Por Roberto Livianu, Charles Hamilton Santos Lima e Laila Shukair

O país vive atônito processo de grave crise política, em meio a histórica investigação de corrupção que tem levado à prisão pessoas detentoras de expressivas parcelas de poder político e econômico, que sempre se acharam intocáveis.

Noticia-se que alguns parlamentares começaram a se movimentar para viabilizar PEC de extensão do foro privilegiado (que por si é um anacronismo antidemocrático e atentatório à isonomia) a ex-presidentes. E não é só isso. São diversas as inciativas legislativas que visam enfraquecer a atuação do MP e do Judiciário.
Em 2015, por exemplo, foi apresentada a PEC 89, que propõe a criação de juizados de Instrução Criminal no Brasil. Sob a presidência de delegados de polícia. Isso mesmo: delegados de polícia, que são subordinados ao Executivo, transformando-se em magistrados num toque de mágica, sem concurso público. Ataque mortal ao princípio da separação de poderes.

A MP 703, por outro lado, foi editada abortando o debate legislativo do PL 3636. A partir dela, a sacramentação do acordo de leniência sem fiscalização do MP, o enfraquecimento do TCU e da Lei de Improbidade.
Agora, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado acaba de aprovar, na última quarta-feira (30/3), o Projeto de Lei do Senado (PLS) 233/2015-Complementar, de autoria do senador Blairo Maggi (PR-MT), que, a pretexto de regulamentar o inquérito civil, desfigura-o, amputa-o, além de reduzir sensivelmente a serventia desse instrumento que é usado pelo Ministério Público para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Dentre as inovações aprovadas por aquele órgão fracionário estão: a) a responsabilização pessoal do membro do Ministério Público nas hipóteses de instauração de inquérito civil em decorrência de representação anônima — artigo 4º, parágrafo 5º; b) arquivamento tácito — artigo 5º, parágrafo 1º; c) a determinação ao membro do Ministério Público que, ao instaurar o inquérito civil, notifique o investigado para que apresente esclarecimentos, por escrito, no prazo de dez dias — artigo 14; d) a obrigatoriedade de se intimar o investigado da prova e diligência ordenada, com antecedência mínima de três dias úteis — artigo 16, parágrafo 12; e) a necessidade de intimação da parte investigada para acompanhar as declarações e depoimentos — artigo 16, parágrafo 15; f) a previsão de que o membro do Ministério Público seja civil e criminalmente responsável pelo uso indevido de informações e documentos que requisitar, sendo que, no caso de ação penal, ela poderá ser proposta subsidiariamente também pelo ofendido — artigo 16, parágrafo 18; g) a vedação à prestação de informações sobre o inquérito civil — artigo 23; h) a conclusão em 12 meses, prorrogável uma única vez pelo mesmo prazo, mediante autorização judicial — artigo 34; i) o prazo preclusivo de 12 meses para o seu desarquivamento em face de novas provas — artigo 37.

Tais “inovações” corrompem inteiramente o instituto do inquérito civil, que, por definição, a exemplo do policial, é inquisitorial, e não contraditório.
O inquérito civil foi criado por intermédio da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública); sendo, por previsão constitucional — artigo 129, III, da Constituição da República —, função institucional do Ministério Público a sua instauração para fins de coleta de prova para a propositura de ação civil pública.
Passados mais de 30 anos de sua criação, o inquérito civil foi e é um instrumento de importância inestimável para a correta, equilibrada e célere atuação do Ministério Público na defesa a) do meio ambiente, b) do consumidor, c) dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, d) de qualquer outro interesse difuso ou coletivo, e) da ordem econômica, f) da ordem urbanística, g) da honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos e h) do patrimônio público e social.

Atualmente, a par dos regulamentos estabelecidos no âmbito de cada Ministério Público, o inquérito civil já se encontra disciplinado pela Resolução 23 do CNMP, de 17 de setembro de 2007.
Nela constam os requisitos para sua instauração, as hipóteses de indeferimento, as aspectos relativos a sua instrução, instruções para o seu arquivamento, disciplinamento do Compromisso de Ajustamento de Conduta e das Recomendações.

Esse disciplinamento, embora infralegal, tem sido eficaz de modo a coibir eventuais e raros abusos e excessos em seu manejo pelos membros do Ministério Público.

De acordo com dados divulgados pelo Conselho Nacional do Ministério Público no relatório Ministério Público – um retrato – ano 2015, foram instaurados, no ano de 2014, 256.243 inquéritos civis, e finalizados no mesmo período o montante de 281.165.

Praticamente toda a atuação ministerial em defesa dos direitos e interesses acima referidos foi em decorrência das informações e dados coletados por meio dos inquéritos civis instaurados pela instituição. Elementos essenciais à propositura eficaz e responsável de ações civis públicas.
Entretanto, se aprovado o PLS 233/2015, nos moldes elaborados pela CCJ do Senado, essa ferramenta tende a se deteriorar e se tornar imprestável a sua finalidade. Com ela prostrada, a atuação ministerial sofrerá sensível redução em franco e direto prejuízo dos interesses sociais e direitos indisponíveis tutelados pela atuação do parquet.

Roberto Livianu é promotor de Justiça em São Paulo e doutor em Direito pela USP. Atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos, é membro do MPD e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.

Charles Hamilton Santos Lima é promotor de Justiça no MP-PE e diretor do Movimento do Ministério Público Democrático.

Laila Shukair é promotora de Justiça do MP-SP e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.