26 de março de 2018
Por Paulo José de Palma e Fernanda Narezi Pimentel Rosa
Num dos maiores clássicos da literatura em língua espanhola, o livro Don Quixote de La Mancha (Cervantes, 1605), existe uma passagem clássica na qual o personagem principal, dado como idealista e buscador da justiça, se põe a lutar com o que supunha serem dragões, momento no qual seu fiel escudeiro de pronto faz o alerta: “Senhor, senhor, mas são apenas moinhos de vento” — cunhando a mundialmente conhecida frase para as ocasiões em que vemos algo diverso do que enxergamos.
E, guardadas as devidas proporções, a visão equivocada parece ocorrer quanto à análise atinente ao tempo de cumprimento de pena privativa de liberdade. Se o sistema prisional pátrio evidencia problemas conhecidos, como superlotação, saúde deficiente e outras mazelas, nos parece que os órgãos de imprensa não sabem que pouco tempo se cumpre na prisão da pena imposta no bojo da sentença penal condenatória, mostrando-se alarmante o número de pessoas definitivamente condenadas que experimentam longas sanções sob o regime prisional aberto e no livramento condicional.
Aliás, não se trata de possível engano no número de presos, como recentemente se aventou no bojo de artigo que ganhou os noticiários jurídicos (“Número de presos no Brasil pode ser menor do que os dados oficias apontam”, jornal Gazeta do Povo, 18 de março de 2018), mas de verificação dando conta de que longas penas são descontadas preponderantemente em meio aberto e com fiscalização precária e frouxa.
Ora, a conclusão esposada decorre do próprio sistema progressivo de cumprimento de pena adotado pelo Código Penal, cujo sucesso aprioristicamente almejado apenas ocorreria se contássemos, na forma do quanto determina a Lei de Execuções Penais, com as inexistentes casas de albergados. Na sua falta, os condenados descontam o final (no mais das vezes a maior parte) de suas penas sob liberdade, pouco sendo cobrados acerca das condições judiciais que lhe são impostas. Não bastando o ganho decorrente da ineficiência administrativa (omissão estatal no cumprimento da lei), experimentam, outrossim, outras vantagens oriundas das concessões de remições (trabalho e estudo) e de inúmeros decretos de comutações que, ano a ano, lhes atenuam as sanções.
Não por acaso, a sociedade, cada vez mais, se preocupa (dentre outros) com a elevação dos índices de criminalidade, consciente de que, debalde a necessidade de políticas públicas e de melhor distribuição de renda, o combate à violência urbana exige o manejo rigoroso da lei.
O Ministério Público de São Paulo, num levantamento realizado aos cuidados do promotor de Justiça Levy Emanuel Magno, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal, lançou mão de dados interessantes, cujo exame se mostra pertinente. De fato, uma averiguação aleatória envolvendo 60 réus condenados (pela prática de homicídio qualificado) indicou que os mesmos somente cumpriram entre 21% (antes do advento da Lei 11.464/07) e 30% (depois do surgimento da Lei n° 464/2007) no regime fechado. Se a menção se mostra surpreendente, some-se que, não raro, os promotores de Justiça das execuções criminais do estado igualmente verificam que os condenados pouco cumprem enclausurados, experimentando, como se disse, a maior parte de suas sanções em sociedade.
Se assim é, deve-se admitir que o sistema progressivo de cumprimento da pena se apresenta falho e absolutamente abalado pela ausência de local adequado ao exaurimento da sanção no regime prisional aberto e que a revisão das proporções de descontos precisam ser urgentemente efetivadas, observações que, na alheta do superiormente ponderado no artigo intitulado “Mentiras do Cárcere” (Diego Pessi e Leornardo Giardin de Souza, Gazeta do Povo, 11/7/2017), culminam por indicar que se pretendeu criar mais um mito, calcado no mote voltado a oxigenar o sistema prisional em flagrante afronta aos interesses maiores do povo ordeiro e ao respeito à lei.
A experiência comprova, pois, que os alegados excessos de descontos das privativas não são “dragões, mas moinhos de vento”, pelo que, em atenção a máxima dando conta do sed lex, dura lex, o Ministério Público brasileiro, em respeito aos reclamos da sociedade, deve lutar pela efetiva observância aos termos da lei, honrando, cada vez mais, o artigo 67 da LEP.
Paulo José de Palma é promotor de Justiça, assessor do Núcleo de Execuções Criminais do CAOCrim e integrante do MP Democrático.
Fernanda Narezi Pimentel Rosa é promotora de Justiça, assessora do Núcleo de Execuções Criminais do CAOCrim e integrante do MP Democrático.
Clique aqui e leia o original no Conjur.
Deixar um comentário