“Estou quase acreditando (…) Vladimir, seja razoável, você ainda não tentou de tudo. (…) Temos que comemorar, mas como? (…) Daqui a pouco, daqui a pouco (…) Quando paro para pensar…estes anos todos (…) Por outro lado, qual a vantagem para desanimar agora? (….) Chega (…) O que você queria? (…) Vamos embora. A gente não pode (…) Por quê? Estamos esperando Godot. É mesmo. (…) Ele devia estar aqui. Não deu certeza de que viria. E se não vier? Voltamos amanhã. E depois de amanhã. Talvez…E assim por diante. Ou seja…Até que ele venha”
Esperando Godot, de Samuel Beckett
Primeiro ato. Neste Domingo, 04 de outubro de 2015, ocorreram as primeiras eleições nacionais unificadas para o Conselho Tutelar.
O Conselho Tutelar, este órgão de modo geral ainda infelizmente desconhecido da maioria da população, com atribuições previstas no artigo 136 do Estatuto da Criança e Adolescente, não canso de dizer, foi uma das maiores criações do Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90), uma expressão efetiva da “desjudicialização”, por mais que a ideia esteja um tanto quanto distante do patamar ideal.
Para além do debate sobre o melhor modelo de escolha e seleção dos conselheiros tutelares – havendo ainda quem advogue o formato do concurso público ou a escolha realizada por entidades da sociedade civil, especialmente a pretexto de uma escolha que necessariamente precisaria ser mais técnica e responsável – este primeiro processo de eleição nacional unificada marcou a consolidação do critério de escolha democrática da comunidade de pelo menos 05 (cinco) Conselheiros Tutelares em cada Município, sem prejuízo de que exista normativa – em muitos locais descumprida, recomendando a existência de um Conselho Tutelar para pelo menos 100.000 habitantes.
Diz o artigo 132 do Estatuto da Criança e Adolescente, desde a mudança propiciada pela Lei 12.696/12: “Em cada Município e em cada Região Administrativa do Distrito Federal haverá, no mínimo, 1 (um) Conselho Tutelar como órgão integrante da administração pública local, composto de 5 (cinco) membros, escolhidos pela população para mandato de 4 (quatro) anos, permitida 1 (uma) recondução, mediante novo processo de escolha”.
Por maior que tenha sido o propósito e vontade de membros do Ministério Público bem cumprirem com o seu papel na fiscalização dessas eleições, as quais foram organizadas pelos Conselhos Municipais dos Direitos das Crianças e Adolescentes (instância de democracia participativo-deliberativa composta de membros governamentais e não-governamentais no intuito de fiscalizar e controlar a política pública para a infância e adolescência), esse processo democrático de escolha ainda foi marcado por gritantes ausências, dentre as quais destacam-se:
1) falta de divulgação ampla e adequada da existência da eleição com extensão da informação em todo o seu alcance: explicação da eleição, local de votação, perfil dos candidatos, etc;
2) falta de conscientização e maior participação do povo neste importante processo democrático, o que pode ser avaliado pela verificação do percentual de presentes com o colégio eleitoral;
3) falta de colaboração e participação efetiva e institucional da Justiça Eleitoral, seja na disponibilização de urnas eletrônicas, seja na disponibilização de servidores para contribuição com a tarefa de fiscalização – a mesma Justiça Eleitoral que em ano de eleição municipal ou federal solicita apoio das Prefeituras com servidores, carros e utilização de escolas públicas;
4) falta de compreensão adequada, de parte do Governo Federal e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (CONANDA) de que as primeiras eleições nacionais unificadas não poderiam ter sido encaminhadas da forma como foram, sem melhor organização e parceria com a justiça eleitoral, sem a definição de crimes específicos para evitar a prática das mesmas condutas que viciam o processo eleitoral convencional; e não se diga que não houve tempo suficiente para isso;
5) falta de mobilização adequada dos meios de comunicação social para uma divulgação e uma cobertura adequada e condizente com a importância desse momento: é só percorrer os principais jornais do Domingo para verificar quantos dedicaram uma linha na capa ou contracapa sobre a eleição.
Ainda que ao longo da semana, nesses últimos dias que antecederam o processo, algumas matérias tenham informando a existência do Conselho Tutelar, demonstrando a precariedade constrangedora dos seus recursos humanos e materiais, a insuficiência das instalações, salários incompatíveis com a importância da função, a precariedade do orçamento (quando ele efetivamente existe), isso representa muito pouco para um órgão que, existindo pelo menos desde 1990, em todos os Municípios brasileiros, como verdadeira “jabuticaba”, já deveria estar muito mais fortalecido no âmbito de um sistema de garantia de direitos, inclusive para que a população brasileira tomasse sua pauta e agenda como prioritária, ainda mais nesse momento em que tudo é motivo para a crise e, como se sabe, a crise sempre traz em si os elementos necessários para superação.
O momento nacional das eleições unificadas do Conselho Tutelar, da forma quase irresponsável como se deu, representa um bom exemplo de como as questões relativas aos direitos de crianças e adolescentes são tratados no país: sem a prioridade absoluta exigida pelo artigo 227 da Carta da República, por vezes beirando a irresponsabilidade e falta de consequência.
Até a próxima eleição – e isso nos lugares em que o pleito foi tido como válido (pois em capitais como Rio de Janeiro e Belém houve anulação das eleições) – o caminho será longo, não só para construção de uma agenda comprometida de modo permanente com a causa da infância e juventude, mas para a divulgação do papel do Conselho Tutelar (dentre outras tarefas, na aplicação das medidas de proteção e de responsabilização previstas nos artigos 101 e 129 do Estatuto da Criança e Adolescente e na cobrança e interpelação para que o orçamento da criança e adolescente seja compatível com a destinação privilegiada e preferencial de recursos exigida por lei), da importância d@ Conselheir@ Tutelar como defensor dos direitos da criança e adolescente escolhido por sua comunidade e, consequentemente, da necessidade de que os eleitos disponham do conhecimento e recursos e instrumentos adequados para desenvolvimento do trabalho, preencham sistema informatizado de atendimento, possuam orçamento adequado para formação continuada e o constante aprimoramento, enfim, para que compreendam que o Conselho Tutelar, antes de se limitar aos atendimentos que recebe, precisa fazer busca ativa pautada em diagnósticos, planejamento e avaliação das principais demandas e notícias de violações de direitos no plano coletivo.
Acima de tudo, uma vez que o cargo de Conselheiro Tutelar receba a valorização e a importância merecida, em todos os Municípios brasileiros, é preciso compreender que, respeitados os limites que permitam uma disputa democrática de acordo com a realidade local, não bastam apenas os requisitos gerais previstos no artigo 133 da Lei 8.069/90 (idoneidade moral, idade superior a 21 anos e residir no Município) para que a população escolha, dentre os eleitos, pessoas com o conhecimento e vocação necessários para o exercício responsável da função.
A ver como será esse processo de escolha dos membros que trabalharão neste “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente” (artigo 132 da Lei 8.069/90) daqui a quatro anos de mandato.
Próximo ato? Que a indignação pelo “estado de coisas inconstitucional” da infância e juventude brasileira, do qual o Conselho Tutelar representa apenas uma parte, sirva para a promoção das mudanças estruturais necessárias, as quais também são de cultura e de consciência com o próprio sentido e os desafios complexos para efetivação da democracia. Até lá, amanhã depois da amanhã, que continuemos bem vivos e atentos…apostando nas boas matrizes e militando… sem perder a esperança, à espera de Godot…
Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013)
Surpresa com a matéria. A única que li até o momento. Pena que nada foi escrito antes também. Trabalho no TJSP e lamento o silêncio das próprias equipes de Psicologia e Serviço Social à respeito. Também não li e não recebi nada da Coordenadoria da Infância, do Núcleo (que é o responsável pela articulação de tudo que diz respeito à IJ e Famílias) e menos ainda da Assoaciação que nos Representa.
A IJ é totalmente ignorada por todos Nós.
Parabéns pela iniciativa.