Em razão de não enfrentar as mazelas do sistema, assim entendido o conjunto social das maiores forças políticas e econômicas, não é de hoje que o Judiciário tem sido objeto de severas críticas, em sua maioria, procedentes.

É de Solon (séc. 6 a.C), por exemplo, a afirmação: “As leis e a Justiça não diferem em nada das teias de aranha. Prendem os fracos e oprimidos, mas são destroçadas pelos fortes e poderosos”.

Outra crítica é a de Dante (séc. 14 d. C), que defendia a monarquia, entre outros motivos, por pensar que só o rei poderia ser a última instância do Judiciário, por ser um “juiz sem apetites”, pois, ao contrário da maioria dos juízes, de nada e de ninguém dependia e, assim, nenhum vínculo ou conflito de interesse o impediria de ser isento.

Todavia, entre os críticos do Judiciário não estão apenas os antigos.

O jovem professor de Filosofia e Filosofia do Direito da USP Alysson Mascaro, com toda coragem e dura fraqueza, afirmou recentemente, sem se esconder, diante de dezenas juízes, na Escola Paulista da Magistratura, em mais de uma palestra, que “o Judiciário é um estamento instituído e estruturado com a finalidade de manter o status quo”.

Antes de mais nada, necessário considerar que, mesmo sem ser alguém dotado subjetivamente de bom senso, pode o juiz decidir com o bom senso objetivo, observando com rigor o norte que lhe é dado pelo texto da Constituição e da lei. E até na hipótese de não encontrar solução de determinado conflito no conjunto normativo estabelecido, ainda terá o juiz, como instrumento para esse fim, a observância da máxima por meio da qual o romano Ulpiano (séc. 2 d.C) bem definiu os princípios gerais do direito: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere, indicando que bem julgará qualquer demanda o juiz que “viver honestamente, não prejudicar ninguém e atribuir a cada um o que é seu”.

Note-se que “viver honestamente” não é simplesmente ser teoricamente honesto, mas ser honesto na prática, ou seja, ter comportamento compatível com a dignidade, fazendo com que seus atos nunca se tornem incoerentes com a vida honrada, como, por exemplo, dar a alguém menos ou mais do que lhe é de direito ou julgar de modo a prejudicar alguém para dar vantagem indevida a outrem.

Assim, o juiz prejudicar, com suas decisões, por exemplo, o pobre consumidor para beneficiar grandes bancos e operadoras de planos de saúde, seria inadmissível por não mostrar conduta simétrica ao provérbio latino.

Há infelizmente incontáveis exemplos de atos concretos do Judiciário, públicos e notórios porque noticiados pela grande mídia, a abonarem a teoria de Solon e Mascaro, podendo alguns ser apontados.

Se o Judiciário não é refém do sistema que mantém as coisas como sempre estiveram, o que explicaria, por exemplo, o STF, mesmo sob a vigência da redação original do artigo 192, da CF, que previa o máximo de 12% ao ano para a taxa bancária de juros, negar vigência a esse dispositivo sob a alegação de ser extremamente complexo entender a dinâmica dos juros no mercado financeiro?

Ocorre que isso não é trivial. Projetam-se no tempo e no espaço os danos decorrentes dessa deliberação judicial, que acabou por instituir duas moedas no país: uma para enriquecer banqueiros (com taxa unilateral de juros que, além de cobrir a inflação, ainda produz lucros exorbitantes) e a outra, que, até por conta disso, se desvaloriza cada vez mais, empurrando a população ao declínio inevitável do empobrecimento.

E dizer que não havia possibilidade de limitar a festa dos banqueiros e grandes investidores do mercado financeiro, que só agrava a concentração de riqueza e a injustiça social, é falácia. Há um exemplo para demonstrar o contrário. O banco espanhol que, na suspeita bacia das almas da privatização, “comprou” o Banespa, grandioso e histórico patrimônio público nacional, pelo valor simbólico de R$1,00, cobra no Brasil a taxa de juros de 13% ou 14% ao mês e 300% ao ano sobre dívidas de cartão de crédito e cheque especial. Já no país de sua sede, por lei, não pode cobrar a taxa de juros além de 7%, não ao mês, mas ao ano, sobre as mesmas operações.

Note-se que a Lei de Responsabilidade Fiscal, apesar de ter sido por diversas vezes questionada sob o aspecto da constitucionalidade, restou intacta, inclusive e especialmente na parte em que, sem observar os princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e eficiência, exclui do controle de gastos orçamentários da União as despesas destinadas ao serviço da dívida, ou seja, devem ser reduzidas todas as despesas públicas que excedam o teto de gastos (na saúde, educação, habitação, assistência social), mas os grandes bancos e investidores continuam recebendo anualmente quase a metade do orçamento público, a título de juros da dívida pública.

O que dizer do juiz “coordenador” da Lava Jato? Colhia a rodo delações premiadas de suspeitos para a perseguição de determinados agentes públicos e privados. Se os encarregados da investigação sob seu controle não conseguissem a esperada delação sobre fatos que lhe interessavam, decretava a prisão do suspeito e o colocava em cela vizinha dos matadores, em presídio federal de “segurança máxima”, de modo a não lhe deixar alternativa senão falar tudo. Não tudo o que sabia, mas tudo o que os investigadores pretendiam que dissesse. Com essa fraude, abalou a higidez da estatal e levou diversas grandes construtoras nacionais à quebra, com efeito cascata, de modo a mandar para a fila do desemprego mais de 5 milhões de trabalhadores.

Uma verdadeira tragédia. Mas o ponto que mais interessa aqui foi considerado um mero detalhe que, para o tal juiz, não vinha ao caso. É que, apesar de quase todos os recursos financeiros objeto das investigações nesse caso passarem necessariamente por operações financeiras sob o controle de grandes bancos, não fez o juiz o menor esforço para chegar nem distante à conduta dos banqueiros.

Outro caso é o da ação popular proposta para anular por absoluta ilegalidade, imoralidade e lesividade ao patrimônio público e ao interesse público e social, os atos por meio dos quais o Banco Central e o Cade aprovaram indevidamente a última grande concentração econômica entre instituições financeiras (aquisição de um grande banco por outro, já cartelizado). O juiz, numa conduta estranha, indeferiu a produção de todas as provas requeridas pelo cidadão autor da demanda, para depois julgá-la improcedente por falta de provas.

De fato, não permitiu o juiz nem mesmo a requisição de cópia integral dos procedimentos por meio dos quais as referidas autarquias autorizaram dita incorporação bancária e, pasme, sob o argumento do sigilo legal. É como se dissesse: Operações que envolvem os banqueiros, nem insista, devem ficar eternamente secretas até mesmo para o Judiciário.

Não admitiu o juiz também a produção de prova pericial contábil e, difícil é acreditar, sob a alegação de que nenhum perito judicial suplantaria a excelência dos trabalhos de auditoria do Banco Central e do CADE. É como se afirmasse: Quando se trata de demanda envolvendo banqueiros, a última palavra não pode ser do Judiciário, mas do Banco Central.

Pior ainda foi o TRF negar seguimento a recurso especial interposto no mesmo processo (TRF-3 – processo 5015698-08.2019.4.03.6100), sob a absurda alegação de ofensa à Súmula 7-STJ, ou seja, em razão da inviabilidade de rediscussão de provas no referido recurso.  Mas que provas, se o juiz as indeferiu todas?

Há outros casos a citar, ainda.

Quando o titular de cartão de crédito paga parcialmente a fatura, o correto seria a instituição financeira administradora do cartão incluir na fatura subsequente o saldo devedor e os encargos correspondentes e, sendo opção do consumidor, e só nesse caso, contratar o empréstimo correspondente. A lei não admite que o banco unilateralmente lance o parcelamento do saldo em aberto sem consultar o devedor. Portanto, não é possível dar sustentação a recentes decisões judiciais reconhecendo como correta a cobrança de tais faturas, ainda mais em duplicidade, sob o argumento da legitimidade da ativação do referido parcelamento automático, nos termos da Resolução 4.549/2017 do Banco Central. Ora, não pode o Judiciário fazer prevalecer sobre o expresso texto legal, a resolução do Banco Central, que como se sabe é mero cartório homologador da vontade dos banqueiros. No caso, note-se, a própria Resolução 4.549, no preâmbulo, invoca o artigo 7º, da Lei 12.865/2013, que assegura a liberdade de escolha do consumidor e a proteção de seus interesses econômicos.

Por demais lamentável. Mas o Judiciário, com decisões como as apontadas, beneficiando indevidamente os maiores bancos em atividade no país, dá mesmo razão ao imortal Gustavo Barroso, autor do intitulado “Brasil, Colônia de Banqueiros”, editado em 1935, dispensando comentários.

Não custa registrar que não só os bancos se beneficiam de decisões judiciais equivocadas, mas outras grandes empresas que são contumazes no abuso contra o consumidor brasileiro.

As poderosíssimas concessionárias de serviços públicos essenciais, como as fornecedoras de energia elétrica, água e telefonia, por exemplo, suspendem os serviços contratados e, quando demandadas pelas vítimas, nega-lhes o juiz a reparação de danos morais, sob o argumento de terem os consumidores sofrido mero aborrecimento não indenizável.

Consumidores, chamados por empresas da construção civil em pesadas campanhas publicitárias, assinam contrato por meio do qual financiam a construção de seus próprios apartamentos, ainda na planta, de modo que os recursos financeiros ficam com as construtoras que, sem entregar no prazo as unidades prometidas, também não devolvem aos adquirentes o dinheiro, num visível enriquecimento ilícito. Quando as vítimas resolvem demandar, nega-lhes o Judiciário, na maioria das vezes, a gratuidade da justiça e, por consequência, a própria prestação jurisdicional.

Aliás, facilitar a vida do cidadão comum não parece mesmo ser incumbência do Judiciário. Mas também não precisava dificultar ainda mais o exercício de seus poucos direitos. Impossível compreender, pois, o fato de um Tribunal estadual, em plena crise econômica e social, com enorme fila de desemprego e cracolândias, encaminhar projeto de lei de aumento de custas processuais, justamente quando a instituição do processo digital reduziu considerável e incontestavelmente o custo da máquina judicial (com movimentação de processos físicos, arquivos, papel, transporte, locação de espaços, atendimento em balcão etc).

Pior ainda quando cria custas iniciais para o pedido de cumprimento de sentença, punindo ou inviabilizando o exercício do direito pela pessoa que, depois de dispendiosa, dolorosa e demorada demanda, teve o direito reconhecido pelo juiz em sentença com trânsito em julgado.

Mais uma decisão que só beneficia os poderosos, na medida em que suas vítimas raramente alcançarão recursos para contra eles promover a adequada medida judicial.

Não se pode esquecer, aliás, já é pequeno o número de reclamantes contra abusos. Tanto que para Aristóteles, em sua teoria do homem escravo, a quase totalidade da população (mais de 90) é apática. Aconteça o que acontecer, conforma-se sem qualquer reação.

Na atualidade, de acordo com estatísticas recentes, só 2% das vítimas de sérios e frequentes abusos formulam uma reclamação pela via mais fácil, a telefônica. Destes, 90% contentam-se com qualquer resposta, mesmo negativa e nenhuma outra medida adotam. Portanto, apenas 0,2% procuram o Judiciário. Metade das demandas é acolhida, é verdade, mas a indenização arbitrada, em geral, de tão irrisória, avilta ainda mais a triste condição do consumidor e, de outro lado, representa salvo-conduto para as grandes empresas continuarem abusando. É que o enriquecimento à custa do consumidor garante a distribuição bilionária de dividendos.

Resta ainda para essa ilustração a aberração do julgamento pelo plenário virtual instituído pelo STF, que dificulta patentemente o debate entre os julgadores de modo a descaracterizar a fundamental colegialidade, além afrontar a imposição constitucional de que todos os julgamentos serão sempre públicos, ou seja, com a presença das partes, seus advogados, interessados, jornalistas e quaisquer cidadãos. Medida desprovida do mais mínimo senso de dever republicano, que prejudica a todos, ou quase todos. Únicos que não podem reclamar são os poderosos e as grandes empresas, que têm acesso direto aos juízes da Suprema Corte, alguns inclusive patrocinando congressos de seu interesse dentro e fora do país.

Se o Judiciário continuar assim, abusando da sorte, nesse descalabro, como se o juiz não tivesse o dever de dar a cada um o que lhe é de direito, sem prejudicar ninguém, restará ao cidadão clamar a quem por Justiça?