Partido deve explicar com minúcia como o fará, expondo circunstâncias de modo, tempo e lugar, por exemplo.
Se assim não proceder, perderá o Partido Politico sua identidade e não alcançará por consequência a sua natural utilidade de, na defesa do regime democrático, assegurar autenticidade ao sistema representativo (Lei 9.096/95, art.1º), que só existirá efetivamente quando o agente público eleito respeitar o que o eleitor, ao escolher determinado Partido, aponta como políticas públicas de sua preferência.
Não se diga que seria difícil ao Partido anunciar as ideias de políticas públicas que implementaria caso assumisse o Poder, mesmo porque as que interessam à definição partidária são apenas aquelas destinadas a garantir ao cidadão o exercício dos direitos fundamentais (vida, saúde, liberdade, segurança, propriedade, resistência à opressão, educação, trabalho, transporte, lazer), função típica de Estado.
Ademais, as ideias partidárias estatuárias devem ser gerais e objetivas, de maneira a que o Partido, ao assumir governo, não restrinja suas ações a atender apenas parte da população, com afronta aos princípios republicanos da igualdade, eficiência e impessoalidade (CF, arts.5º e 37).
No âmbito nacional, assim, deve o Partido indicar que políticas públicas gerais promete implementar caso chegue ao Poder, para resolver problemas ligados, por exemplo, à saúde, segurança pública, educação e emprego.
Deverá o Partido, de outro lado, respeitando suas propostas de âmbito nacional, estabelecer a promessa de implementação de políticas públicas específicas de competências regionais ou locais.
9. Rigorosamente, toda e qualquer sociedade ou associação deve constituir-se por estatuto do qual há de constar necessariamente seu objeto que, para cumprir a lei, deve ser preciso e específico.
Note-se que os Partidos Políticos registrados no TSE, sem exceção, fizeram constar de seus estatutos, como objeto social, alcançar o poder, defender os regimes republicano e democrático e assegurar o exercício dos direitos fundamentos pelo cidadão.
Isso e nada são a mesma coisa, pois esses princípios são pressupostos conceituais dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95, art.1º) e não seu objeto. A simples identificação como Partido já indica o dever de cumprir essas determinações. É cair no vazio dizer que cumprirá o que já é obrigado a fazer por imposição da lei.
O verdadeiro objeto da associação que se constitui como Partido Político é a promessa de implementação de específicas, claras e objetivas ideias de políticas públicas. Para o preenchimento desse requisito, cabe ao Partido Político, repita-se, incluir em seu estatuto, como ideias fundamentais, as políticas públicas que promete implementar, caso chegue ao Poder, como, por exemplo, a administração privatizante ou de não intervenção nas atividades privadas; segurança pública de tolerância zero; um direito penal mais repressor; o estabelecimento de determinada medida criadora de empregos; controle efetivo dos planos privados de saúde; digna carreira pública de professores e educação gratuita com curriculum mínimo; tributação mais rigorosa em relação a certas atividade e fim da isenção sobre templos religiosos; liberação de jogos de azar; específico controle de juros; limitação de nomeação de servidores públicos comissionados; esclarecimento de garantias trabalhistas (ou o contrário disso tudo) e daí por diante.
A anarquia ideológica beneficia os oportunistas, que se aproveitam da propaganda política enganosa, como a que anuncia, como programa partidário, por exemplo, melhorar ou acabar com os problemas ligados à saúde, educação e segurança, sem esclarecer como, onde e quando.
10. O objeto estatutário do Partido Político há de ser sempre lícito.
Tem o Partido, é lógico, o dever de seguir rigorosamente os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência (CF, art.37), não podendo incluir em seus estatutos e programas objetivos ilícitos e imorais, discriminatórios, sem transparência ou inexequíveis.
Em princípio, nada impede que o Partido Político inclua em seu estatuto proposta de, ao chegar ao poder, alterar regimes estabelecidos na CF, mesmo os mais rigorosos, como, por exemplo, o regime federativo ou o presidencialismo. Não é ilícita a ideia de alteração constitucional, com modificação de regimes vigentes, mas sempre pelo caminho da legalidade democrática.
Não poderá o Partido, entretanto, propor a implementação de políticas que eliminem ou restrinjam os direitos definidos como naturais ou da humanidade, supraconstitucionais, aqueles assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, como a vida, a saúde, a liberdade, a igualdade, o trabalho e a propriedade, a segurança, a educação, a tolerância religiosa, proibição de qualquer discriminação entre os indivíduos, nem muito menos qualquer intenção de comprometer o regime democrático (CF, arts.5º, §§1º e 2º e 17).
É que a observância desses direitos é pressuposto para a própria constituição legítima de qualquer Estado civilizado.
Sob esse raciocínio, exemplificativamente, o Estado laico funda-se na tolerância religiosa, de forma que não se pode admitir que um Partido Politico apresente como proposta estatutária fundamental, constante de sua própria denominação, um regime de governo dito Cristão, porque, se e quando assumir o governo, não poderá implementar essa ideia. Não poderá governar apenas para os cristãos e nem mesmo discriminar os devotos de outras religiões.
Em outro exemplo, não há impedimento, em princípio, para incluir nas propostas fundamentais do Partido a promoção de políticas que garantam a igualdade numérica entre mulheres e homens nos cargos públicos. Pelo contrário, seria até de rigor. Todavia, a proibição de discriminação de gênero é de ordem supraconstitucional.
Incompreensível, assim que se admita um Partido que, já na sua denominação, prometa assumir para governar exclusivamente para a mulher. O chamado Partido da Mulher sob esse aspecto, além de desrespeitar o direito natural, é afrontoso aos princípios da isonomia, impessoalidade e da eficiência (CF, arts.5º e 37). Assim também o Partido dos Trabalhadores ou dos Operários ou dos Patrões.
As ideias fundamentais do Partido Político, não custa repetir, devem ser gerais e objetivas para que, ao assumir o Poder, não governe ele apenas para fragmentos sociais.
11. O Partido Político há de ter denominação lícita e útil.

O ideal seria que a denominação do Partido apontasse todas as suas ideias fundamentais. Mas ainda que isso não seja possível, deve ela, como bandeira partidária, até pela exigível observância do princípio da veracidade, guardar rigorosa compatibilidade com as bases estatutárias. O certo é que o que constar da legenda vinculará a atividade do Partido, candidatos e filiados.
De fato, o nome do Partido há de seguir o princípio da utilidade, apontando, na medida do possível, as ideias fundamentais, a fim de dar ao eleitor a informação necessária acerca do núcleo do mandato que irá conferir ao partido, se escolher um de seus candidatos. Tanto que, após o registro de um partido, nenhum outro poderá utilizar-se do mesmo nome ou de variações que possam deixar o eleitor confuso (Lei 9.096/95, art.7º, §3º), prejudicando a autenticidade da representação popular.
O nome do Partido não se destina ao marketing partidário. É sim instrumento informativo de sua identificação ideológica, sendo o eleitor seu principal destinatário.
Note-se que, entre os Partidos registrados no TSE, 9 apresentam-se como Trabalhistas; 5 Socialistas; 3 Sociais Democráticos; 3 Republicanos; 3 Cristãos; 2 Sociais Liberais, nomes que hoje nada representam. Há até Partidos que seriam melhor identificados se chamassem “Partido Sem Ideologia”, como, por exemplo, Partido da Mobilização Nacional, Partido Pátria Livre, Partido Novo.
Em realidade, os nomes que registram, na maioria, são vagos ou não passam de duplicidades ou variações ilegais, causando grande confusão no julgamento e escolha do eleitor. A denominação de outros e o nada são a mesma coisa. Aliás, por absurdo, há Partidos que são mais conhecidos pelo nome de seus fundadores e comandantes vitalícios.
Na defesa da autenticidade do sistema representativo, melhor seria se os nomes dos Partidos indicassem a ideologia partidária de forma mais direta e pragmática, como, por exemplo: Partido da Privatização; Partido da Estatização; Partido da Educação Gratuita; Partido da Segurança Pública Tolerância Zero e por aí afora.
12. Ademais, não pode existir Partido Político sem democracia interna, eis que o pluralismo político exigido constitucionalmente tem também o sentido de admitir entre os próprios filiados diferentes ideias.

Mecanismo indispensável à participação popular nos processos eleitorais e, assim, instrumento democrático, seria um contrassenso que os Partidos Políticos pudessem constituir-se sem democracia em sua estrutura interior.
Para o eleitor e para a República não importam as pessoas dos candidatos, mas as ideias de seus Partidos.
As normas constitucionais e legais reguladoras do processo eleitoral oficial (relativas à elegibilidade, reeleição, impedimentos, tempo de mandato) deve, assim, refletir-se sobre a estrutura e funcionamento dos Partidos Políticos, impedindo-se que algumas pessoas se apossem eternamente da legenda, para dela se aproveitar individualmente, com dano irreparável à representação popular.
Aliás, exatamente por isso, lamentavelmente, tem ocorrido grande proliferação de novos Partidos com ideias idênticas às de outros já existentes. É que, à ausência de democracia estrutural, diante da dificuldade de enfrentar a contenda interna, baseada em convenções apenas formais, em que apenas se homologam as decisões anteriormente adotadas por seus fundadores, prefere o filiado rejeitado, preterido ou isolado criar nova agremiação política, embora mantendo a mesma ideologia.
Ora, ainda que se definam como entes de natureza privada, os Partidos Políticos tem finalidade notoriamente pública (Lei 9.096/95, art.1º), além de serem subsidiados por recursos públicos, inclusive pela gratuidade da propaganda eleitoral (CF, art.17, §3º; Lei 9.096, arts.38, 41-A e 45). Não podem se constituir como propriedade privada de fundadores e filiados, dos tais políticos profissionais, dirigentes vitalícios, negociantes de legenda, ação entre compadres e amigos ou, até, em certos casos, servindo a organizações criminosas.
Por absurdo, os Partidos tornaram-se, de fato, sindicatos, associações de classe ou instituições de defesa corporativa dos políticos profissionais. Um instrumento antidemocrático a garantir a eleição do mais qualificado a conseguir maior financiamento não contabilizado ou de caixa dois, sempre com origem na corrupção.
Cuida-se, pois, de artifício destinado a manter a oligarquia de sempre no Poder, impedindo o livre acesso do cidadão aos cargos eletivos do Estado.
13. A mudança depende da coragem de todos. Há muito tempo se fala na necessidade de reforma política. E não é possível esperar mais.
A atual estrutura partidária é responsável em grande parte pela decadência moral da política nacional e a simples observância mais rigorosa da lei, como se viu, pode significar uma reforma moralizadora.
Até considerando a relutante inércia do Legislativo em relação à necessidade de ao menos discutir transparentemente o tema, poderia uma relevante reforma política, partidária e eleitoral partir do Poder Judiciário que, se fizer uma peneira, por exemplo, para a verificação de preenchimento dos pressupostos básicos à constituição dos Partidos Políticos, como se demonstrou, tornará até dispensável a instituição das tão polêmicas cláusulas de barreira. A redução do número de Partidos será inevitável.
De fato, como órgão responsável pelo registro de Partidos (Lei 9.096/95, art.7º), o Tribunal Superior Eleitoral poderia anular o registro ou impedir a sua realização quando não atendidos os mencionados pressupostos, além de, com seu poder regulamentar (Código Eleitoral, art.23, IX), impor regramento mais rigoroso para a elaboração ou adaptação dos estatutos e programas partidários aos citados princípios.
De sua parte, o Ministério Público, por meio da ação civil pública, a exemplo do que ocorreu há alguns anos com os temas da fidelidade partidária e da proporcionalidade do número de deputados e vereadores, poderia provocar decisões judiciais que obrigassem os Partidos políticos a se adequarem aos princípios suscitados e a se estruturarem com efetiva democracia interna, eliminando, assim, o chamados cardeais, caciques ou cartolas no vitalício comando partidário, prática que tem favorecido a corrupção generalizada.
O fortalecimento dos Partidos como identificação ideológica de seus candidatos e a séria observância da fidelidade partidária, com sua real amplitude, reduzirá a necessidade de financiamentos de campanhas eleitorais, hoje indevidamente baseadas no marketing pessoal do candidato.
A imposição de estrutura interna democrática, a garantir a todos os filiados o acesso efetivo aos órgãos diretivos do Partido e a renovadora rotatividade de candidatos seria, por fim, uma eficaz maneira de evitar que os eleitores, num regime dito democrático, continuem a ser chamados a votar não em candidatos em quem gostariam de votar, mas em quem esses Partidos sem ideologia lhes impõem, entre o ruim e o pior, mandatários que fazem questão de agir contra a vontade de quem os elege.

Foto: Agência Senado