Por Salomão Ismail Filho

O termo interesse público é uma expressão bastante genérica e abstrata. Frequentemente, inúmeras ações do Estado-governo ou Estado-administração são praticadas sob o pálio do chamado “interesse público”.

Todavia, o alto grau de abstração do termo interesse público termina por dificultar a verificação, na prática, de determinas ações ou escolhas administrativas, ou seja, se elas foram ou não praticadas em benefício da coletividade.

Afinal, certas opções administrativas podem, sob o argumento inicial de concretização dos direitos fundamentais, em verdade, ocultar meras pretensões eleitorais do governante ou mesmo o intuito de beneficiar ou prejudicar determinadas pessoas, a bem de determinados interesses particulares, estranhos à administração.

Eis a importância de uma conceituação, ainda que preliminar, daquilo que seja interesse público. Porém, seria isso viável? Ou seja, haveria a possibilidade de dar a tal expressão algum conteúdo que autorizasse ao intérprete visualizar, na prática, o que verdadeiramente seja interesse público?

A Constituição do Brasil de 1988 não estabelece um conceito a respeito, preferindo apenas mencionar, genericamente, o multicitado interesse público. Por exemplo, em seu artigo 37, IX, informa que “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”. Informa também a Carta Cidadã, ainda a título de exemplo, que o Congresso Nacional poderá ser convocado, em caso de urgência ou interesse público relevante (artigo 57, parágrafo 6º, II).

O interesse público, nos Estados Democráticos de Direito, há de se revelar por meio da observância, pelos poderes públicos, dos direitos e princípios consagrados na Constituição e nas leis do sistema jurídico, normas jurídicas emanadas do parlamento, órgão de representação do povo, titular do poder político ou soberano, como ensina Charles de Secondat, o Barão de Montequieu (2005, p. 19).

Por conseguinte, de interesse público serão todas as ações administrativas direcionadas a dar concretude aos direitos fundamentais; aos princípios consagrados na Constituição e as metas/tarefas primordiais do Estado, a partir do pressuposto inicial de respeito pela dignidade humana.

Por conseguinte, não podemos olvidar dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades regionais e sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º).

Nesse passo, de maneira singela, poderíamos dizer que, de interesse público, serão as ações administrativas voltadas para os objetivos fundamentais do Estado, os quais se revelam por meio da concretização dos direitos fundamentais e da observância dos princípios constitucionais.

Mesmo assim, haverá sempre algum grau de abstração, deixando margem para uma apreciação, no caso concreto, das justificativas apresentadas pelo aplicador da norma ou decisor político, pois os próprios direitos fundamentais e os princípios constitucionais também são conceitos abertos, permitindo interpretações que poderão variar conforme o entendimento adotado numa situação específica.

Por exemplo, a Constituição brasileira assegura prioridade absoluta para a criança, para o adolescente e para o jovem, sendo dever da família, da sociedade e do Estado assegurar-lhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (artigo 227, caput, com a redação da Emenda Constitucional 65, de 13/7/2010).

Qual o limite dessa absoluta prioridade? A construção de escolas ou de creches terá preferência com relação à pavimentação de ruas ou à construção de sedes administrativas do governo local? Como o poder público atuará, na prática, no que tange à prioridade em favor da criança, do adolescente e do jovem?

É lógico, o legislador ordinário poderá colaborar, determinando caminhos para a persecução do interesse público pelo gestor, complementando o conteúdo da norma constitucional.

Porém, em regra, haverá sempre um grau de subjetivismo, uma liberdade para que o administrador decida, no caso concreto, qual a escolha administrativa para a satisfação do interesse público.

Talvez por isso, Diogo Freitas do Amaral, após identificar o interesse público com a satisfação das necessidades coletivas, defenda que o interesse público é fluido, ou seja, variável conforme o tempo e lugar, sendo que uma matéria atualmente de interesse público poderá não ser mais doravante e vice-versa (AMARAL, 2001, p. 35-38).

Em parte, concordamos com tal conclusão, porque há valores constitucionais invariáveis, imutáveis, como o direito à vida; o direito à alimentação; o direito à moradia; o direito ao saneamento básico; o direito ao meio ambiente não degradado etc. Quanto a tais valores (ou direitos fundamentais da pessoa humana), sempre estará presente a ideia de interesse público, não obstante o decurso do tempo. Evidentemente, o gestor público poderá, se houver razões de fato e de direito, priorizar este ou aquele direito fundamental, em nome do interesse público.

Todavia, isso não significa dizer que o direito fundamental não priorizado, naquele momento, deixou de fazer parte da noção de interesse público.

É importante destacar, outrossim, que a noção de interesse público está relacionada com a satisfação de necessidades pelos destinatários do referido interesse (população). Dentro de tal contexto, Jean Rivero apresenta o interesse público como um interesse geral, destinado a satisfazer as necessidades da comunidade e dos indivíduos individualmente considerados (RIVERO, 1981, p. 14-15).

Acrescentaríamos que a satisfação dos interesses individuais somente integrará o conceito de interesse público se estiver relacionada com a perspectiva individual de algum direito fundamental (intimidade, inviolabilidade do lar, liberdade de expressão etc.) ou possua, potencialmente, a capacidade de se projetar ou expandir para uma perspectiva social, também atendendo a outros indivíduos, os quais, no futuro, também se beneficiarão da prestação estatal.

Por isso, aqui tratamos de um interesse público que encontra fundamento em uma ética de atuação governamental extraída a partir da observância de princípios previstos na Magna Carta e de uma permanente busca de concretizar a ideia de dignidade humana, a partir dos direitos fundamentais, estando vinculados a isso tanto a atividade administrativa (de caráter ordinário, gestão do aparato governamental), como a atividade de governo (atividade decisória e politicamente responsável).

Referências

AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 10ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 2001.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de. O espírito das leis, 3ª ed. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

RIVERO, Jean. Direito Administrativo. Tradução de Rogério Ehrhart Soares. Coimbra: Almedina, 1981

Salomão Ismail Filho é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. MBA em Gestão do Ministério Público pela UPE. Especialista e mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa e membro do Movimento Ministério Público Democrático.