Por Airton Florentino de Barros
As notícias são incontáveis. Ora o Executivo dá ao partido um cargo em comissão e, pronto, ele fecha questão mesmo traindo seus eleitores para votar a favor de uma reforma legislativa. Ora libera verba orçamentária para determinado parlamentar, e isso basta para mudar sua posição a respeito de outro projeto de lei ou emenda constitucional.
Interpelados pela mídia, os chefes dos Poderes Executivo e Legislativo vão logo explicando: não se governa sem coalizão, que é comum no mundo inteiro. Afinal, é a democracia se revelando. Sem isso, o Estado fica ingovernável.
Não é bem assim.
De fato, as coalizões partidárias são realmente comuns. Lá fora, contudo, ao menos onde a democracia é mais estável, são elas entabuladas dentro de áreas de interseção de ideologias e interesses de cada partido. A sigla não abre mão, e nem pode abrir, de sua ideologia estatutária. Se uma pessoa é indicada para ocupar cargo importante, cada partido da coalizão analisa a indicação, manifestando-se, por exemplo, quando o nome é inaceitável para a função. A bancada de oposição nunca passa radicalmente à situação, cedendo em certos pontos que não agridam à ideologia do partido, sempre em busca da implementação de políticas públicas compatíveis com o seu pensamento, independentemente da oferta de cargos ou verbas.
Deveria aqui ser assim também.
Nada mais é a república do que o império da lei.
Ninguém ignora, portanto, que, para a sobrevivência do regime republicano, é indispensável o legítimo funcionamento do Poder Legislativo, que, não sem motivo, forma-se por eleição como fiel substrato da sociedade, representando a vontade da maioria dos cidadãos.
Não é por outra razão que, no processo eleitoral, a escolha do candidato ao parlamento se faz a partir de seus dotes morais, habilidades pessoais e promessa de campanha, mas, sobretudo, pela identidade partidária. De fato, sabe o eleitor que seu candidato votará nas alterações legislativas de acordo com a ideologia estatutária e programática de seu partido.
Por isso mesmo é que não se admite candidatura para cargos eletivos oficiais sem prévia filiação partidária. E, para assegurar a autenticidade da representação popular, tem o partido o dever de exigir de seus filiados a absoluta fidelidade à ideologia que defende e propaga.
O destinatário da fidelidade partidária é sempre o eleitor.
Assim, ao contrário do que muitos equivocadamente defendem, os atos dos representantes populares no Legislativo não são todos livres ou discricionários. Em relação à ideologia partidária (ideias de políticas que o partido promete implementar caso chegue ao poder), seus atos são vinculados, sob pena de acarretarem danos à representação democrática, ao eleitorado, a todos e a cada cidadão, com a decorrente responsabilidade disciplinar partidária, administrativa, penal e civil.
Assim, o parlamentar só tem livre voto nas questões não incluídas na ideologia estatutária ou programática de seu partido, a menos que queira se sujeitar às sanções disciplinares, administrativas e civis, conforme o caso.
De outra parte, os cargos públicos, mesmo os de livre nomeação, devem ser preenchidos de acordo com a necessidade e o interesse público, sempre se observando rigorosamente o princípio da eficiência. Não podem agentes do Executivo promover verdadeiro trem da alegria para a compra de votos a favor de projeto legislativos de sua iniciativa.
Isso vale para a liberação de verbas orçamentárias, que não se destinam a atender aos interesses pessoais ou de grupos, mas ao cumprimento de prioridades objetivas de políticas públicas.
Se agentes do Executivo liberam ou deixam de liberar verba orçamentária para a satisfação de interesse pessoal ou de grupos, com o verdadeiro intuito de, por indevida pressão, comprar votos parlamentares, isso pode configurar crime e, certamente, não se chama coalizão partidária, mas organização criminosa. No mínimo, trata-se de conduta configuradora de ato de improbidade administrativa, que pode sujeitar os agentes públicos autores à perda do cargo.
Ademais, a compra de votos parlamentares pelo chefe do Executivo dá a ele o poder de governar sozinho. E esse procedimento medieval pode ser tudo, menos democracia.
Airton Florentino de Barros é advogado e professor de Direito Empresarial. Foi procurador de Justiça em São Paulo e também fundador e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).
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