Por Fabíola Sucasas Negrão Covas, dirigente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), Promotora de Justiça e Assessora do Núcleo de Inclusão Social do CAO Cível e Tutela Coletiva
Esta semana estive em uma escola estadual a convite de uma professora para participar de um projeto denominado “Profissões”. Minha missão: conversar com todo/as o/as aluno/as do ensino médio sobre o que é ser promotora de justiça e qual o papel do Ministério Público. Como lançamos um projeto que faz da música um instrumento de empoderamento e de luta contra a intolerância, aproveitei para incluir na pauta.
Eis que sigo em direção a Guaianases, um dos bairros de São Paulo mais vulneráveis em relação a garantia dos Direitos Humanos da cidade, situado na zona leste e onde realizo atividades voltadas à prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Na escola, o/as aluno/as caminhavam com suas cadeiras e seguiam para o pátio, onde já estavam instalados um computador, telão, caixa de som e microfone. O pátio estava lotado e fiquei imaginando o quanto minha apresentação poderia tocar o coração de cada um/a dele/as, e o quanto eu poderia dizer que um dia ele/as poderiam ser promotor/as de justiça.
Iniciei contando sobre as funções do Ministério Público e sobre as mais variadas atuações no campo do Meio Ambiente, Consumidor, Pessoa Idosa, Patrimônio Público, além de tantas outras, até chegar ao enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Enquanto lá no fundo poucos me ouviam e, já dispersos, conversavam, outros, do meio para frente, estavam atento/as. As mais variadas formas de violência, os perfis daqueles envolvido/as em ciclos contínuos e perversos e os efeitos desta realidade às crianças e adolescentes foram alguns dos temas abordados, além das suas implicações decorrentes das diferenças de gênero.
Depois de pedir que participassem do mencionado concurso de música, encerrei. E foi a partir daí que confirmei a necessidade de fazer mais.
Uma das alunas, aparentando cerca de dezesseis anos, veio me parabenizar, feliz: “Gostei muito do que você falou. Eu moro com meu namorado e, lá em casa, ele lava a louça”; outra, curiosa sobre o concurso e como deveria proceder, não sabia me responder o nome de sua professora de português; e houve uma pergunta de uma aluna, indignada, querendo entender sobre um caso de uma apresentadora que foi condenada a pagar uma indenização por um “post” em que criticou a decisão de um ministro.
Saí de lá pensativa. A Vara Especial de Violência Doméstica da região contempla aproximadamente vinte e seis mil processos; milhares de mulheres, das mais variadas faixas etárias, depois de alguns anos de ciclos de violência, romperam com o silêncio e solicitaram ajuda do sistema de justiça. Uma rota crítica que se estabelece em cada um dos feitos e em meio a um cem número de obstáculos, como desde relatos de mal atendimento em serviços públicos até o reconhecimento das diversas estruturas negligenciadas do Estado.
Mulheres cujas histórias de apequenamento e opressão vem de longa data, desde crianças, marcadas pela intolerância de gênero, raça e classe social; por fatores estruturados e estruturantes.
Uma em cada cinco das crianças nascidas no Brasil são de meninas menores de 19 anos, de acordo com levantamento feito pelo DataSus. E esse número cresceu em dez anos.
O Brasil é o primeiro da América Latina em casamento infantil. Segundo o Banco Mundial, 36% das brasileiras se casam antes dos dezoito anos: são quinze milhões de meninas todos os anos. Stella Maris Romero de Aranda e Claudia Brunelli apontam que setenta por cento dos casos de gravidez na adolescência não são desejados. Dentre as consequências, muitas dessas jovens mães param de estudar, estão mais sujeitas à menor renda quando adultas, são mais suscetíveis ao estupro no casamento e à violência doméstica.
A Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde realizada a partir de informações de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), aponta que 527.000 estupros ocorrem por ano no Brasil. 89% deles atingem mulheres; 50% atingem crianças menores de treze anos. E os autores da violência sexual são as pessoas mais próximas, com quem as meninas detém intensos laços de confiança.
A mesma Nota Técnica aponta que 11,3% de todo o volume dos estupros envolvendo crianças, foram praticados pelos próprios pais; também, que 15% dos estupros são os chamados “coletivos”, eis que cometidos por duas ou mais pessoas. E recentemente, sobreveio notícia de que as notificações dos estupros coletivos dobraram em cinco anos.
E não há dúvida de que as consequências da violência sexual para crianças e adolescentes são extremamente gravosas, haja vista que estão em desenvolvimento e em processo de formação psicológica da autoestima.
Muitas outras faces violentam nossas meninas.
A exploração sexual infantil, entendida como a violência sexual que pressupõe uma relação de mercantilização na qual o sexo é fruto de uma troca, ainda que subnotificada é uma realidade que movimenta cifras bilionárias e percorre por 17% dos municípios de todo o país segundo a Organização das Nações Unidas; a ONU também aponta a internet como um campo fértil de vulnerabilidade e violência para as meninas, que são a maioria das vítimas de abuso e exploração sexual: em 2013, 81% dos materiais que continham abuso sexual de crianças retratavam meninas, que tiveram a transmissão indevida de suas imagens e foram ainda vítimas de abuso por meio da internet.
A pesquisa da Plan International “Por ser menina no Brasil – Crescendo entre Direitos e Violências”, também traz uma realidade de desigualdades de gênero no campo do trabalho doméstico, pois enquanto 76,8% lavam louça e 65,6% limpam a casa, apenas 12,5% dos seus irmãos homens lavam a louça e 11,4% dos seus irmãos homens limpam a casa. A mesma pesquisa confirma que são as mães que mais cuidam das meninas mesmo quando trabalham fora indicando não só que o cuidar anda é percebido como algo exclusivo do âmbito feminino, como a dupla ou tripla jornada da mãe.
A agência “Énois Inteligência Jovem” realizou, em parceria com o Instituto Vladimir Herzog e o Instituto Patrícia Galvão, estudo com meninas e jovens de 14 a 24 anos, das classes C, D e E. Os dados obtidos revelaram que 77% das meninas acreditam que o machismo impacta seu desenvolvimento e 90% responderam que deixaram de fazer alguma coisa por medo da violência, como usar determinadas roupas ou frequentar espaços públicos.
O Brasil assumiu compromissos internacionais para eliminar e prevenir a violência contra as mulheres de qualquer idade. Cito o compromisso para a redução da taxa de abandono feminino dos estudos e a organização de programas para aquelas jovens e mulheres que tenham deixado os estudos prematuramente; e também o de assegurar o direito de a mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação.
O artigo 8º da Lei Maria da Penha garante a inclusão da perspectiva de gênero na educação. O Brasil assumiu esse dever, reconhecendo a necessidade de uma educação que prima pela igualdade de gênero.
Simples assim. Só que não.
Aquelas meninas que nasceram em 2006, ano em que a Lei 11.340 foi publicada e iniciou vigência, hoje tem onze anos de idade. Quantas delas no Brasil tem a garantia de uma educação feminista? Ainda crescem sob desigualdade de gênero, vulneráveis a uma série de violências que permeiam por todos os espaços, públicos e privados, como em casa, nas ruas, nos transportes públicos e privados e ainda carecem de representatividade e participação nos mais variados espaços de liderança.
Algumas iniciativas sugerem uma série de ações voltadas às jovens, as quais são importantes instrumentos de igualdade de gênero e prevenção da violência contra a mulher.
Dentre as recomendações da Plan International na pesquisa já citada “Por ser menina”, além de campanhas e ações que possam incidir sobre o lugar das meninas no imaginário social e que possam levar os órgãos públicos responsáveis por políticas sociais para crianças e adolescentes a adotarem recortes de gênero, visando à diferenciação nas metas e estratégias dessa política, está a realização de ações de mobilização social das próprias meninas, incluindo a conscientização de seus responsáveis, famílias, lideranças e escolas, visando a seu empoderamento e protagonismo social.
A mesma Plan International apresenta uma série de iniciativas que promovem o empoderamento de meninas, desde a consciência de que o trabalho não é brincadeira, até educação sexual, capacitação profissional, oficinas de lideranças, dentre outros.
A também já citada pesquisa #meninapodetudo, aponta algumas atividades pioneiras, como a “Respectful Relationships” da Austrália, um plano nacional para trabalhar a violência contra a mulher dentro das escolas como forma de política pública, cuja cartilha apresenta uma base teórica sobre feminismo para que os professores utilizem o tema de forma transversal no currículo escolar.
A agência “Between Friends” de Chicago promove grupos de discussão e oficinas em sala de aula para o público adolescente voltados à compreensão de como construir e manter relacionamentos saudáveis, sobre namoro, violência e como preveni-la em suas próprias vidas, além de envolver-se em esforços de educação e prevenção com seus pares, escolas e na comunidade.
Outro programa realizado pela organização “Love is respect”, cujo objetivo é envolver, educar e capacitar jovens para prevenir e acabar com relacionamentos abusivos, é composto por advogados treinados que oferecem apoio, informação e consultoria para quem tem dúvidas ou preocupações sobre seus relacionamentos de namoro, através de ambiente virtual.
A plataforma digital da Planned Parenthood oferece, dentre outros, material de educação sexual para jovens, abordando temas como a puberdade, sexo, prevenção de gravidez, relacionamentos, privacidade online, etc.
Em Sevilha, na Espanha, uma das suas principais linhas de ação em igualdade de gênero foi o desenvolvimento de uma proposta de formação para o ambiente escolar, primando pela consciência de gênero e prevenção da violência contra a mulher, focando alunos, professores e comunidade.
Vale citar também o rico material disponibilizado pela ONU Mulheres Brasil a respeito da iniciativa “O Valente não é Violento”,promovida dentro da campanha UNA-SE Pelo Fim da Violência Contra as Mulheres, cujo objetivo é o de estimular a mudança de atitudes e comportamentos dos homens, enfatizando a responsabilidade que devem assumir na eliminação da violência contra as mulheres e meninas.
São muitos os exemplos de iniciativas da sociedade civil capazes de contribuir para as políticas públicas brasileiras e permitir que o primado da igualdade de gênero seja um instrumento praticado da não violência contra a mulher. Bastam adotar, nossos Municípios, Estados e União, dentro de suas esferas de competências, tais iniciativas, ou mesmo suas próprias em nome do primado da garantia da observância dos direitos humanos.
Voltando à minha visita na escola da zona leste em São Paulo, quero crer que o sonho de tornar-se desembargadora, a mim confiado por uma das meninas, seja efetivamente alcançado, sem que a rota crítica da intolerância e da discriminação de gênero, classe e raça percorra pelo caminho de sua vida. Que ela seja dona de si, livre de violência e valorizada por simplesmente ser, por ser mulher.
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