Nos últimos dias, travou-se um tenso embate na esfera legislativa federal em relação ao teor da Medida Provisória 870, que versa sobre a reforma administrativa federal, reduzindo o número de ministérios, entre outros temas, que acabou sendo convertida em lei, incluindo-se no texto aprovado lamentavelmente a retirada do Coaf da alçada do Ministério da Justiça.
O desfecho é descabido do ponto de vista do interesse público e do bem comum, mas compreensível dentro da lógica política que nos coloca na última posição na América Latina no quesito percepção da sociedade em relação ao universo de políticos que exercem o poder para o bem da comunidade (apenas 7% segundo o Latinobarómetro 2018). Tanto assim, que o partido político Podemos levou o tema ao STF por violação ao principio da separação de poderes.
No mesmo contexto (MP 870), a sociedade reagiu e conseguiu derrubar a mordaça aos auditores federais, colocada ali na forma de jabuti legislativo, pretendendo-se a surreal proibição de que tais profissionais reportassem crimes com os quais se tenham deparado ao realizarem fiscalizações tributárias.
Parece piada de mau gosto, mas é realidade. Pretendia-se instituir em lei a cumplicidade ao crime e a covardia de auditores federais como padrão de conduta, sendo destacável que o Senador Relator proponente é investigado por crimes contra o patrimônio público.
O jabuti foi retirado após forte reação da sociedade, mas, já se fala em seu retorno via emenda no PL 6064/16, no qual também se pretende eliminar de forma muito conveniente a sonegadores de tributos o voto de minerva de auditores federais nos julgamentos realizados pelo Carf.
Notícia do jornal O Estado de S.Paulo da última sexta, 31/05, informa agora que deputados federais podem esvaziar pacote anticrime de Moro, referindo-se a matéria mais especificamente à proposição nele contida sobre prisão após condenação em segundo grau.
Argumentam alguns Deputados Federais que seria necessário em seu entendimento que a proposição fosse formulada via Proposta de Emenda Constitucional. Lembro que uma PEC precisa do dificílimo quórum de 2/3 para aprovação (um PL, de maioria simples). Lembro também que a Constituição Federal, diferentemente do que muitos inadvertidamente afirmam, não versa sobre o tema.
O artigo 5, LVII esculpe princípio (e não, regra determinadora completa) segundo o qual ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado. Portanto, não veda a prisão antes da condenação definitiva.
Esta pequena sequência da última semana, que recortei, ilustra a dinâmica que tem caracterizado muitas das deliberações do Congresso Nacional, divorciadas dos concretos anseios da sociedade, que traz a compreensão em cores bem vivas dos milhares de tons da crise de representatividade política, que colocou o Brasil na última posição no mundo (137 países examinados) em matéria de credibilidade dos políticos (Fórum Econômico Mundial 2017).
Fixando-me no tema da prisão após condenação em segundo grau, pouco importa que o tema venha dentro do pacote de Moro ou por sugestão de parlamentar de qualquer partido que seja. O ponto é: não é bom para a sociedade que matéria deste relevo dependa de humores interpretativos de julgadores do STF. Isto gera insegurança jurídica, perda de credibilidade da justiça para a sociedade, e, talvez o pior de tudo, alimenta perversamente o círculo maldito da impunidade, pior de todos os males.
O mundo todo prende para punir após sentença de primeiro grau ou, no máximo, após confirmação pelo tribunal. Cogitar em usar um sistema que exige o percurso a quatro graus de jurisdição num lapso de 12, 15 ou 20 anos para realizar a prisão punitiva parece escárnio ao povo ou a lógica do processo de Kafka, como no caso de Pimenta Neves, que mesmo tendo confessado o assassinato frio da namorada não poderia ser levado à prisão para cumprir a pena que admitia merecer. Não é aceitável nem plausível.
Sem podermos nos esquecer que as inéditas e históricas responsabilizações de poderosos, possíveis em boa medida pelas colaborações premiadas reguladas pela Lei 12.850/13, construídas com perseverança pelo Ministério Público nos acordos de delação estarão bloqueadas naturalmente, já que a falta concreta de perspectiva de condenação efetiva obviamente desestimularia as colaborações.
O exercício da ação penal pública pelo MP se desbotaria e se tornaria inútil nesta lógica. O mundo percebeu isto. Consome-se tempo, recursos públicos imensos, submetendo-nos à rotina do absurdo, esmagando-se o bom senso, a razoabilidade e o próprio princípio constitucional da eficiência. A supremacia do interesse público deve determinar o regramento do tema, de forma a proteger a sociedade, para que não se institua por lei o impensável direito à impunidade.
Roberto Livianu é promotor de Justiça em São Paulo, doutor em Direito pela USP, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático c Comentarista do Jornal da Cultura.
Clique aqui e leia o original no Conjur.
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