Por Vinicius Rodrigues França

Não há primado maior no Direito do que a imparcialidade dos juízes. Afinal, são eles os responsáveis pela aplicação das leis e pelo sagrado exercício da jurisdição. É o juiz quem dirá, por exemplo, com quem devem ficar os filhos do casal que disputa o direito de guarda, quem deve ser preso pela prática de um crime ou quem deve indenizar aquele que sofre um dano decorrente de um serviço mal prestado, seja ele público ou privado.

Mais do que um pressuposto de validade processual, a imparcialidade dos juízes representa verdadeira garantia fundamental do cidadão, que tem o sagrado, inegociável, imaculado direito de ser julgado por um magistrado imparcial, não afeto a questões objetivas ou subjetivas que possam, de algum modo, influenciá-lo, indevidamente, a beneficiar uns em detrimento de outros.

Impossível imaginar um país verdadeiramente democrático sem a efetiva proteção dos direitos e garantias fundamentais dos seres humanos. Tanto é assim que, ao tratar das referidas garantias, a Constituição Federal de 1988 adotou sistema materialmente aberto, ao dispor, em seu artigo 5º, parágrafo 2º, que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

No referido dispositivo, insere-se a garantia da imparcialidade dos juízes, presente também em importantes tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a exemplo da Declaração Universal de Direitos dos Homens, que, em seu artigo 10º, dispõe que “toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ela”, e do Pacto de San José da Costa Rica, que, em seu artigo 8º, estabelece que “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.

A imparcialidade da jurisdição está intimamente relacionada com o princípio do juiz natural. Daí porque a legislação processual estabelece regras claras e objetivas de competência, impedindo que as partes escolham um determinado órgão jurisdicional para apreciar suas pretensões. Veda-se, pois, o juiz ou tribunal de exceção (CF, artigo 5º, XXXVII), isto é, o juiz escolhido para o julgamento casuístico de determinado caso, figura completamente estranha ao Estado Democrático de Direito.

No campo infraconstitucional, preocupou-se o legislador brasileiro em assegurar a imparcialidade dos juízes e, por conseguinte, a legitimidade de suas decisões, prevendo hipóteses em que os magistrados estão impedidos ou suspeitos de julgar ou que, por algum motivo, observa-se verdadeira incompatibilidade entre determinado julgador e as partes ou o objeto da causa que lhe é submetida à apreciação.

As causas de impedimento estão previstas nos artigos 252, do Código de Processo Penal, e 144, do Código de Processo Civil. Conforme leciona Eugênio Pacelli de Oliveira, as hipóteses de impedimento “estão relacionadas com fatos e circunstâncias, objetivas e subjetivas, encontradas, em regra, dentro do processo no qual o juiz estará impedido de exercer jurisdição”[1].

Os impedimentos indicam a impossibilidade de atuação do juiz em determinado processo, em decorrência de sua imparcialidade, presumida nas hipóteses previstas taxativamente na lei. É o que se verifica, por exemplo, quando o cônjuge ou parente do juiz atuar ou tiver atuado no feito como advogado ou quando for parte diretamente interessada na causa.

Já as causas de suspeição são tratadas nos artigos 254, do CPP, e 145, do CPC. Nesses casos, os fatos e circunstâncias que podem interferir no ânimo do magistrado, tornando-o não isento, são externos ao processo e podem se relacionar ao objeto posto em discussão ou aos sujeitos envolvidos na demanda. Citem-se, exemplificativamente, a amizade íntima ou inimizade capital do juiz com uma das partes, a existência de crédito ou débito entre o julgador e uma das partes, entre outros.

Enquanto as hipóteses de impedimento são taxativas e, portanto, devem estar expressamente previstas em lei, as de suspeição integram rol exemplificativo. Afinal, como bem leciona Guilherme de Souza Nucci, “este rol não cuida dos motivos de impedimento, que vedam o exercício jurisdicional, como ocorre com o disposto no art. 252, mas, sim, da enumeração de hipóteses que tornam o juiz não isento”[2].

Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 146.796 SP, cuja ementa destaca-se abaixo:

“PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO. ALEGAÇÃO DE PARCIALIDADE DE MAGISTRADO FEDERAL. HIPÓTESES DO ART. 254 DO CPP. NÃO TAXATIVIDADE. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA POR AUSÊNCIA DA FASE DE INSTRUÇÃO. NECESSIDADE DO CONTRADITÓRIO. IMPARCIALIDADE DO JULGADOR. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESSA EXTENSÃO, DENEGADA. 1. Se é certo que o impedimento diz da relação entre o julgador e o objeto da lide (causa objetiva), não menos correto é afirmar que a suspeição o vincula a uma das partes (causa subjetiva). 2. Tanto o impedimento quanto a suspeição buscam garantir a imparcialidade do Magistrado, condição sine qua non do devido processo legal, porém, diferentemente do primeiro, cujas hipóteses podem ser facilmente pré-definidas, seria difícil, quiçá impossível, ao legislador ordinário prever todas as possibilidades de vínculos subjetivos (juiz e partes) susceptíveis de comprometer a sua imparcialidade. 3. Para atender ao real objetivo do instituto da suspeição, o rol de hipóteses do art. 254 do CPP não deve, absolutamente, ser havido como exaustivo. É necessária certa e razoável mitigação, passível de aplicação, também e em princípio, da cláusula aberta de suspeição inscrita no art. 135 , V , do CPC c/c 3º do CPP”.

No mesmo sentido, decisão proferida pelo TRF-3, nos autos da Exceção de Suspeição 993-2009.61.81.006145-8-SP, 2ª Turma, rel. Cecília Mello.

Como bem destacado pelo STJ, impossível à lei prever, taxativamente, todas as situações fáticas capazes de interferir no ânimo do magistrado, retirando-lhe a isenção. Daí a necessidade de se dar elasticidade aos casos de suspeição, sob pena de se ferir de morte a garantia da imparcialidade.

Soma-se aos casos de impedimento e suspeição a previsão do artigo 112, do CPP, segundo o qual “o juiz, o órgão do Ministério Público, os serventuários ou funcionários de justiça e os peritos ou intérpretes abster-se-ão de servir no processo, quando houver incompatibilidade ou impedimento legal, que declararão nos autos. Se não se der a abstenção, a incompatibilidade ou impedimento poderá ser arguido pelas partes, seguindo-se o processo estabelecido para a exceção ou suspeição”.

Para as incompatibilidades, não se observa a existência de relação casuística na lei. Aqui estão abrangidas todas as situações em que, por algum motivo, a imparcialidade do magistrado revele-se duvidosa.

A abrangência das incompatibilidades é tamanha que o magistrado pode se afastar da causa de ofício e por motivo de foro íntimo, sem sequer esclarecer o fato que, segundo ele, interfere em seu convencimento.

Eugênio Pacelli traz o exemplo em que o cônjuge do juiz tenha servido no processo como testemunha. O Código de Processo Penal não prevê tal hipótese no rol dos impedimentos e suspeições. Todavia, parece clara a existência de efetiva incompatibilidade na atuação do magistrado nesse feito.

Recentemente, a imprensa nacional divulgou que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu Habeas Corpus ao empresário Jacob Barata Filho, preso em um dos desdobramentos da operação “lava jato”, apesar de ter sido padrinho de casamento da filha do investigado. Mais recentemente, foi noticiado que o Instituto Brasiliense de Direito Público, que tem como sócio o ministro do STF, recebeu patrocínios milionários do Grupo J&F.

Mesmo não sendo abrangidas no rol taxativo das situações que geram impedimento do magistrado, parece claro que os fatos trazidos ao conhecimento público pela imprensa revelam o potencial, ainda que abstratamente considerado, de influenciar no ânimo do julgador, enquadrando-se, pois, no conceito aberto da suspeição ou no instituto subsidiário da incompatibilidade.

A simples possibilidade de vínculo de intimidade e/ou amizade — na hipótese do apadrinhamento — e a vinculação jurídica existente entre o instituto do ministro e o Grupo J&F já se mostram, salvo melhor juízo, capazes de contaminar a imparcialidade do magistrado e, por conseguinte, a credibilidade de seus pronunciamentos judiciais, ainda que, sob a ótica do julgador, ele se sinta perfeitamente apto a decidir.

A análise objetiva dos fatos anteriormente retratados enseja a necessidade de reconhecimento da suspeição do ministro ou da incompatibilidade de sua atuação nos casos relativos ao empresário Jacob Barata Filho ou ao Grupo J&F. Afinal, sobre tema tão caro, não se pode admitir dúvida de qualquer natureza, por mais elevados que sejam os atores do debate — no caso, um ministro da mais alta corte judiciária do país.

À sua época, já clamava Ruy Barbosa por uma Justiça imparcial: “Saudade da justiça imparcial, exata, precisa. Que estava ao lado da direita, da esquerda, centro ou fundos. Porque o que faz a justiça é o ‘ser justo’. Tão simples e tão banal. Tão puro. Saudade da justiça pura, imaculada. Aquela que não olha a quem nem o rabo de ninguém. A que não olha o bolso também. Que tanto faz quem dá mais, pode mais, fala mais. Saudade da justiça capaz…”[3].

Vivo estivesse, certamente o eterno jurista baiano ainda estaria clamando por seu ideal de justiça.

[1] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Lumen Juris. 11ª Edição. Rio de Janeiro. 2009. p. 391.
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Processo Penal Comentado. Revista dos Tribunais. 11ª Edição. São Paulo. 2012. p. 577.
[3] Obras Completas de Rui Barbosa. Tomo IV – Página 60.

Vinicius Rodrigues França é promotor de Justiça de São Paulo e membro do MP Democrático.

Veja aqui o texto original publicado no Conjur.