Nunca antes em nossa história o Supremo Tribunal Federal adquiriu a visibilidade alcançada nos últimos anos. Desde o célebre julgamento do mensalão essa corte de Justiça consolidou a sua posição como palco principal das grandes batalhas jurídicas envolvendo algumas das grandes questões nacionais, principalmente aquelas relativas a casos de corrupção consubstanciados em desvios de enormes quantias de recursos públicos.
Ao lado disso, ali também têm sido examinados muitos temas outrora deixados à exclusiva deliberação do Congresso Nacional e do Poder Executivo. A este último fenômeno convencionou-se denominar ativismo judicial, que, de resto, também se espraiou para outros segmentos da estrutura do poder judiciário brasileiro, da União e dos Estados.
A rigor, presenciamos uma situação inédita na história brasileira, caracterizada pelo aparecimento de dois fenômenos conhecidos como a judicialização da política e a politização da justiça.
Em linhas gerais, esse ativismo judicial tem-se caracterizado por um papel de maior protagonismo do Poder Judiciário na interpretação das normas jurídicas a partir dos princípios e regras programáticas insculpidas principalmente na Constituição Federal, julgando os casos concretos para além dos estritos termos da legislação a eles aplicável. Para os seus defensores, a crescente complexidade econômica e social da sociedade impõe essa nova postura como inexorável para contemplar as demandas emanadas dos mais diversos setores sociais.
Esse quadro também tem sido incrementado pela desenvoltura do Ministério Público, que cada vez mais, no exercício de suas atribuições institucionais, também vem contribuindo para o surgimento de novas e mais complexas demandas submetidas à análise do judiciário.
Esse novo protagonismo do STF tem gerado, com relativa freqüência, atritos institucionais com o Congresso Nacional e o Governo Federal.
Nesse sentido, tem crescido o número de decisões desse tribunal a respeito de assuntos que aquelas instâncias governamentais consideram da sua exclusiva atribuição, não sendo novidade acusações de que a nossa mais alta corte de justiça tem usurpado competências próprias do legislativo e do executivo, envolvendo, por exemplo, questões de gênero, costumes, eleitorais e de políticas econômicas. Estas últimas, por vezes, envolvendo o destino de bilhões de reais, com graves efeitos para a saúde e a governança das finanças públicas.
Essas avaliações críticas de determinadas decisões são ainda mais contundentes — muitas delas procedentes — porque proferidas a partir de concessões de medidas liminares, muitas delas monocráticas, que se projetam no tempo sem que tenham sido sequer confirmadas pelos colegiados que compõem esse tribunal (as suas duas turmas e o Plenário). Aliás, a propósito, esse, de fato, é um equívoco que vem sendo sistematicamente cometido pela quase totalidade dos seus ministros, gerando incertezas, interrupções e paralisações de políticas públicas formuladas e implementadas no âmbito do poder executivo, que constituem o âmago das responsabilidades dos governos, eleitos exatamente para essas finalidades. Isso só agrava o sentimento de insegurança jurídica, particularmente no que diz respeito às questões econômicas.
Decisões dessa natureza vêm se avolumando vertiginosamente, quase que semanalmente, ao sabor de fatos e notícias nem sempre bem esclarecidos no tocante à sua concretude, repercutindo no noticiário político e alimentando um círculo vicioso que pouco ou quase nada contribui para um claro e preciso esclarecimento da opinião pública.
Definitivamente, o nosso STF se converteu em um tribunal errático e incapaz de decidir célere e colegiadamente sobre questões essenciais para a vida do país. Não por ocaso, passou a ser visto como um arquipélago composto por onze ilhas, residindo aí um importante fator da sua perda de credibilidade institucional perante amplos setores da sociedade brasileira, o que é muito prejudicial para a consolidação da nossa democracia.
Mas é no campo da aplicação e interpretação da nossa legislação penal que muitas decisões do STF adquiriram dimensão e repercussão extraordinárias, sobretudo nos casos alusivos aos grandes escândalos de corrupção que permearam a vida pública brasileira nos último dezesseis anos, embora o vírus da corrupção, em maior ou menor grau, acompanhe toda a nossa história.
Nessa temática, nenhum dos nossos ex-governos nacionais teria como reivindicar para si o monopólio da mais destacada virtude republicana: a lisura no uso do dinheiro público.
Nesse quesito — o tratamento penal a ser dado aos chamados crimes de corrupção e delitos a eles associados, os nossos ministros já deram demonstrações de que se encontram bastante divididos. Ganhou corpo o conhecido duelo entre os garantistas e os consequencialistas. Os primeiros, privilegiando a aplicação estrita das normas asseguradoras dos direitos e garantias processuais dos réus, que estariam acima de quaisquer outras considerações, em linha ao formalismo da cultura jurídica de origem romana. Os últimos, sem abdicar do respeito às garantias constitucionais do devido processo legal, sustentando que as decisões de natureza penal também precisam levar em conta as conseqüências decorrentes dos crimes praticados, com destaque, em matéria de crimes contra a administração pública, aos seus efeitos econômicos e sociais, elegendo esses critérios como parâmetros hermenêuticos para uma moderna e boa aplicação das leis penais, denotando aí indisfarçável aproximação com a visão pragmática que notabiliza a cultura jurídica anglo-saxônica.
Registre-se, por oportuno, que os países que consagraram essa última cultura jurídica são exatamente aqueles que mais êxitos obtiveram em suas políticas anticorrupção.
Cumpre lembrar que recentes decisões colegiadas e monocráticas do STF, acolhendo teses jurídicas obsoletas, criaram, na prática, dificuldades adicionais ao enfrentamento dos delitos de corrupção, como a proibição de condução coercitiva de investigados, o reconhecimento da constitucionalidade do indulto mais generoso aos condenados por corrupção da história da república, editado pelo ex-presidente Temer, o envio para a justiça eleitoral dos crimes de corrupção associados ao delito de caixa dois e a recentíssima decisão liminar do presidente Toffoli proibindo o compartilhamento de dados bancários e fiscais do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e da Receita Federal com a Polícia Federal e o Ministério Público sem prévia autorização judicial, contrariando a jurisprudência do próprio Supremo, sendo igualmente certo que se essa decisão vier a prevalecer ela acarretará dificuldades ao país na suas relações com alguns organismos internacionais.
Como se vê, a esperança da esmagadora maioria da nossa população em vislumbrar uma reversão no quadro de corrupção sistêmica instaurado no Brasil depende de decisões cruciais a cargo do STF, que, como não poderia deixar de ser, se converteu no epicentro da mais importante disputa já travada nesse Tribunal.
A nação brasileira já deu sinais induvidosos de que não se resignará a viver sob o jugo dos cleptocratas que roubam os seus sonhos.
Carlos Cardoso de Oliveira Júnior é procurador de Justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.
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