02/05/2016
Por Samantha Chantal Dobrowolski
Inserida no denominado microssistema de defesa da integridade e editada após as manifestações populares de junho de 2013 e da perplexidade geral daí advinda, a Lei Anticorrupção (LAC) — Lei 12.846, de 01/08/2013 — decorre também de pressões externas para o Brasil regulamentar a repressão ao “suborno de funcionário estrangeiro” e a agentes privados que praticam ou se beneficiam de “atos de corrupção”, segundo tratados internacionais de que o país é signatário. Não obstante, ao surgir, ao mesmo tempo em que se volta às demandas de mais fair game no ambiente negocial global, visa especialmente à figura da pessoa jurídica corruptora, pretendendo ampliar a capacidade de controle interno dos entes políticos da federação e a esfera administrativa de responsabilização. Daí, a “lei da empresa limpa” ou “lei da improbidade empresarial”, além de inovar com previsões sobre programas de compliance e a exigência de demonstração de compromisso efetivo das empresas com ética e políticas internas de integridade, adotar a imputação objetiva de responsabilidade à pessoa jurídica, independentemente da apuração de dolo ou culpa, pelos atos lesivos contra o poder público nacional ou estrangeiro praticados em seu favor, e, ainda, acolher a possibilidade de acordo de leniência e sanções afetas à existência material e à sobrevivência da sociedade empresarial.
Esse modelo de responsabilização alinha-se à tendência internacional que reconhece ser a corrupção, atualmente, fenômeno que passa por organizações, mais do que decorre de iniciativas individuais isoladas, envolvendo práticas reiteradas e complexas redes de interação entre diversos atores sociais, com alto grau de institucionalização, funcionando como uma “regra do jogo” na sociedade. Além das mazelas que causa com o desvio de recursos para finalidades sociais, a corrupção impede o avanço econômico, inibe iniciativas, desiguala competidores, subverte incentivos, contamina processos eleitorais, interfere no funcionamento adequado do setor público, e, para se reproduzir ou se ocultar, promove e acoberta outros crimes. Por isso, afeta a confiança nas instituições, na democracia e no próprio Estado de Direito e deve ser enfrentada em todos os foros em que ocorra, o que tem mobilizado os países interessados em trocas mais livres e equilibradas, desenvolvimento social e econômico, gerando, inclusive, medidas legislativas, como a LAC.
Certamente, como outros diplomas, a LAC apresenta imperfeições em seu conjunto, estando ainda sujeita a oportuno teste de constitucionalidade. Todavia, ostenta importante carga simbólica e pedagógica, voltada a fomentar nova cultura de integridade e ética nas relações dos agentes do mercado com o Estado, por meio de mecanismos jurídicos que não são essencialmente inéditos no ordenamento pátrio nem basicamente inadequados, se interpretados sistematicamente, em sua incidência concreta. Implementa, nesse sentido, a responsabilização objetiva de pessoa jurídica em matéria civil e administrativa — tributária da responsabilidade social da empresa. Prevê sanções variadas, como multas, restrições fiscais e creditícias, impedimento de participação em licitações e, em casos extremos e excepcionais, a dissolução da empresa. As restrições e impedimentos têm prazo certo, a ser definido conforme as circunstâncias de cada caso concreto, a razoabilidade e a finalidade da pena, devendo servir, em abstrato, como desestímulo a que as empresas sejam usadas como escudo para obtenção de lucros ilícitos à custa da dilapidação do patrimônio coletivo e de abusos que minam a concorrência e o próprio conceito de livre mercado. Pode-se até pensar em alternativas como a transferência compulsória do controle acionário (para que se mantenha ativa a empresa, enquanto se afastam dirigentes ou sócios faltosos) ou a cobrança parcelada de multas ou da restituição ao erário (com a retenção de parte do faturamento futuro, por exemplo). Porém, no marco constitucional vigente, à luz do princípio da proporcionalidade e com as gradações que a própria LAC dispõe para sua aplicação, afigura-se juridicamente apropriado manter a punição para as empresas, restringindo-lhes direitos e atividades.
Seria ilegítimo, ademais, para preservar empregos e obras públicas, como parece vir sendo aventado, liberar amplamente de certas restrições punitivas a pessoa jurídica infratora, conferindo-lhe tratamento privilegiado em relação ao reservado ao cidadão comum que comete ilícitos análogos. É que os valores e deveres que subjazem aos princípios regentes da atividade econômica, que englobam a função social da propriedade — da qual emerge a função social da empresa —, o direito à autodeterminação, à livre iniciativa e à livre concorrência, o valor social do trabalho e o da preservação dos empregos, tocam pessoas físicas e jurídicas, devendo, igualitariamente, pautar a dinâmica das relações públicas e privadas no país, em harmonia com a busca da justiça social, da existência humana digna e do desenvolvimento nacional harmônico e equilibrado. Deles deriva a responsabilidade que cada empresa tem perante a sociedade em que se instala, pois, ao operar, produz renda e trabalho, mas também aufere lucros, eventualmente polui e até destrói. Por isso, deve reparar os danos que causar e agir de modo ético e juridicamente correto, não lhe sendo autorizado corromper para funcionar, concorrer ou contratar com o poder público. A invocada inexigibilidade de conduta diversa, em função da difusão de práticas corruptas que possam eventualmente grassar no setor estatal, não pode servir de escusa reiterada para condutas ilícitas. E mesmo quando irregularidades e abusos ocorram em setores estratégicos fomentados pelo Estado, cumpre ao particular, cidadão ou empresa, buscar resistir, acionando a atualmente ampla, profissional e institucionalizada rede de órgãos de controle, para denunciar imposturas e exigir correção, sem se valer de praxes irregulares para “sobreviver”.
Finalmente, convém lembrar que a própria Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) considera inadmissível que se deixe de punir as empresas para preservar economia, empregos e negócios. Até porque, para haver desenvolvimento social e econômico, com os parâmetros da concorrência adequada e justa, do livre mercado e do exercício da livre iniciativa, é cada vez mais necessário e desejável um ambiente negocial sadio, isento, menos corrupto e mais sujeito a punições em caso de desvios, sempre observados devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
Samantha Chantal Dobrowolski é procuradora regional da República na 3ª Região (SP e MS), mestre e doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e diretora de Assuntos Jurídicos da Associação Nacional dos Procuradores da República. Membro do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD)
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