Por Rogério Alvarez de Oliveira

A Constituição cidadã prescreve em seu preâmbulo a instituição de um Estado Democrático de Direito, impondo a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna e pluralista sem preconceitos, mandamento que é corroborado pelo artigo 1º, inciso III, que impõe a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, e ainda pelo artigo 3º, inciso IV, que dispõe que constitui objetivo fundamental a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Referidos valores foram ratificados pelos Princípios de Yogyakarta, estabelecidos em conferência na Indonésia visando o estabelecimento de parâmetros de concretização de respeito à diversidade sexual.
Nesse contexto e baseando-se nesses valores, tem se verificado um incremento nos pedidos judiciais de mudança de sexo — e de nome — por pessoas que não se identificam mais com o sexo biológico de nascença nem tampouco com seu nome, mas com o gênero oposto. Tal pretensão se funda na desconformidade entre o sexo biológico e o sexo psicológico da pessoa, condição conhecida por transexualismo ou disforia de gênero (transtorno de identidade de gênero).
Conforme ensina Maria Berenice Dias, “transexuais são indivíduos que, via de regra, desde tenra idade, não aceitam o seu gênero. Sentem-se em desconexão psíquico-emocional com o seu sexo biológico e, de um modo geral, buscam todas as formas de adequar-se a seu sexo psicológico” (Homoafetividade e os Direitos LGBTI. 6ª ed. reformulada. São Paulo: Ed. RT, 2014, págs. 42/44).
Há diversos estudos no sentido da dicotomia entre o sexo biológico e o sexo psicológico, sendo este último determinante para o comportamento social do indivíduo. Como se sabe, a identificação sexual é um estado mental que, se não precede a forma física, coexiste com esta e, no caso de não haver uma coexistência harmônica, vislumbra-se a hipótese de alteração do gênero da pessoa, quando possível cirurgicamente, ou ao menos formalmente para efeito de registro e aceitação pessoal e social.
Nos vemos, pois, diante de diversas modalidades de sexo, destacando-se os seguintes: sexo biológico, sexo psicológico (ou psicossocial) e sexo jurídico (legal ou civil), sendo que este último diz respeito àquele constante do assento de nascimento da pessoa.
Para ajustar o sexo jurídico ao sexo psicológico com o qual se identifica, a pessoa que se acha nessa condição deverá ajuizar ação de mudança de sexo e nome, mediante procedimento de jurisdição voluntária, que deverá seguir certos parâmetros. O primeiro requisito diz respeito à competência do juízo, que, consoante já pacificado entendimento jurisprudencial, restou fixado como sendo o da família, haja vista tratar-se de ação de estado, que diz respeito ao direito de personalidade e dignidade humana e que lida, em linhas gerais, com o estado e a capacidade civil da pessoa.
Embora o CPC não trate especificamente sobre o assunto, faz clara distinção, em seu artigo 388, parágrafo único, entre ações de estado e de família. Porém, dispôs expressamente somente sobre as ações de família no artigo 693, nominando-as como sendo as ações de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação. Deu-se, portanto, uma mudança no conceito e tratamento da ação de estado, cuja análise não convém a este estudo, sendo o caso de breve referência para efeito de definição da competência. Pode-se dizer que as ações de estado se relacionam com as questões de nacionalidade, mudança de sexo e também capacidade civil, dentre outros direitos da personalidade e dignidade humana.
Dito isso, sem dúvida que a ação de mudança de sexo se insere nas chamadas ações de estado e, portanto, tem sua competência prevista para o juízo de família, nos termos artigo 37, I, “a”, do Decreto-Lei Complementar 03, de 27 de agosto de 1969 (Código Judiciário do Estado de São Paulo), não se tratando, portanto, de ação de cunho meramente registral, uma vez que as alterações do assento público se darão reflexivamente, ainda que se utilize da Lei de Registros Públicos para fundamentar o pedido de modificação do nome. Isso porque a alteração deste se dará em função da modificação do gênero da pessoa, cujo fundamento encontra guarida na Constituição Federal (princípio da dignidade da pessoa humana).
Outrossim, muito já se discutiu sobre a necessidade da cirurgia de redesignação de sexo como pré-requisito para o ajuizamento da ação. Firmou-se, contudo, o entendimento de que a alteração de sexo (gênero) não depende dessa cirurgia, em razão da prevalência do sexo psicológico, que seria determinante do comportamento social do indivíduo, tornando o procedimento cirúrgico aspecto secundário, despicienda a prévia transgenitalização.
É importante registrar que a cirurgia de adequação de sexo só ocorre por exigência médica, conforme preceituam o caput do artigo. 13 do Código Civil Brasileiro e o Enunciado 276 da IV Jornada de Direito Civil (2007), do Conselho de Justiça Federal:
“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes” (grifo nosso).
“CJF, Enunciado Nº. 276: O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil” (grifo nosso).
Recentemente, o STJ proferiu decisão paradigmática dispensando a realização da cirurgia (REsp 1.626.739), destacando-se a distinção entre os conceitos de gênero e sexo, sendo o primeiro uma categoria sociológica, e o segundo, biológica.
Contudo, ainda que a pessoa tenha manifestado desinteresse na cirurgia de transgenitalização, o juiz poderá exigir, para caracterizar o transexualismo, a prova dessa condição mediante exibição de relatórios médico e psicológico. A desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o sexo psicológico é uma condição que demanda sua cabal demonstração pelos meios próprios, qual seja, a constatação por profissional habilitado, que fará a descrição anatômica da pessoa e a constatação de sua condição psíquica. É bom que se diga, não tratamos como doença essa condição, em que pese tenha sido catalogada na classificação internacional de doenças na categoria “transtornos da identidade sexual”.
Por fim, e não menos importante, a pessoa interessada deverá fazer prova da inexistência de interesse de prejudicar terceiros, com a juntada das certidões negativas de ações civis e penais. No caso de constar ações, deverá haver comunicação ao juízo respectivo sobre a alteração pretendida.
Há, ainda, a polêmica questão sobre a necessidade ou não de menção na certidão sobre a origem da retificação em sentença judicial, para garantia de eventuais interesses de terceiros, que deve ser dar, contudo, sem qualquer referência específica ou menção à razão e ao conteúdo das alterações procedidas.
Assim, a intervenção ministerial nesses feitos se dá por força do disposto no artigo 178, I, do CPC, uma vez que se trata de interesse público ou social, assim como em razão do artigo 109 e parágrafo 1º da Lei 6.015/73, porquanto a pretensão não engloba mero pedido reflexo de alteração do registro civil, mas de retificação de dado essencial do assento público. O Ministério Público deverá zelar, nessas ações, pela observância dos princípios da legalidade, publicidade, segurança jurídica e eficácia dos atos jurídicos e dignidade da pessoa humana, dentre outros.

Rogério Alvarez de Oliveira é promotor de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.

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