11 de dezembro de 2017
Por Ruy Fernando G. L. Cavalheiro
Para Roger Bacon, um dos alquimistas do século XIII, o chumbo conteria propriedades que permitiriam que fosse transformado em ouro. Paracelso, alquimista que o sucedeu no Renascimento, era um opositor da transmutação dos metais e um precursor do que viria a se firmar como sendo a Química. A ideia de se transformar chumbo em ouro, contudo, é a que se associa com frequência à alquimia.
A reforma trabalhista aplicada por meio da Lei 13.467/2017 parece ter promovido um renascimento da alquimia, ou melhor, da ideia comumente associada à alquimia, que é a de transformar chumbo em ouro.
A lei alterou drasticamente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Como um mantra entoado de forma uníssona, os planejadores e executores da reforma trabalhista sustentaram que a CLT seria velha e inadequada para esta realidade tão ágil e dinâmica. Assim, a CLT precisava ser modernizada, e a modernização veio sob a forma de alterações que são completamente prejudiciais apenas para uma das partes da relação de trabalho, que é o empregado. Não há uma disposição sequer que limite direitos do empregador ou lhe imponha restrições. Mas para o empregado…
Os artigos 223-B e 223-G limitam o direito do empregado à plena reparação pelos danos sofridos, afastando a incidência da norma de indenização proporcional ao agravo decorrente da leitura combinada dos incisos V e X do artigo 5º da Constituição Federal. O empregado, quando litigar, não poderá nem cumular indenizações distintas, como à imagem, estética ou moral, e terá a indenização limitada a um teto calculado sobre sua remuneração. Ele passa a ter menos direitos do que as demais vítimas de atos ilícitos de origem civil, consumerista ou administrativa. A nenhuma dessas pessoas é vedada a cumulação de indenizações, muito menos a indenização proporcional ao agravo. Quem alterou a CLT parece acreditar que a proporção é meramente econômica, baseada na remuneração. Um acidente fatal que vitime o faxineiro e o gerente de uma mesma empresa gerará uma indenização calculada no salário mínimo ou piso convencional do faxineiro e outra calculada nas dezenas de milhares de reais percebidos pelo infeliz personagem dessa hipótese.
Outra situação de perda de direitos do empregado é a que vem consignada no artigo 443 parágrafo 3º, sobre o contrato de trabalho intermitente. Já adotado por cadeias de fast food no Brasil, essa modalidade de contratação faz com que o trabalhador apenas receba pelo tempo efetivamente trabalhado ao empregador. O empregado comparece para trabalhar uma hora, talvez duas, eventualmente mais, e esse período pode ser o total da sua prestação de trabalho ao empregador naquele dia, ou naquela semana, ou naquele mês. Trata-se não apenas de uma redução drástica de remuneração, que será paga conforme o tempo efetivamente trabalhado. Mas, também, de uma exigência de prontidão constante e de prestação de serviços a mais de um empregador, talvez a mais de dois ou três. Essa modernidade não é nada boa para o empregado.
Alarmante também é a possibilidade de dispensa coletiva sem a necessidade de negociação prévia com o sindicato da categoria, contida no artigo 477-A. Por meio da leitura combinada de normas constitucionais e de convenções da Organização Internacional do Trabalho, passou a se entender que uma dispensa coletiva de empregados, que coloque na rua percentuais significativos da mão de obra de uma empresa, deve ser precedida de negociação coletiva, para que modalidades alternativas à demissão possam ser discutidas e, caso não possam ser tentadas, que critérios de demissão sejam ajustados para preservar o trabalho dos mais velhos, dos casados, daqueles que mais necessitem da manutenção do vínculo empregatício. A alteração promovida na CLT afasta qualquer necessidade de negociação, entregando à própria sorte as dezenas, centenas e, em alguns casos, milhares de desempregados afetados por uma demissão em massa.
E essa alteração é surpreendentemente contrária à própria Lei 14.769/2017, que trouxe a ampla negociação coletiva entre sindicatos e empregadores, nos artigos 611-A, 611-B e 620. A negociação coletiva gera as convenções coletivas e acordos coletivos, instrumentos responsáveis pela regulação específica das condições de trabalho daquele empregador e daqueles empregados. No passado, esses instrumentos criaram direitos trabalhistas que viraram texto de lei, como o 13º salário e a redução do período de trabalho para 44 horas semanais. Essas previsões sempre foram um acréscimo aos direitos legalmente previstos, e nunca uma restrição a eles. E isso pelo fato de o caput do artigo 7º da Constituição Federal prever tanto a proteção do trabalhador como a progressividade de seus direitos, o que impediria a sua limitação, ainda que acordada pelo ente sindical.
A alteração promovida pela reforma trabalhista libera, sem restrições, a negociação coletiva, sem a necessidade de se respeitar qualquer patamar, a não ser os constitucionais expressamente indicados. Qualquer direito legal poderá ser transacionado e renunciado entre o empregador e o sindicato. Não é preciso muito esforço para imaginar que sindicatos fracos e sindicatos sem compromisso com as categorias representadas poderão simplesmente desistir de direitos. E sem a possibilidade de análise judicial, eis que o artigo 611-A praticamente blinda esse acordo a qualquer escrutínio, a não ser o que se dê tendo em vista os insuficientes requisitos do negócio jurídico previsto no artigo 104 do Código Civil, mediante expressa previsão nesse sentido. Ao empregado foi vedada tanto a proteção contratual individual contida no Código Civil quanto a coletiva contida no Código do Consumidor. É tanta modernidade nessas disposições que a CLT agora se assemelha ao Código Civil de 1916.
E ainda há a declaração anual de quitação de débitos, os acordos trabalhistas individuais extrajudiciais, o trabalho da gestante em ambiente insalubre, dentre outras alterações gravosas apenas aos empregados.
Informalmente, quando uma pessoa perde em uma avaliação, ou é frustrada em uma pretensão, ou é derrotada de modo geral, se diz que a pessoa levou chumbo. E assim, eis que a alquimia é revitalizada pelos artífices da reforma trabalhista, que transformam esse chumbo todo, essas perdas, essas frustrações, essas derrotas do trabalhador, em ouro. Ouro de poucos, ou ouro retórico, mas ainda assim ouro, algo precioso, valioso. Roger Bacon talvez ficasse feliz, mas, se fosse um empregado, jamais veria esse ouro.
Referências bibliográficas
ROSA, C. A. P. História da Ciência. Vol. I. Da Antiguidade ao Renascimento Científico. 2ª ed. Fundação Alexandre de Gusmão: Brasília, 2012.
SANTOS, O. T. L. Transmutação Alquímica na Obra de Roger Bacon. (Monografia) Bacharelado em História. Universidade de Brasília: Brasília, 2011.
Ruy Fernando G. L. Cavalheiro é procurador do Trabalho, mestrando em Direito, especialista em Filosofia do Direito e integrante do MP Democrático.
Clique aqui e leia o original no Conjur.
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