10 de dezembro de 2018
Por Fabíola Sucasas Negrão Covas
Gênero, ideologia de gênero e expressões afins tem mobilizado uma série de iniciativas contrárias à inclusão da temática nas escolas na crença de que são ameaças aos valores morais tradicionais e à família brasileira. O projeto de lei denominado Escola Sem Partido é uma dessas iniciativas[1].
No campo do Poder Judiciário, questionam-se leis estaduais e municipais que proíbem as referidas expressões nas abordagens em ambiente escolar e há algumas decisões do Supremo Tribunal Federal suspendendo liminarmente referidas leis, pendente de solução definitiva.
Estudiosos apontam haver uma confusão entre as discussões de gênero com o que os conservadores intitulam “ideologia”, causando pânico moral e marginalizando grupos mais vulneráveis como os movimentos feministas e LGTBI. A professora Furlani ensina que, enquanto “ideologia” conduz a um conjunto de ideias, princípios e valores que refletem uma determinada visão de mundo, sobretudo uma prática política, os “estudos de gênero” são propostas teóricas que buscam combater a violência contra a mulher e crianças, defendem o respeito às diferenças, à diversidade e entendem que a sociedade é plural e a escola deve discutir a exclusão e as muitas formas de preconceito[2].
Sexo e gênero não se confundem! A palavra gênero, segundo a doutora em psicologia Zanello[3], surgiu durante a 2ª onda do feminismo nas décadas de 60/70 por meio das contribuições de Stoller, pesquisador da área da saúde: há um aparato biológico que diferencia homens e mulheres e o gênero diz respeito às construções sociais que advém destas diferenças. Beauvoir já sinalizara que “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”[4]
A palavra orientação sexual, também banida do PNE, compreende a atração e o desejo sexuais do indivíduo por outro de um gênero particular[5]: os heterossexuais se atraem pelo gênero oposto, os homossexuais se atraem pelo mesmo gênero e os bissexuais se atraem por ambos os sexos.
Identidade de gênero, por sua vez, diz respeito ao gênero pelo qual a pessoa se identifica. Uma pessoa é transgênera se possuir identidade de gênero diferente daquela correspondente ao seu sexo biológico; uma pessoa cisgênera possui identidade de gênero correspondente ao sexo biológico independente da orientação sexual, homossexual ou heterossexual. As travestis se referem a identidade de gênero feminina, que apesar de se vestir como mulher e fazer tratamento hormonal feminino, não tem desconforto com a genitália; cross dresser, drag queen e drag king cuidam de quem ocasionalmente se veste com roupas de características do outro gênero, mas as duas últimas para performances artísticas.
O cenário diz respeito a uma pluralidade protegida pelo direito à igualdade, de onde surgem os direitos da diversidade, a respeito dos quais o ministro Barroso aponta tratar-se de um fato da vida, um dado presente na sociedade e que, portanto, alunos terão que lidar; e atenta para o fato de que vedar políticas de ensino que tratem de gênero e orientação sexual não só ofende a Constituição Federal mas também normas internacionais ratificadas pelo Brasil como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais.
Segundo o professor Luiz Araújo[6], “o convívio com a diversidade não é só o direito da minoria ou do grupo vulnerável. O direito à diversidade é direito da maioria. Direito de nossos filhos de terem uma escola mais plural, onde o ensino possa fluir um décimo mais devagar, porque um colega tem dificuldade. Ele não foi deixado para trás. Ele foi acolhido pelo grupo”.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a Convenção de Belém do Pará e a Lei Maria da Penha, trazem a obrigação de que os Estados adotem medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera da educação, adotando medidas específicas e programas destinados a modificar os padrões sociais e culturais de conduta a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou em papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher.
A educação é instrumento de transformação e promoção do direito à igualdade. Aos que temem as abordagens, a pedagogia ensina “como fazer” e Deise Longaray, doutora em educação, sugere: debater sobre as diferentes configurações familiares, discutir diferentes assuntos relacionados aos corpos, gêneros e sexualidades, problematizar os marcadores sociais atribuídos às identidades sexuais e de gênero desconstruindo as representações que reproduzem o preconceito, discutir a importância do nome social nos registros escolares e acadêmicos e também a questão do uso do banheiro para travestis e transexuais, discutir o respeito que todos/as devemos ter sobre a pluralidade sexual, enfatizando a importância em não ser confundido com tolerância, apresentar leis que amparam cidadãos LGBTI, problematizando direitos humanos tais como segurança, saúde, tratamento e atendimento igualitários, dentre outros[7].
Um exemplo prático é a regulamentação do uso do nome social de discentes travestis e transexuais na rede estadual de ensino de São Paulo. Subiram as matrículas de estudantes trans, em sua maioria na Educação de Jovens e Adultos, mostrando o retorno aos processos de escolarização formal. Outro é o projeto Vozes pela Igualdade de Gênero, parceria do MP-SP com a Secretaria de Estado de Educação, visando fomentar a discussão sobre o enfrentamento relacionado às desigualdades de gênero[8]. A iniciativa propõe para alunos/as a participação em um concurso musical, cujos temas como “10 anos da Lei Maria da Penha”, “Respeito às Diferenças” e “Em todos os lugares, em pé de igualdade” são o impulso para a criação das canções; o concurso também promove uma reflexão pública ao instar o voto para a eleição das canções inscritas e à gravação em estúdio de renome, instrumentos estratégicos para a perpetuação do debate.
Cabe aqui um apanhado de algumas frases das músicas finalistas da 2ª edição do concurso, que além de revelar o que foi aprendido por alunos/as, mostra que abordar gênero nas escolas não é ameaça, mas um instrumento para uma sociedade mais humana e igualitária: Na luta por uma sociedade igualitária, temos muitos que ferem. Que indignação! Nesse mundo tão inverso, julgam a sua forma de andar, mas o que está por dentro não pensam em perguntar. Ah, o respeito! Seja quem for, seja onde for, nós somos mais do que a cor. Vou lutar por um mundo de amor, independente do credo, da cor, do gênero, o que for… Pra acabar com a discriminação, preciso de vocês irmãos! A sua atitude pode transformar alguém, abra os olhos, saia do escuro. Erguemos nossa bandeira, vamos juntos na militância, em uma luta de importância, com direito de existir.
[1] Texto atualizado, integrante do compilado “Direito e Diversidade”, publicação do Ministério Público do Estado de São Paulo. Acesso através do seguinte endereço: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Cartilhas/Direito_Diversidade.pdf
[2] FURLANI, Jimena. “Ideologia de Gênero”? Explicando as confusões teóricas presentes na cartilha. Versão revisada 2016. Florianópolis: FAED, UDESC. Laboratório de Estudos de Gênero e Família, 09pp, 2016. Disponível em: <https://www.facebook.com/jimena.furlani>. Acesso em: 31janeiro2016.
[3] In “Violência contra a Mulher: o papel da cultura na formação de meninos e meninas” – Maria da Penha vai à escola: educar para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher / Bem-Hur Viza, Myrian Caldeira Sartori, Valeska Zanello; org. Amanda Kamanchek Lemos – Brasília: TJDF, 2017
[4] BEAVOIR, Simone de. O segundo sexo. A experiência vivia. Vol. 2. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2016, 3ª ed. Pag. 11.
[5] Alipio de Sousa Filho in “Teorias sobre a Gênese da Homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude”; em “Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas/Rogério Diniz Junqueira (organizador) – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.
[6] Idem supra
[7] Artigo “A importância da escola no combate ao preconceito”, publicado na Revista Diversidade e Educação / Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande. V. 2, n. 4 (Jul/Dez. 2014). Rio Grande, 2014
[8] O projeto “Vozes pela Igualdade de Gênero” recebeu em 2018 o 18º Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade conferido pela Associação da Parada LGBT. Todas as músicas inscritas podem ser conhecidas no site do Youtube através da pesquisa “Vozes pela Igualdade de Gênero”. A 3ª edição está prestes a anunciar a música vencedora.
Fabíola Sucasas Negrão Covas é promotora de Justiça assessora, coordenadora do Núcleo de Inclusão Social do Centro de Apoio Cível e Tutela Coletiva do MPSP. Diretora do MPD.
Clique aqui e leia original no Conjur.
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