23 de setembro de 2019, 13h08
Por André Paulo dos Santos Pereira
A partir da leitura do artigo 1.511 do Código Civil, temos que o casamento é uma comunhão de vida entre duas pessoas, a gerar direitos e deveres iguais e recíprocos. Fato jurídico, com normas muito específicas e amplo interesse sociológico.
Questão interessante que se nos coloca é como lidar com a pluralidade cultural indígena a partir do paradigma constitucional e os eventuais conflitos entre um casamento segundo costumes indígenas e sua compatibilização com o Direito Civil.
Não existe um casamento indígena, mas multiplicidade de costumes indígenas que variam conforme o povo, portanto diferentes casamentos indígenas, cada qual com suas peculiaridades. Um exemplo emblemáticos surge para o jurista na questão da poligamia/poliandria.
Persiste ainda no meio jurídico a visão idílica do “mito do bom selvagem”: o índio nu com arco e flecha na selva, que fala um idioma incompreensível. Um total equivocado! O índio do século 21 não deixou de ser índio por usar jeans, celular e dirigir automóvel.
Para a Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é índio o descendente de populações pré-coloniais que conservam total ou parcialmente suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, resguardando a consciência de sua identidade indígena.
O parâmetro constitucional do artigo 231 reconhece ao indígena o direito à diferença sem a arbitrária obrigação dele abrir mão de suas raízes, costumes e crenças. Aliás, nada mais inconstitucional do que o artigo 4º da Lei 6.001/73, que classifica os índios em “isolados”, “em vias de integração” e os “integrados”. Logo, para nossa Carta Magna, o indígena continuará o sendo, não importa se vive na selva amazônica ou no centro de São Paulo, desde que mantenha, ainda que parcialmente, sua cultura indígena.
Voltando ao tema, um casamento realizado segundo costumes indígenas que apresente alguma contrariedade às normas de direito de família, deve ser resolvido conforme o paradigma constitucional. Se a situação fática cultural indígena foi determinante para certos comportamentos, há que se valorar o caso a partir da plurietnicidade e respeito à diferença.
No polêmico caso da poligamia ou poliandria, ocorrida segundo os costumes indígenas, se um(a) indígena se une maritalmente a mais de um(a) esposa ou marido, cabe ao Direito o reconhecimento plúrimo, como decorrência do parâmetro constitucional multicultural.
O juiz federal Marcio Barbosa Maia narra interessante caso ocorrido em 2005 no Amapá, no artigo “Poligamia indígena e pensão por morte”[1]: o indígena Parara Waiãpi, que tinha emprego formal, faleceu e suas três “esposas” – Masaupe Waiãpi, Anã Waiãpi e Sororo Waiãpi – através de ação civil proposta pelo Ministério Público Federal, a pedido da Funai, contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a Caixa Econômica Federal, postularam a concessão de pensão por morte e o pagamento de saldos do FGTS. A união matrimonial era decorrente de costume indígena da tribo Waiãpi, demonstrado em laudo antropológico no processo. O desfecho processual foi um acordo de rateio de pensão entre as três viúvas, homologado judicialmente.
Posteriormente, em 24 de fevereiro de 2016, o INSS editou o Memorando-Circular Conjunto nº 16/DIRBEN/PFE/INSS[2], no qual reconhece expressamente tal direito indígena:
Observada a orientação firmada pela Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Previdência Social no Parecer nº 441/2015/CONJUR-MPS/CGU/AGU, em anexo, será permitido o rateio de pensão por morte e auxílio-reclusão entre companheiras de segurado indígena que viviam em regime de poligamia ou poliandria (no caso de segurada indígena).
Conclusão: havendo conflito entre normas de Direito de Família e costumes indígenas, deve prevalecer o paradigma constitucional do pluralismo jurídico, que reconhece os costumes, tradições e organização indígena.
[1] Publicado na Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 19 n. 1 jan. 2007, p. 29.
[2] Apud disponível em <https://dtojoaosoares.wixsite.com/previdenciario/poligamiapoliandria-entre-indgenas> acessado em 19/09/2019.
André Paulo dos Santos Pereira é promotor de Justiça em Roraima, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.
Clique aqui e leia o original no Conjur.
Crédito da imagem: Pixabay
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