6 de agosto de 2018
Por Airton Florentino Barros
Embora a inflação acumulada dos últimos 12 meses, pelo IPCA, não chegue a 3%, operadoras de planos coletivos de saúde reajustam seu preço em 20% para o período. Nada justifica, entretanto, esse aumento.
Acontece que o reajuste da mensalidade dos contratos de plano de saúde regula-se pela legislação instituidora do plano econômico de estabilização da moeda (Lei 8.880/94), uma das maiores e irrenunciáveis conquistas nacionais das últimas décadas, que vedou reajuste de prestações contratuais em períodos inferiores a um ano e a incidência de índices de correção monetária superiores aos oficiais (cf. tb. Lei 9.069/95, artigos 27 e 28, parágrafo 1º). E a Lei 9.656/98, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, embora posterior, não alterou esse critério, visto que a Lei 10.192/2001, bem posterior, manteve expressamente o referido regramento econômico em defesa da manutenção do valor da moeda e consequente combate à inflação, como política de interesse de todos os seguimentos sociais que, por isso, a todos sem exceção há de sujeitar.
É necessário entender que o plano de saúde, antes de ser colocado à disposição do consumidor, passa por cálculo atuarial, que inclui estatística de risco por idade, características naturais e genéticas, ocupacionais, sinistralidade e viabilidade financeira, sob pena de não ser aprovado pela ANS (Lei 9.656/98, artigo 8º e 19).
Assim, qualquer reajuste acima dos índices oficiais de inflação configura bis in idem.
Nada impede que a ANS autorize o reajuste de preços de novos planos a serem ainda oferecidos aos consumidores. Mas os contratos anteriores já contemplam reajustes por faixa etária, justamente com fundamento na estatística do risco por sinistralidade, de modo que seus preços só poderão se sujeitar ao reajuste máximo pelo índice oficial da inflação, pena de caracterizar abusividade.
Note-se que, se a lei especial (9.656) autorizasse o reajuste de tais prestações acima dos índices oficiais de inflação, cairia de qualquer forma na inconstitucionalidade, seja porque a lei não pode ser editada para favorecer pessoas ou grupos sociais, com afronta ao regime republicano e ao princípio da impessoalidade dos atos do Estado, seja por ofensa ao princípio da isonomia, visto que o sistema desigualaria odiosamente as condições entre prestador de serviços de saúde e consumidores (CF, artigos 1º, 5º e 37). Seria o mesmo que autorizar a coexistência de duas moedas circulantes no país: uma (R$) para o comum do povo e a outra (US$) para os banqueiros e seguradores. Aliás, mesmo o dólar não alcança o reajuste anual de 20% além da inflação.
Ademais, se a propriedade, inclusive de empresas e capitais (CF, artigo 5º, XXII) deve cumprir sua função social (CF, artigo 5º, XXIII) e a liberdade de contratar deve respeitar os limites da função social do contrato (Código Civil, artigo 421), com muito mais razão devem os contratos regulados pela Lei 9.656/98 evitar que os segurados se tornem reféns dos abusos das seguradoras e operadoras de assistência à saúde.
Ora, o que caracteriza o contrato de seguro ou plano de saúde é justamente a assunção pela operadora do risco de responsabilizar-se por maior ou menor número de sinistros em determinado período. Não pode ela, pois, devolver tal risco ao segurado, que só a contratou com a única finalidade de evitá-lo.
Não é por outra razão que proíbe a lei a variação do valor até mesmo para a renovação de contrato temporário (Lei 9.656/98, artigo 13).
Por outro lado, não se diga que os planos coletivos de saúde não se sujeitam a esse controle, por força do disposto no artigo 35-E, parágrafo 2º, da Lei 9.656/98, que estabelece, apenas para os planos individuais, que a aplicação de cláusula de reajuste das contraprestações pecuniárias dependerá de prévia aprovação da ANS (Lei 9.656/98, artigo 35-E, parágrafo 2º). Não se pode esquecer, pois, que a cláusula relativa aos critérios de reajuste das contraprestações pecuniárias, tanto do plano individual como do coletivo, devem constar do contrato padrão (artigo 16, XI), sujeito à fiscalização e controle da ANS (artigos 1º, parágrafo 1º, 20, parágrafo 1º).
Ademais, quem quer que tenha acompanhado o processo legislativo a respeito, desde os Projetos de Lei do Senado (93/93) e da Câmara (4.425/94), sabe que a exclusão do plano de saúde coletivo do preceituado no artigo 35-E, parágrafo 2º, da Lei 9.656, não tinha por finalidade estabelecer um salve-se quem puder na contratação ou dar à operadora o odioso privilégio de definir o índice de reajustamento que quisesse.
O intuito do legislador sempre foi o de oferecer maiores vantagens ao coletivo do que ao individual. E nem poderia ser o contrário. Era de se presumir, pois, que alguém que representasse uma coletividade considerável tivesse maiores chances de obter vantagens que ao contrato individual não se concede. É que, nas regras de mercado, o plano de saúde coletivo é naturalmente mais vantajoso para a operadora, pela redução dos custos de administração, de produção, prestação de serviços, cadastramento, além da maior certeza de pontual arrecadação, sem contar a possibilidade de maiores lucros com a captação e conseqüente capitalização de vultosos recursos coletivos. É o que se chama na linguagem mercantil de economia de escala.
Em outros termos, o que se previa e o que se pretendia prever era que os contratantes de planos coletivos de assistência à saúde, pela força da união de inúmeros segurados que representam, de uma só vez, tivessem espontâneo cacife para negociar melhores preços e índices de reajuste do que os conquistados pelos planos individuais.
Não se pode esquecer, por fim, que a saúde a ser prestada pelo regime universal é dever do Estado (CF, artigo 5º, 6º, 196), nada impedindo que esse serviço seja prestado por convênios, em regime complementar ou suplementar (CF, artigo 199). Todavia, se uma empresa resolve atuar no campo da saúde, não pode agir como se sua atividade fosse meramente mercantil (Lei 8.080/90, artigo 22). Saúde não é comércio.
Airton Florentino de Barros é advogado e professor de Direito Comercial. Foi procurador de Justiça em São Paulo e também fundador e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MP Democrático).
Clique aqui e leia o original no Conjur.
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