2 de abril de 2018

Por Márcio Rosa da Silva

Não é apenas retórica, está lá na Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo XIII, 2: “Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”. A Constituição da República também replica esse direito no seu artigo 5º, inciso XV, quando dispõe que qualquer pessoa pode entrar no território nacional, nele permanecer ou dele sair com seus bens, nos termos da lei.
Esse tema deveria ser tratado com muita naturalidade num país como o Brasil, fruto de migrações contínuas há mais de cinco séculos. Pessoas de todos os lugares do mundo, alguns voluntariamente e outros de maneira forçada, para cá vieram e se estabeleceram. Habitantes originários deste país continente somente os povos indígenas, eles que também tiveram seus movimentos migratórios há milhares de anos. Mas a questão ainda provoca suscetibilidades. Sempre surgem vozes hostis aos que tentam recomeçar a vida em nosso país, não sendo incomum discursos e práticas xenofóbicas.
O estado de Roraima vive o impacto de um fluxo migratório sem precedentes. Há estimativas de que na capital, Boa Vista, já haja 70 mil venezuelanos, o que corresponde a 20% da população. Há dois anos eram apenas algumas centenas. O crescimento foi, e está sendo, vertiginoso. Obviamente que os serviços públicos não estão dando conta de tanta gente chegando num ritmo tão rápido, especialmente na capital e na cidade fronteiriça de Pacaraima. Fugindo de uma crise humanitária no país vizinho, onde não conseguem o básico para viver, os imigrantes chegam em busca de trabalho, o que não encontram aqui, haja vista que a economia não consegue absorver toda a mão de obra ofertada — e nem sempre qualificada. Enfrentam, então, o drama da fome. O drama só não virou uma grande tragédia por causa da solidariedade de pessoas, ONGs e instituições religiosas, que, amadoristicamente, oferece comida, roupas e artigos de higiene pessoal para milhares de pessoas que se abrigam como podem em praças da cidade.
Como a situação parece descontrolada, há crescente insatisfação da população, que não vê medidas suficientes serem adotadas por parte do poder público. Essa insatisfação, em alguns casos, tem transbordado em declarações abertamente xenofóbicas, o que levou o Ministério Público do estado a iniciar uma campanha de conscientização, bem como a requisitar a instauração de um inquérito policial para apurar o crime previsto no artigo 20 da Lei Federal 7.716/89, praticado em redes sociais. Tal artigo dispõe que é crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A pena é de 1 a 3 anos de reclusão e multa. Se o crime é praticado por meios de comunicação social, a pena é de 2 a 5 anos de reclusão, além da multa. O Ministério Público também criou um Grupo Especial de Atuação e Acompanhamento da Situação Imigratória, com o objetivo de dar suporte aos promotores de Justiça que atuam nessa questão em todo o Estado.
Como se trata de um problema que ultrapassa a esfera de atuação do estado e do município, espera-se que o poder público federal assuma o protagonismo que deve ter em casos semelhantes. A União, entretanto, chega com dois anos de atraso. Com o agravamento da situação, a Presidência da República editou a Medida Provisória 820, de 15 de fevereiro, que dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária. Tais medidas são de proteção social, assistência à saúde, garantia dos direitos humanos, distribuição de insumos, proteção de crianças, mulheres, idosos, pessoas com deficiência e população indígena e segurança pública, entre outras. Essa medida provisória também cria um Comitê Federal de Assistência Emergencial para acolhimento.
No mesmo dia em que foi editada a MP 820, foram baixados dois decretos presidenciais. O primeiro reconhece formalmente a situação de vulnerabilidade decorrente do fluxo migratório para o estado de Roraima, provocado pela crise humanitária na Venezuela (Decreto 9.285/2018). O segundo estabelece os membros do comitê criado pela MP 820, bem como a forma de atuação do mesmo.
A declaração formal do Estado brasileiro reconhecendo haver uma crise humanitária no país vizinho possibilita a acolhida humanitária, prevista no inciso VI, do artigo 3º, da Lei Federal 13.445/2018 (Lei de Migração) autorizando a concessão do visto temporário, conforme artigo 14 da mesma lei. O visto temporário para acolhida humanitária pode ser concedido para imigrantes de países em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção ou de grave violação de direitos humanos (artigo 14, parágrafo 3º, da citada lei).
Outra possibilidade legal para acolhida regular de imigrantes venezuelanos é o refúgio, previsto na Lei Federal 9.474 (Lei do Refúgio). O refúgio poderá ser concedido pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), em casos de perseguição por motivos de raça, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas ou àqueles que, devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, são obrigados a deixar seu país.
Mais recentemente o comitê criado pela MP 820 já enviou os primeiros esforços, e a União liberou vultosa quantia de dinheiro. Toda a ação tem três fases: acolhida, integração e interiorização. Esta última é para aqueles que desejam alcançar outros estados, o que evitaria o colapso de Roraima. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) também está presente nessa ação dos governos, além de ONGs de âmbito nacional e internacional.
Há, pelo menos, quatro abrigos funcionando e um quinto quase pronto. Entretanto, há ainda milhares de imigrantes desabrigados pelas ruas e praças de Boa Vista e Pacaraima e milhares chegando todos os meses. É uma migração forçada pela fome, pela deterioração das condições para sobrevivência, pela falta do mínimo existencial. A situação é tão grave que muitos se aventuram a pé, andam centenas de quilômetros até chegarem a Boa Vista; outros seguem, ainda a pé, para Manaus.
Grandes ondas migratórias não são novidade em Roraima, estado formado, em quase sua totalidade, por migrantes. A missão, agora, é acolher os imigrantes venezuelanos dentro daquilo que os marcos legais determinam, mas também conforme nossa humanidade clama, afinal, ninguém deixa seu país e toda sua história para trás e vem para um país de língua, cultura e leis diferentes se não for o último recurso.
Além de cumprir a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição da República e as leis, é necessário ter o mínimo de empatia, afinal, poderia ser qualquer um de nós.
Márcio Rosa da Silva é promotor de Justiça em Roraima, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e integrante do MP Democrático.

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