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Consumidores merecem respostas efetivas sobre a operação carne fraca
Por Deborah Pierri
“Não comerás nada do que seja impuro” (Dt 14:3). Essa é a regra encontrada no Antigo Testamento, atribuída a Moisés em 1.200 a.C, que, além de liderança religiosa, exercia a condição de legislador ou de intérprete da lei divina.
A impureza das coisas parece também ser fonte inspiradora na designação da operação carne fraca, deflagrada pela Polícia Federal, até porque nas primeiras impressões, tiradas junto à mídia, há certo paralelismo com a vulnerabilidade humana em sua tendência ao conforto e às benesses materiais, assim como indicado no apostolado de Mateus (26.41).
O fato é que no último dia 17 de março ao menos 20 pessoas foram presas num esquema de venda ilegal de carne no mercado interno e externo, bem como por liberação indevida de licenças e fiscalização irregular em duas dezenas de frigoríficos.
A reflexão para além do lamentável indício de corrupção ativa e passiva e outros delitos, inclusive contra a saúde pública, por exemplo, artigo 272 do Código Penal, é pensar forte sobre os direitos dos consumidores.
O silêncio das autoridades que integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, especialmente a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão que integra o Ministério da Justiça e Segurança Pública e que dentre suas atribuições estão as relacionadas no artigo 106 do Código de Defesa do Consumidor e também aquelas previstas nos decretos 7.738/201 e 2.187/97.
Aliás, o silêncio é acachapante se considerarmos o ocorrido em 2007. Naquele ano, o procedimento adotado por Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), Ministério da Justiça, Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Dipoa/DAS/Mapa) e outros órgãos, especialmente os vários Procons pelo Brasil, não apenas demonstraram entrosamento na tarefa de fiscalização, coleta de amostras de leite integral UTH e leite em pó, ou os resultados das operações ouro branco e longa vida também envolvendo a adulteração do leite, mas com transparência informaram à população dados relevantes sobre os produtos por diferentes meios de comunicação.
Certamente que a comercialização de produtos de origem animal depende de prévio registro na Dipoa e no caso de comércio internacional dentre tantos requisitos o cumprimento de condições técnico-sanitárias fixadas pela mesma autoridade e outras regras, conforme Decreto 30.691/52 e sua atualização Decreto 7.216/2010.
A proteção ao interesse dos consumidores e assim também a inocuidade, identidade e qualidade dos produtos representam os objetivos da inspeção e fiscalização industrial e sanitária de produtos de origem animal.
Essa tônica serve à proteção dos negócios internos e externos, reconhecendo-se indiscutivelmente a representação econômica da atividade, que parece ser o maior viés nas respostas dadas até o presente momento pelas autoridades centrais.
Sob o nosso ponto de vista, os consumidores, especialmente os que estejam posicionados no mercado interno, merecem respostas efetivas das autoridades, que devem esclarecimentos mais seguros sobre o tráfego dos produtos oriundos dos frigoríficos relacionados, bem como, inspeção e coleta, ainda que por amostragem, para que se realizem testes sobre os produtos comercializados.
Pensando nas práticas no varejo em grandes centros urbanos, é bastante comum que o consumidor adquira produtos de origem animal sem a perfeita identificação da procedência, ora solicitando o corte de peças, ora adquirindo nas gôndolas de supermercados as carnes em embalagens prontas, cujas informações não vão além do peso, preço e corte.
Ora, sabido que a balança comercial brasileira precisa de proteção, especialmente num momento delicado da economia brasileira, no qual a exportação das carnes brasileiras tem uma posição pilar.
Entretanto, se o embargo internacional é um mecanismo que traz reflexo na competitividade, no preço e muitas outras sequelas, por certo dos consumidores que aqui estejam cabe às autoridades, inclusive ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, cuidar, dedicando-lhe a mesmíssima importância.
Fisiologismo na indicação de autoridades licenciadora e fiscalizadora, apadrinhamento político são sinais da retrógrada postura nada republicana, que destoa do interesse do consumidor, que, aliás, contribui e bem para que autoridades certifiquem empresas e produtos com base em critérios técnicos e científicos, dando aos interessados informações relevantes para o exercício da seletividade.
Tema de tamanha relevância é quase sempre tratado no mercado importador com regras rígidas, marcadas por novos procedimentos de fiscalização, apuração e certificação (certificação de terceira parte até mesmo por organismos internacionais).
O que assusta nesse episódio é uma lista de servidores já afastados pela Corregedoria-Geral do Mapa, mas ainda sim não se viu a atuação da Senacon e de outros órgãos de defesa do consumidor.
Aliás, mesmo no plano político, o governo federal ainda deve algumas respostas mais precisas e transparentes. Isso porque tanto a Senacon quanto a própria Polícia Federal estão no organograma do Ministério da Justiça e Segurança, cuja titularidade é do ministro Osmar José Serraglio, também citado na operação carne fraca.
Então, os consumidores brasileiros estão por quem? O seu direito à informação precisa e clara sobre os produtos; sua proteção contra métodos desleais, seu direito de prevenir-se contra práticas inadequadas, colocando-o como um sujeito do seu tempo e apto na escolha dos produtos, com força para depuração do mercado, que lhe deve respeito e ação transparente.
Na cadeia de produção/comercialização e fornecimento, quais os caminhos percorridos pelos produtos dos 21 frigoríficos inspecionados? Em quais regiões do país? Todos estão expostos aos produtos? E os representantes do povo irão se ocupar basicamente na desqualificação da operação carne fraca?
Os consumidores têm posição relevante na ordem econômica e financeira da sociedade brasileira, o que está inscrito no artigo 170 da Constituição Federal, e isso só de início já valeria exigir atitudes do Estado (Senacon e outros órgãos envolvidos no caso), e não somente dele, pois as empresas envolvidas num negócio que no ano de 2016 implicou em exportações de mais de R$ 12 bilhões, e só com isso gera riqueza econômico-social (emprego/salário/consumo) de grande relevância, devem estar prontas para oferecer informação qualificada, assumindo alguns riscos dos negócios em situações como as experimentadas.
Espera-se que, além do Idec, que logo se ocupou com recomendações aos consumidores, haja mais e mais ações efetivas, que vão além de churrascos divididos com diplomatas e representantes comerciais de outros países, ou discursos de otimismo como o feito pelo presidente Michel Temer, que em suas predições, em evento na Câmara de Comércio Americana, destacou que “se Deus quiser tudo terminará bem”.
A carne pode até não ser fraca, mas o espírito do consumidor nunca precisou ser tão forte.
Deborah Pierri é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo e membro do Ministério Público Democrático.
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Imagem: Arquivo/Shutterstock