Meteorologia impossível – Há gente sincera acreditando que entramos numa era de limpeza política

17/05/2016

Por Plínio Antonio Britto Gentil
O céu está tão nublado… há tempos que não fica assim… Infelizmente não são apenas “Águas Passadas”, a bela canção de Guilherme Arantes. O céu brasileiro turvou-se há tempos, tamanha é a riqueza da mãe pátria e tão grandes são os olhos de quem a quer explorar predatoriamente. Assim fizeram nossos colonizadores, desde 1.500, como fazem os atuais, que de colonizadores nunca tiveram nada.
O lance mais recente neste céu cinzento – se nenhum cometa passar até a publicação deste texto – terá sido o afastamento – na prática, a deposição – da presidente da república pelo Senado no procedimento de impeachment. O que tem isso a ver com predação? Para os teóricos da conspiração, trata-se de uma nova modalidade de intervenção nos destinos do Brasil, dirigida pelo capital internacional em conluio com uma burguesia doméstica atrasada e pedante, ilhada no Sudeste, temperada por uma santa aliança com os três poderes e algumas instituições nacionais, visando dar um verniz jurídico ao que é, na verdade, um golpe. Não de tanques, mas de canetas. Na mira estaria a exploração do que resta de público, a começar de bancos, universidades e previdência (piedade, Senhor, o Ministério da Previdência foi anexado ao da Fazenda), culminando com o petróleo do pré-sal, terceira reserva mundial do óleo, capaz de nos tirar da miséria, para cuja exploração a Petrobrás tem recursos – ah, tem, sim – e tecnologia.
A ser assim, onde estariam nossos juristas? Ora, se a lei não está sendo cumprida e o impeachment é uma farsa, a eles cabe denunciar a malandragem aparentemente legal. Onde os herdeiros morais de Sobral Pinto, que, com seus noventa e tantos anos, recitava, no comício das Diretas, aquele artigo da Constituição dizendo que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”? Ah, os juristas… O direito – falou-se num congresso de mestres – não é uma ciência, porque não procura explicar o mundo, mas uma técnica, porque apenas quer intervir nele.
Então está entendido. Não cabe a eles compreender o mundo em volta, mas interpretar a lei. Se ela atribui ao Senado – que não é um tribunal – analisar um crime de responsabilidade, e este diz que tal crime ocorreu, então é porque ocorreu, e não há nada para questionar. Importa lá o qual o sentido dessa linguagem cifrada, que fala em “pedaladas”, que soa como coisa diariamente praticada, sem causar espécie, por prefeitos, governadores e presidentes? Não. Importa que o único pedido de impeachment que o impoluto Eduardo Cunha fez andar tenha sido justamente o que preservava o mandato do vice-presidente, ao contrário de outros, que, por questionarem problemas da campanha eleitoral, fulminariam a chapa completa? Também não. Importa, por fim, que investigações relacionadas ao governo deposto viessem revestidas de atos mirabolantes, de ética e juridicidade duvidosas, e que sua fúria se voltasse preferencialmente a determinado lado do rol de investigados, ou que suas ações fossem frequentemente divulgadas em momentos críticos, nos quais teriam maior poder impactante? Mas é claro que não.
E tome, para inviabilizar qualquer objeção, um espírito de corpo tribal, que se apossou de parte das instituições envolvidas, cheias de juristas silentes, a pleitear censura a toda crítica, acoplado a um claro desejo de podar o que seja de manifestações públicas ou atos legítimos de contestação. Aí está, para ilustrar, a onda dos selfies com policiais, tornados ícones da moral e da ordem, no imaginário de uma população adestrada no autoritarismo mais raso.
Pois bem. Se considerar tais circunstâncias não é problema dos entendidos do direito, certamente não podem estes se negar a examinar, fria e desapaixonadamente, o texto da lei. E qual a lei do impeachment? A 1.079, do ano de 1.950. Os artigos definidores dos crimes de responsabilidade, agora em questão, falam em “guarda e legal emprego dos dinheiros públicos”. Seguem-se descrições vagas, facilmente ajustáveis a numerosas situações do cotidiano de qualquer governo que caia em desgraça com o parlamento. Aqui um aspecto a que poucos prestam atenção: a lei do impeachment foi promulgada dois meses depois de um carnaval em que o personagem mais cantado era ninguém menos que Getúlio Vargas, letra de marchinha, e seis meses antes da eleição do mesmo Getúlio para presidente da república, coisa que já era mais do que certa em abril de 1.950, data da promulgação da lei.
Não passa pela cabeça de ninguém que o texto legal tenha sido elaborado na exata medida para submeter Getúlio, o pai dos pobres? O qual, cheio de querer enquadrar o capital internacional e legalizar direitos trabalhistas, seria efetivamente alvo de um pedido de impeachment, na época mal sucedido porque o presidente ainda contava com apoio no Congresso? Ah, mas atrasar repasses a bancos públicos equivale a tomar empréstimo deles, ah, mas abrir créditos suplementares por decreto, mesmo respeitado o teto de gastos, significa “pedalar”, ah, mas a má gestão dos dinheiros públicos, vão aumentar o preço da gasolina e a crise econômica inviabilizaram o governo da Dilma, vejam a inflação e a alta do dólar – dirão. Ah, tá… mas durante o governo do general Figueiredo, lembram-se?, o último da ditadura militar, houve inflação de duzentos por cento ao ano e quem foi que teve peito de pedir o impeachment dele?
Céu nublado mesmo. Nem chuva nem sol. Há tempos não ficava assim. Coisa turva, a visão fica embaralhada. Péssimas essas teorias da conspiração, há gente sincera acreditando que entramos numa era de limpeza política e que caminhamos para relações mais transparentes entre os governos e a população. Que o governo deposto tem suas culpas não se pode duvidar. Fosse mais habilidoso, competente, ou lá o que seja, teria se livrado de parte dos problemas que o derrubaram. Tivesse admitido as responsabilidades por malfeitos de alguns aloprados, ganharia credibilidade. Lula não foi preservado lá atrás, no tempo do mensalão, quando o país crescia e os bancos ganhavam? (bom, e quando foi que não ganharam?) Seria simplificar muito atribuir tudo só ao capital predador, nacional e internacional. Errará menos quem admitir que ainda está na penumbra e então vamos conceder que a coisa tem de tudo um pouco. Nuvens, muitas e cinzentas. Quem viu o estado de direito construir-se a partir de uma reunificação nacional, que rejeitava a lei do mais forte, achava que o tempo não voltaria a ficar assim. Hora de vigiar. E refletir.
Plínio Gentil é procurador de Justiça no estado de São Paulo, doutor em Direito (PUC-SP) e em Educação (UFSCar) e professor de Direitos Humanos (PUC-SP) e Direito Penal (Unip). Integrante do Movimento do Ministério Público Democrático, é coautor do livro “Crimes Contra a Dignidade Sexual”.
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Foto: Pedro França/Agência Senado