Em termos físicos e psicológicos, há poucas experiências na vida de uma mulher como o parto e o nascimento de um filho. A qualidade da assistência prestada à gestante neste momento tão importante e vital na sua vida não deveria depender de classe social, raça/etnia, gênero, estado civil e idade, no entanto, as evidências científicas identificam que o acesso à saúde é afetado frequentemente por aspectos de interseccionalidade[1], que fazem com que determinadas mulheres tenham um acesso mais precário do que as outras.
A ausência de acompanhante tem uma origem histórica, conforme nos ensinam Diniz e outros: “quando o parto hospitalar foi estabelecido como regra pelos programas de saúde em meados do século 20 nos países industrializados, pela primeira vez na história, a maioria das mulheres começou a parir sem a presença de qualquer pessoa que lhe fosse familiar”. Essa situação segue ainda vigente em vários países, inclusive no Brasil, onde essa ideia fez parte da formação dos profissionais de saúde, ou seja, os médicos e enfermeiras[2].
Na década de 90, como resultado do movimento de mulheres, diversas pesquisas concluíram que a presença do acompanhante gerava resultados positivos para a saúde materna e neonatal. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece: “o apoio contínuo ao trabalho tem benefícios clinicamente significativos para as mulheres e crianças e nenhum prejuízo conhecido, e que todas as mulheres devem ter apoio durante o parto e o nascimento”[3].
Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres devem ser respeitados, tanto na esfera pública quanto na esfera privada. Esses direitos são garantidos pelos tratados internacionais e pela legislação nacional. Dentro do marco legal internacional, destaca-se a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, que determina que toda a mulher tem direito a uma assistência adequada no pré-parto, parto e puerpério[4]. A assistência apropriada também inclui o direito ao acompanhante, que é um poderoso elemento para prevenir a prática de violência obstétrica.
Violência obstétrica consiste na ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito, ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, e aos seus sentimentos e preferências. Vale sublinhar que expressão engloba condutas praticadas por todos os prestadores de serviço da área de saúde, não apenas os médicos[5].
A Declaração e Programa de Ação de Viena dispõe o seguinte: “a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece a importância do gozo de elevados padrões de saúde física e mental por parte da mulher, durante todo o ciclo de vida. No contexto da Conferência sobre todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, assim como da Proclamação de Teerã de 1968, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma, com base no princípio de igualdade entre mulheres e homens, o direito da mulher a uma assistência de saúde acessível e adequada e ao leque mais amplo possível de serviços de planejamento familiar, bem como ao acesso igual à educação em todos os níveis”[6].
A Convenção Relativa ao Amparo ao Parto prevê, no artigo 4º, parágrafo 3º: “a assistência médica abrangerá assistência pré-natal, assistência durante o parto e assistência após o parto prestado por parteira diplomada ou por médico, e bem assim a hospitalização quando for necessária; a livre escolha do médico e livre escolha entre um estabelecimento público ou privado serão respeitadas”.
Nesse contexto do Direito Internacional, tanto a Convenção Cedaw quanto a Declaração e Programa de Ação de Viena e a Convenção Relativa ao Amparo ao Parto determinam que assistência ao parto deve ser adequada, portanto, com livre escolha do médico, respeito à sua condição de gestante e à sua autonomia e a presença do acompanhante de sua preferência.
No mesmo sentido, o marco jurídico nacional também prevê a necessidade de uma assistência ao parto adequada, inclusive com a presença do acompanhante. Por exemplo, a Lei 8.080/90, artigo 19-J, determina que: “os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde – SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.3 § 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente. § 2º As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício dos direitos de que trata este artigo constarão do regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão competente do Poder Executivo. § 3º Ficam os hospitais de todo o País obrigados a manter, em local visível de suas dependências, aviso informando sobre o direito estabelecido no caput deste artigo”[7].
Cumpre lembrar que a Lei 11.108 — conhecida como Lei do Acompanhante — foi sancionada em abril de 2005, assegurando o direito à presença do acompanhante, desde o trabalho de parto, o parto e o puerpério. Há três aspectos da Lei do Acompanhante que fazem com que essa regra muitas vezes seja descumprida. Primeiro, a Lei do Acompanhante não prevê expressamente uma sanção, seja de natureza cível, seja de natureza administrativa ou criminal. Em segundo lugar, várias maternidades ainda não têm um espaço físico adequado. Por fim, existe um problema cultural: o desrespeito à autonomia da mulher. Interpretando-se o parto como um ato exclusivamente médico[8].
Com efeito os referidos diplomas legais têm eficácia plena e são obrigatórios. Dessa forma, todas as maternidades, sejam as públicas ou particulares, estão obrigadas a permitir a entrada de um acompanhante indicado pela parturiente, podendo ser o companheiro, amiga, parente ou até mesmo uma doula. A Resolução 36/2008 da Anvisa também prevê que o acompanhante deve ter um local adequado para permanecer e acompanhar o parto e pós-parto.
Embora o direito ao acompanhante esteja previsto em lei, assim como o acesso à assistência médica adequada à gestante, o que faria com que não fosse necessário nenhum procedimento judicial para efetivá-los, há uma distância entre os direitos e a sua efetivação. Por isso é importante que a questão do acompanhante seja debatida pela sociedade. Ressalte-se que as gestantes começam a conhecer melhor os seus direitos e a provocar o Poder Judiciário para garanti-los.
Recentemente, o Juizado Especial Cível de Manaus deferiu tutela antecipada nos autos de uma ação de obrigação de fazer interposta contra o Hospital Rio Amazonas para que este permitisse a presença, junto à parturiente, de um acompanhante de livre escolha dela, durante todo o trabalho de parto, parto e pós-parto, sob pena de multa de R$ 1 mil, limitada a dez dias-multa[9].
Anote-se que o Brasil assumiu compromissos perante a comunidade internacional no sentido de prestar uma assistência adequada à gestante, o que inclui o direito ao acompanhante e a prevenção de todas as formas de violência contra a mulher, inclusive a obstétrica.
A Lei do Acompanhante poderia ser aprimorada, por exemplo, quando fala nos “serviços de saúde do SUS e da rede conveniada”, ficaria mais claro se mencionasse os “hospitais da rede pública e privada”. Assim também se contivesse um parágrafo que previsse que “o descumprimento da lei acarreta a aplicação de multa, advertência e até intervenção, interdição ou o cancelamento de licença do funcionamento do estabelecimento”, seria interessante para a sua plena efetivação. O aprimoramento legislativo é necessário, evidentemente, poderia ocorrer, mas a lei, tal como existe hoje, pode e deve ser cumprida rigorosamente.
Conclui-se, portanto, que todas as tentativas de impedir a presença do acompanhante no parto colide com os princípios e regras do Direito Internacional e do Direito brasileiro, que estabelecem a necessidade de proteção integral à mulher, mantendo-a a salvo de todas as formas de violência, inclusive a obstétrica.
[1] CRENSHAW, Kimberle, Demarginalizing the intersection of race and sex: A black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics, 1989 U. Chi. Legal F. 139 (1989).
[2] DINIZ, Carmen Simone Grilo e outros, Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: Dados da Pesquisa Nascer no Brasil, Caderno de Saúde Pública, volume 30, Supl.1.
[3] DINIZ, Carmen Simone Grilo e outros, Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: Dados da Pesquisa Nascer no Brasil, Caderno de Saúde Pública, volume 30, Supl.1.
[4] O artigo 12 da Convenção CEDAW dispõe o seguinte: “Os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância”.
[5] Fundação Perseu Abramo, e Sesc, Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado,2010, em http://novo.fpabramo.org.br/content/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou, em 26 de junho de 2015.
[6] Senado Federal, Mulher, https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518232/mulher_1ed.pdf?sequence=1, em 5 de agosto de 2019.
[7] Lei, visto em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm, em 7/8/2019.
[8] Entrevista da subscritora, Revista Isto é, Violência Obstétrica, Por que as mulheres ficam sozinhas no Parto?, https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/violencia-obstetrica-por-que-mulheres-ficam-sozinhas-no-parto.html, em 7/8/2019.
[9] Juizado Especial Cível, Autos 0637745-13.2019.8.04.0001, ação de obrigação de fazer, com pedido de tutela antecipada, Manaus, Amazonas.
Fabiana Paes é promotora de Justiça do MP-SP, especializada em Violência Doméstica e Familiar, mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela University of New South Wales (Austrália) e pós-graduada em Direito pela Universidade de Buenos Aires (Argentina). Presidente da Comissão de Trabalho de Saúde Reprodutiva da International Federation of Women in Legal Careers (FIFCJ) e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.
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