A evolução dos direitos civis, como quando ocorreu o reconhecimento das uniões homoafetivas, poderia eventualmente servir de base para uma revisão das normas vigentes sobre o conceito de família e casamento? Há espaço para essa discussão? Aguardemos que os Poderes da República, em especial o Legislativo, posicionem-se sobre as mudanças sociais em curso

Por Ivan Carneiro Castanheiro e Soraya Gomes Cardim, 03/10/2024 08h40, Atualização: 03/10/2024 09h05

A SOCIEDADE NÃO FOI, NÃO É E NUNCA SERÁ IMUTÁVEL… E, não raro, nos deparamos com novas expressões, as quais discorrem sobre situações nem não tão novas assim, que tentam “socializar comportamentos”, ainda considerados por muitos como de exceção. A situação de multiconjugalidade não é algo novo ou recente na sociedade brasileira e, quiçá, no mundo.

A multiconjugalidade é o que designa as famílias que se constituem com mais de uma conjugalidade, sejam simultâneas, ou em um mesmo núcleo familiar, ou seja, famílias poliafetivas. Multiconjugalidades, portanto, é gênero que comporta as espécies: famílias simultâneas e poliafetivas, e outras que ainda não têm nominação, e possam ainda estar em curso. E, sem qualquer dúvida, é um fenômeno que desperta discussões em diversas áreas, abrangendo aspectos fáticos, sociais e jurídicos.

Se voltarmos um pouco na história jurídica brasileira, quando ainda estávamos sob a égide do Código Civil de 1916, o qual vigeu no país até 2002, lembraremos que a mulher ao casar tinha o dever de ter a virgindade preservada até o matrimônio, sob pena de anulação do casamento e em casos de traição, por parte da esposa, sob a alegação de legítima defesa da honra, o marido ainda podia ceifar sua vida.

Além disso, durante muito tempo prevaleceu a ideia de que família era somente aquele núcleo fruto do casamento entre um homem e uma mulher, sendo apenas reconhecido como legítimos filhos dele oriundo. Os “filhos bastardos”, assim denominados, permaneciam dentro de um limbo social, sem qualquer direito de reconhecimento.

Diante da modernização social nossas leis também sofreram alterações significativas e de grande relevância. Hoje, a mulher possui direitos, não existe mais o termo “dever de obediência” ao marido e não raro, muitas delas são chefes de família e responsáveis pelo sustento do lar. Além disso, todos os filhos são iguais perante a legislação, sejam eles fruto de um casamento ou de uma mera casualidade. Vitórias sociais de grande relevância, arduamente adquiridas ao passar dos tempos.

Entretanto, analisemos uma situação hipotética… João é casado com Maria há 15 anos e juntos possuem 3 filhos. João sofre um acidente e falece. De repente, no velório, surge Joana, com mais 2 filhos de João e se apresenta como esposa, também. E não menos importante, nada era sigiloso nesse caso entre as mulheres.

Ainda que o comportamento de João não seja moralmente o mais adequado, situações como esta têm acontecido com mais frequência do que se pode imaginar e possui um nome: “MULTICONJUGALIDADE”.

Em nossa Constituição Federal, mais especificamente no artigo 226, são citadas três formas de regulação de família: casamento, união estável e famílias monoparentais. Entretanto, é possível verificar que o rol previsto é exemplificativo quando resta evidente a existência, na sociedade atual, de outras formas de família dentre as quais: socioafetivas, anaparentais, multiespécies, multiparentais e as multiconjugais.

Entretanto, é importante frisar que no Brasil o Código Civil reconhece apenas a união monogâmica como válida. O artigo 1.521 do Código Civil proíbe a poligamia, considerando-a uma infração ao Direito de Família.

No entanto, há discussões sobre a aceitação de uniões estáveis entre mais de duas pessoas, embora ainda não haja um reconhecimento legal formal.

O contexto social atual tem ampliado o debate sobre relações não-monogâmicas e os relacionamentos têm se tornado mais fluidos, em contraste com o modelo tradicional de monogamia.

E qual o maior problema quando analisamos essas situações? As estruturas familiares mais complexas, com múltiplos parceiros desempenhando papéis de cuidado e convivência.

Essas novas dinâmicas exigem adaptação, especialmente em questões como criação de filhos, divisão de responsabilidades e interação com a comunidade e a sociedade, no geral.

Juridicamente falando, temos o direito brasileiro, baseado na Constituição e no Código Civil, que reconhece o casamento como uma união entre duas pessoas, com a exclusividade entre os cônjuges sendo um dos pilares da instituição e não há, oficialmente, o reconhecimento da existência de múltiplas uniões conjugais ao mesmo tempo.

Embora haja reconhecimento de uniões estáveis e casamento entre duas pessoas, o reconhecimento de uniões simultâneas, de maneira consensual, ainda não é abordado de forma clara e objetiva.

Existem, sim, casos isolados onde foram reconhecidos direitos a terceiros envolvidos em uniões múltiplas, como em questões de partilha de bens e direitos sucessórios, ao alegarem a caracterização de uma união estável paralela, mas estamos longe de qualquer pacificação sobre o tema. A maioria das decisões dos tribunais brasileiros está pautada em valores morais, religiosos e com prevalência à monogamia.

No julgamento do processo paradigma do tema nº 529, RE 1.045.273/2020[1] (RECURSO EXTRAORDINÁRIO – que pleiteava o rateio da pensão por morte, entre companheiro e companheira de uniões estáveis concomitantes), ocorrido em dezembro de 2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, fixou a tese de repercussão geral abaixo transcrita, adotada posteriormente em muitos outros julgados:

“A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico constitucional brasileiro.”

Ou seja, a decisão do recurso não atribuiu direitos à segunda família conjugal.

Na doutrina jurídica, há um debate crescente sobre a possibilidade de se ampliar o conceito de família para incluir arranjos conjugais não-monogâmicos. Alguns juristas argumentam que o princípio da dignidade da pessoa humana e a liberdade de organização familiar deveriam permitir que indivíduos escolham os arranjos afetivos e familiares que mais correspondam às suas crenças e necessidades.

Para Maria Berenice Dias, “A justiça não é e nem pode ser cega. É preciso arrostar a vida como ela é e encontrar respostas que imponham a todos a responsabilidade ética pelas próprias escolhas.”[2]

O ilustre Presidente do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), Rodrigo da Cunha Pereira, é um defensor do reconhecimento da força dos costumes, a não contaminação pela moral particular dos julgadores, bem como o respeito ao sujeito de direitos como sujeito de desejos. Vejamos:

“(…) Estes julgamentos (como o do RE 1.045.273/2020) são sustentados pela ideologia patriarcal e uma moral sexual e religiosa, que continuam excluindo, principalmente mulheres, do ordenamento jurídico. Até quando vamos continuar negando este fato jurídico, que é a existência de milhares de famílias que se constituem simultaneamente à outra? Isto não é ético.

A luz no fim do túnel vem, não apenas de Freud, ao trazer compreensão e respeito aos direitos do sujeito de desejos, que em primeira, e em última análise, significa respeito à autonomia privada e autonomia da vontade.”[3]

Outros juristas defendem a manutenção do modelo tradicional, argumentando que a poligamia poderia prejudicar a estabilidade das relações jurídicas, o respeito ao direito de família e ao direito sucessório.

Defensora de uma linha mais conservadora do Direito de Família, Regina Beatriz Tavares da Silva prima por perfilhar a monogamia como eixo estrutural das sociedades ocidentais e negar efeitos jurídicos no âmbito familiar às relações extraconjugais ou mesmo às uniões paralelas ou concomitantes. O fundamento de tal posição, dentre outros, é de que a poligamia não é admitida no ordenamento jurídico brasileiro, o qual prevê impedimentos civis matrimoniais e a tipificação penal da bigamia[4]. Além de criticar aqueles que sustentam a poligamia com fulcro no princípio da dignidade humana, o qual estaria acima do princípio da monogamia, a autora chega ao ponto de afirmar que o (a) a amante não é pessoa digna merecedora da tutela estatal oriunda do Direito de Família, aduzindo também que o fato dos nossos costumes serem monogâmicos justificaria a exclusão do amparo jurídico pretendido às relações não-monogâmicas.[5]

Como visto não há consenso, nem pelos estudiosos do tema.

Em alguns países, como em alguns Estados dos Estados Unidos, existem discussões mais avançadas sobre o reconhecimento de uniões poliamorosas e seus direitos. Já em países islâmicos, onde a poligamia é permitida, há regulamentações duras e específicas para a manutenção de múltiplas esposas.

A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 226, reconhece a família como a base da sociedade e garante proteção estatal a essa instituição, mas seu conceito ainda está atrelado ao modelo monogâmico.

No entanto, uma interpretação mais ampla dos direitos fundamentais pode abrir espaço para o reconhecimento de novos modelos de relações conjugais, incluindo a multiconjugalidade. Apenas não sabemos ainda, nem como, nem quando e se essa regulamentação virá.

A evolução dos direitos civis, como quando ocorreu o reconhecimento das uniões homoafetivas, poderia eventualmente servir de base para uma revisão das normas vigentes sobre o conceito de família e casamento? Há espaço para essa discussão? Aguardemos que os Poderes da República, em especial o Legislativo, posicionem-se sobre as mudanças sociais em curso.