23 de julho de 2018
Por Rogério Alvarez de Oliveira
Já escrevi nesta coluna (Ações para mudança de sexo e nome e a intervenção do Ministério Público, de 2 de outubro de 2017) que “a Constituição Cidadã prescreve em seu preâmbulo a instituição de um Estado Democrático de Direito, impondo a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna e pluralista sem preconceitos, mandamento que é corroborado pelo art. 1º, inciso III, que impõe a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, e ainda pelo art. 3º, inciso IV, que dispõe que constitui objetivo fundamental a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Referidos valores foram ratificados pelos Princípios de Yogyakarta, estabelecidos em conferência na Indonésia visando o estabelecimento de parâmetros de concretização de respeito à diversidade sexual”.
“Nesse contexto e baseando-se nesses valores, tem se verificado um incremento nos pedidos judiciais de mudança de sexo — e de nome — por pessoas que não se identificam mais com o sexo biológico de nascença nem tampouco com seu nome, mas com o gênero oposto. Tal pretensão se funda na desconformidade entre o sexo biológico e o sexo psicológico da pessoa, condição conhecida por transexualismo ou disforia de gênero (transtorno de identidade de gênero).”
Decorre daí que, para ajustar o sexo jurídico ao sexo psicológico com o qual se identifica, a pessoa nessa condição deveria atender a pelo menos dois requisitos básicos: a) ajuizar ação judicial para esse fim; b) fazer prova dessa condição mediante exibição de relatórios médico e psicológico. Houve casos (em menor número) em que o Judiciário ainda exigia a realização da cirurgia de transgenitalização ou redesignação de sexo como condição para a mudança pretendida.
A intervenção do Ministério Público nessas ações se fundava no artigo 109 e seu parágrafo 1º da Lei 6.015/73, porquanto se tratava de retificação de dado essencial do assento público, configurando verdadeira ação de estado (que diz respeito às questões de nacionalidade, mudança de sexo e também capacidade civil, dentre outros direitos da personalidade e dignidade humana).
Contudo, recentemente o Supremo Tribunal Federal, ao término do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275, por maioria de seus ministros, por interpretação conforme ao artigo 58 da Lei 6.015/73, acabou por conferir aos transgêneros/transexuais o direito de requerer a substituição do prenome e sexo diretamente no cartório de registro civil, mediante requerimento administrativo, independentemente da realização de cirurgias, tratamentos hormonais ou outros, dispensando, inclusive, a demonstração ou prova dessa condição.
Sendo assim, o direito à substituição do prenome e do sexo constantes em registro civil passou a ser potestativo, não mais dependendo de comprovação da condição da pessoa, tampouco de manifestação ou ação judicial. Outrossim, embasado nessa decisão, o CNJ houve por bem regular a matéria com a edição do Provimento 73, de 28 de junho de 2018, orientando como deverá se dar a averbação dessa pretensão no âmbito administrativo.
Nesse cenário, por via reflexa, o STF acabou por desjudicializar não somente as pretensões de alteração de assento de registro civil que tenha por objeto a mudança de nome ou sexo, como também aquelas que tenham por finalidade a alteração de nome por escolha do interessado. Afinal, se a ação judicial é desnecessária para a mudança dos dois elementos mais essenciais e representativos do registro civil — como o nome e o sexo —, também deverá ser dispensada, ao nosso ver, para as hipóteses menos importantes, como modificações de prenome ou substituição por apelido notório.
Tem lugar aquele velho adágio: “Quem pode o mais pode o menos”.
Já não era sem tempo, pois algumas dessas modificações já podiam ser pleiteadas diretamente no cartório de registro civil mediante a exibição dos documentos necessários pelo interessado, porquanto não apresentam qualquer conteúdo de indagação ou litigioso, do qual o Judiciário deve se ocupar com exclusividade.
Como é cediço, as retificações de registro civil podem ser realizadas pela via judicial ou administrativa, conforme o caso. O artigo 13, inciso I, da Lei 6.015/73 permite que alguns atos do registro civil possam ser praticados a requerimento verbal ou escrito dos interessados, independentemente de ordem judicial.
A lei registral já possibilitava a modificação do nome e do assento sem necessidade de ação judicial, conforme disposto nos artigos 56 e 110, nos seguintes casos: I) o interessado que, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família; II) erros que não exijam qualquer indagação para a constatação; III) erro na transposição dos elementos constantes em ordens e mandados judiciais, bem como de outros títulos; IV) inexatidão da ordem cronológica e sucessiva da numeração do livro, da folha, da página, do termo e da data do registro; V) elevação de distrito a município ou alteração de suas nomenclaturas por força de lei. Com a mudança introduzida pela Lei 13.484/2017, deixou de ser necessária, inclusive, a oitiva do Ministério Público nesses casos de retificação administrativa de erros mais simples ou que não exijam qualquer indagação.
Outras situações vinham ensejando autorização judicial, tais como: VI) as questões de filiação (art. 113); VII) averbação do patronímico do companheiro pela mulher (art. 57, §2º); VIII) alteração de nome em razão de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime (art. 57, §7º e 58, parágrafo único); IX) averbação do nome de família do padrasto ou da madrasta pelo enteado (art. 57, §8º); X) modificação de nome pelo interessado fundado em motivo relevante (art. 57, caput); XI) substituição do prenome por apelidos públicos notórios (art. 58).
Há, ainda, a hipótese de decisão pelo juiz quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial quanto ao prenome suscetível de expor ao ridículo a pessoa (art. 55, parágrafo único) (XII). Nesse caso, a competência é do juiz corregedor permanente do cartório de registro civil de determinada região.
De todas essas hipóteses, aquelas enumeradas nos itens I a V podem ser objeto de retificação/modificação pela via administrativa, ou seja, diretamente no cartório de registro civil. Acrescente-se a elas, agora, em virtude da referida decisão do STF, a possibilidade de alteração de nome e sexo diretamente pela via administrativa, desde que atendidos pelo interessado os requisitos do Provimento nº 73 do CNJ.
Ao nosso ver, com a desjudicialização promovida pelo STF, as hipóteses de modificação de nome pelo interessado fundado em motivo relevante (hipótese X) e substituição do prenome por apelidos públicos notórios (hipótese XI) também deverão ser doravante permitidas através da via administrativa, dependendo somente de regulamentação pelo CNJ, pelas mesmas razões que fundamentaram a decisão proferida na referida ADI, ou seja, “a alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. A pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental”, conforme observado pelo ministro Fachin em seu voto no julgamento já referido.
Ora, se cabe ao próprio interessado a decisão sobre a mudança de sexo e nome, também a ele deveria caber decidir se deseja mudar seu nome em razão de motivo relevante ou para substituir apelidos públicos notórios. Como se sabe, o nome é elemento da identidade pessoal, devendo sua mudança depender exclusivamente de sua vontade. Por outro lado, desnecessária a prévia autorização judicial, pois se surgir situação que possa caracterizar fraude, caberá ao oficial do registro civil a instauração de procedimento de dúvida, a ser dirimido pelo juiz.
Os demais casos enumerados nos itens VI a IX, em razão de expressa disposição legal, bem como por envolverem interesse de terceiros ou interesse indisponível, devem permanecer dependendo de manifestação judicial.
É esperada, diante de tão importante decisão exarada pelo STF, uma mudança de hábito dos operadores de direito, de modo a passarem a formular as pretensões diretamente nos cartórios de registro civil, deixando, assim, de levar ao Judiciário tais demandas, exceto nas hipóteses onde o pronunciamento judicial ainda se faz necessário. Tomem-se como exemplo alguns dos casos de retificação para obtenção de cidadania estrangeira, que se adequam perfeitamente às hipóteses dos itens II e III, podendo ser pleiteados diretamente no âmbito administrativo. Convém observar que a previsão da via administrativa do art. 110 da Lei 6.015/1973 consiste numa opção do interessado que, se reputar conveniente, poderá valer-se da via judicial.
Por fim, não sendo mais necessária a judicialização nesses casos, a intervenção do Ministério Público em pedidos de retificação de registro civil deverá se circunscrever às hipóteses em que permanece sendo necessário o pronunciamento judicial. Outrossim, ainda que o interessado em retificação de sexo e nome tenha optado pela via judicial, não se vislumbra mais hipótese de intervenção do Ministério Público nesse caso, porquanto se o direito poderá ser buscado diretamente no cartório de registro civil pelo interessado, onde não se faz necessária a oitiva do MP, operou-se evidente mudança de categoria desse direito, que deixou de ser considerado como ação de estado, tornando desnecessária a atuação do órgão interveniente, a conferir e a depender de orientação de seus órgãos da administração superior e de controle interno.
Nos demais, quando chamado a intervir, o Ministério Público deverá permanecer atuando para zelar, nessas ações, pela observância dos princípios da legalidade, publicidade, segurança jurídica e eficácia dos atos jurídicos, dignidade da pessoa humana, dentre outros.
Rogério Alvarez de Oliveira é promotor de Justiça e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.
Clique aqui e leia o original no Conjur.
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