30 de julho de 2018

Por Charles Hamilton dos Santos Lima

Com as eleições gerais de outubro se aproximando, vem ganhando corpo algumas propostas de limitação da atuação do Ministério Público. Políticos de diversos matizes ideológicos demonstram preocupação com a atuação institucional no enfrentamento da corrupção e na efetivação dos direitos sociais previstos na Constituição da República.

As iniciativas não se restringem ao Congresso Nacional. Também nas Assembleias Legislativas ocorrem movimentos no sentido de conter os MPs. Exemplos recentes ou remotos não faltam.

Em 2017, a Assembleia Legislativa do Piauí, através da Emenda Constitucional 49, tentou restringir aos procuradores de Justiça a condição de elegibilidade ao cargo de Procurador-Geral de Justiça. A questão foi parar no Supremo Tribunal Federal e o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a eficácia da citada norma que alterou o artigo 142, § 1º da Constituição do Estado do Piauí.

Anteriormente, a Assembleia Legislativa de Pernambuco, através da Emenda Constitucional 20/2000, estabeleceu a possibilidade de destituição do procurador-geral de Justiça sem a autorização prévia do Colégio de Procuradores de Justiça. Também a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal e, por meio de decisão cautelar na ADI 2.436, a inovação legislativa foi afastada.

Em ambos os casos, as medidas judiciais propostas tiveram um mesmo fundamento: a assimetria da norma estadual em relação a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – Lei 8.625/93.

Contudo, as alterações propostas invadem matéria reservada à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.

O artigo 61, § 1º, II, d, da Constituição da República reserva à iniciativa privativa do presidente da República leis que disponham sobre organização do Ministério Público e sobre normas gerais para organização dos Ministérios Públicos estaduais. O artigo 128, § 5º, da CF estabelece que organização, atribuições e estatuto de cada Ministério Público serão estabelecidos em lei complementar de iniciativa do respectivo procurador-geral.

Editou o Congresso Nacional, com fulcro naquele comando constitucional, a Lei 8.625/1993 (LONMP), que estabelece normas gerais do Ministério Público dos estados e estabelece o estatuto básico de seus membros, de modo a conferir uniformidade básica entre os MPs, evitar disparidades institucionais e fortalecer o Ministério Público brasileiro.

Assim, cabe ao chefe de cada Ministério Público, na forma do artigo 128, § 5º, da Constituição da República, a iniciativa de lei complementar estadual que disponha sobre a organização, as atribuições e o estatuto correspondentes, atendido o regramento geral definido pela Lei Orgânica Nacional do Ministério Público. A esse respeito, assinala Hugo Nigro Mazzilli:

“Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa agora também é facultada aos respectivos procuradores-gerais estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público (CF, art. 61, caput, e 128, § 5º).

Não se esqueça de que cabe ao presidente da República a iniciativa exclusiva da lei de organização do Ministério Público da União e da lei que fixará normas gerais para a organização do Ministério da União e da lei que fixará normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados, do Distrito Federal e Territórios (artigo 61, § 1º, II, d).

É preciso vencer a contradição, até certo ponto apenas aparente, entre esses dispositivos.

O procurador-geral da República terá a iniciativa de leis na forma e nos casos previstos na Constituição de 1988 (artigo 61, caput); pelo princípio da simetria, os procuradores-gerais de justiça dos Estados também terão a iniciativa de leis, nas hipóteses correspondentes. Haverá uma lei federal, de iniciativa do presidente da República, que estabelecerá: a) a organização do Ministério Público da União (artigo 61, § 1º, II, d); b) normas gerais de organização do Ministério Público dos estados e do Distrito Federal (artigo 61, § 1º, II, d, segunda parte).

Na União, haverá ainda uma lei complementar, cuja iniciativa é facultada ao procurador-geral da República (e, por tanto, é de iniciativa concorrente do presidente da República) que estabelecerá a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União (artigo 128, § 5º). Nos estados, haverá leis complementares, de iniciativa facultada aos seus procuradores-gerais (e, igualmente, de iniciativa concorrente dos governadores), que farão o mesmo com os Ministérios Públicos locais (ainda o artigo 128, § 5º).

Ora, a iniciativa presidencial exclusiva é reservada para uma lei nacional que fixará apenas as normas gerais de organização do Ministério Público dos estados e do Distrito Federal. Assim, leis complementares da União e dos estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos procuradores-gerais, minudenciarão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, obedecidas as normas gerais fixadas na lei federal.

Segundo o parágrafo único do artigo 96 da Carta de 1969, com a Emenda 7/77, era bem mais restrito o campo reservado à lei complementar nacional do Ministério Público; destinava-se esta apenas à fixação de normas gerais a serem adotadas na organização do Ministério Público estadual, observado o disposto no § 1º do artigo 95 (que cuidava do concurso de ingresso, da estabilidade e da inamovibilidade relativa).

O novo texto constitucional, entretanto, além de conferir à lei federal a explicitação de normas gerais de organização do Ministério Público dos estados e do Distrito Federal (artigos 21, XIII, 22, XVII, 48, IX, 61, § 1º, II, d, 68, § 1º, I), ainda prevê possa a lei complementar respectiva estabelecer-lhe o respectivo estatuto e fixar-lhe atribuições. Conquanto em tese a legislação processual caiba à União (CF, artigo 22, I, ressalvada a exceção do seu parágrafo único, bem como a matéria procedimental de competência concorrente dos Estados, conforme artigo 24, X e XI), o permissivo constitucional que faculta à legislação complementar local estipular normas de atribuição do Ministério Público acabará por permitir, sem dúvida, que a legislação local disponha sobre novas áreas de atuação, inclusive conferindo-lhe, por exemplo, hipótese de intervenção processual (como a defesa de deficientes, por exemplo)”.[1]

Deste modo, nos Ministérios Públicos estaduais coexistem dois regimes de organização: o da Lei Orgânica Nacional, que estatui normas gerais, e o da lei orgânica do estado, que delimita, em lei complementar de iniciativa do procurador-geral de Justiça, o estatuto de cada Ministério Público.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu pela inconstitucionalidade de lei estadual que dispunha sobre matéria regulada pela LONMP, em razão do caráter nacional desta última e que se impõe aos estados-membros:

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXTENSÃO DO AUXÍLIO-MORADIA AOS MEMBROS INATIVOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL.

INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A Lei 8.625/1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (LONMP) –, ao traçar as normas gerais sobre a remuneração no âmbito do Ministério Público, não prevê o pagamento de auxílio-moradia para membros aposentados do parquet. Como a LONMP regula de modo geral as normas referentes aos membros do Ministério Público e não estende o auxílio-moradia aos membros aposentados, conclui-se que o dispositivo em análise viola o artigo 127, § 2º, da Carta Magna, pois regula matéria própria da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e em desacordo com esta.
(…)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE.
(ADI 3783, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2011, DJe-107 DIVULG 03-06-2011 PUBLIC 06-06-2011 EMENT VOL-02537-01 PP-00004 RTJ VOL-00224-01 PP-00318 RT v. 100, n. 910, 2011, p. 355-363)”

Destaque-se os ensinamentos de Emerson Garcia: “no âmbito estadual, os Procuradores-Gerais de Justiça terão a iniciativa para a edição das respectivas leis complementares (artigo 128, § 5º, da CF/1988), observadas às normas gerais estatuídas pela Lei Orgânica Nacional”.

Isto porque o artigo 24, § 2º, da Constituição da República, prevê que a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

Segundo Tércio Sampaio Ferraz, “a competência suplementar não é para a edição de legislação concorrente, mas para a edição de legislação decorrente, que é uma legislação de regulamentação, portanto, de normas gerais que regulam situações já configuradas na legislação federal e às quais não se aplica o disposto no § 4º (ineficácia por superveniência de legislação federal), posto que com elas não concorrem (se concorrem, podem ser declaradas inconstitucionais). É, pois, competência que se exerce à luz de normas gerais da União e não na falta delas”.[2]

O ministro Celso de Mello, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.903/PB, afirmou que:

“é evidente que não assiste, ao Estado-Membro, a possibilidade constitucional de contrariar, no domínio da legislação concorrente, as diretrizes gerais que a União Federal estabelecer em sede de legislação nacional de princípios, pois, tratando-se de temas objeto da competência concorrente a que alude a Carta Política, há uma precisa delimitação jurídica que bem discrimina o âmbito material da intervenção normativa de cada uma dessas pessoas políticas, reservando-se, à União Federal, a competência para legislar sobre normas gerais (CF, art. 24, § 1º), e atribuindo-se ao Estado-membro, o exercício da ‘competência suplementar’ (CF, art. 24, § 2º, in fine).

Cabe mencionar, ademais, as decisões proferidas nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 1.245, 2.084, 2.396, 2.667, 5.163 e Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.700; nas quais, de igual modo, se analisou controvérsia análoga a presente – normas locais em antinomia com regras gerais definidas pela União.

Os exemplos do Piauí e de Pernambuco mostram, sem sombra de dúvida, que a Lei Orgânica Nacional, longe de constituir um estorvo que impede o aperfeiçoamento dos Ministério Públicos, representa uma garantia para a instituição e, em última análise, para a sociedade. Abriga e protege contra as tentativas de desfiguração que, ora e outra, emergem contra o Ministério Público.

Infelizmente, algumas ações podem por em risco essas garantias institucionais. Isso ocorre quando o próprio Ministério Público propõe alterações nas normas estaduais fora do escopo da Lei Orgânica Nacional ou quando se aceita que, mesmo sem ter a iniciativa legislativa para tal, deputados estaduais modifiquem pontos da Lei Orgânica local sem que tal mudança tenha surgido no âmbito da instituição.

Um e outro caso representam verdadeiros cavalos de Tróia em um momento em que várias forças políticas se mobilizam contra o Ministério Público. Como advertia Frei Caneca, Patrono de nossa República: “Cautela, união, valor constante. Andar, assim, é bom andar”.

[1] 3 MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 73-75.

[2] Ferraz Junior, Tércio Sampaio. In Normas Gerais e Competência Concorrente. Uma exegese do art. 24 da Constituição Federal.

Charles Hamilton dos Santos Lima é procurador de Justiça do MP-PE e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

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