Ministério Público Democrático e Airton Florentino de Barros, 23.08.2024 17:24

Em pesada propaganda na mídia, intitula-se o TSE “o tribunal da democracia”. Todavia, enquanto não exigir dos partidos políticos estatutos que assegurem democracia em sua estrutura interna de poder, ele estará longe de ser de fato o tribunal da democracia.

Embora sintética, a definição legal de partido político demonstra claramente sua natureza e função. É verdade que aos políticos profissionais não interessa a transparência, sendo então compreensível a vagueza literal da Constituição Federal ao tratar dos partidos políticos. Indica ela, de qualquer forma, as características conceituais dos partidos, ao exigir, por exemplo, para a elegibilidade do cidadão, a prévia filiação partidária (art.14, §3º, V e 77, §2º), normas estatutárias de fidelidade e disciplina partidária (art.17, §1º), além de lhes assegurar recursos públicos e acesso gratuito ao rádio e à televisão (art.17, §3º).

Para bom entendedor, definição mais do que explícita, ainda mais considerando que a lei especial dispõe que o partido político, como pessoa jurídica de direito privado, destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defesa dos direitos fundamentais definidos na CF (Lei 9.096/95, art.1º).

Isto significa que, ao votar no candidato de determinado partido, é como se o eleitor lhe estivesse outorgando poderes especiais para só agir ou votar compativelmente com a implementação das ideias de políticas públicas estatutárias que teriam ensejado a criação daquele ente partidário, objeto de prévia publicação (Lei 9.096/95, art.44, II, 45, 49). Daí a exigência de fidelidade partidária (CF, art.17, §1º; Lei 9.096/95, art.15, V, 22-A e 25), que à evidência não tem a finalidade apenas de vincular o candidato eleito ao seu partido, mas de assegurar simétrica fidelidade do partido a seus eleitores.

Diferente das sociedades de pessoas e de capital, é o partido político uma sociedade de ideias políticas, que são o núcleo de sua constituição. Aliás, até em observância do princípio da impessoalidade que norteia a administração pública (CF, art.37), não importam as pessoas que possam assumir a condição de agentes públicos, importando, sim, o seu compromisso com os termos do mandato popular, limitado justamente pelas ideias políticas fundamentais integrantes do estatuto de seu partido.

Se assim não fosse, o partido político não justificaria sua existência e nem teriam a CF e a lei ordinária exigido, para qualquer candidatura a cargos eletivos oficiais, a prévia filiação partidária (art.14, §3º, V e 77, §2º; Código Eleitoral, art.2º).

Reclama-se muito hoje da demasiada judicialização de atividades administrativas e legislativas. Não se pode evitar a via judicial, contudo, quando se pretende o que só o Judiciário pode determinar: obrigar agentes de qualquer dos Poderes a suspender o escandaloso descumprimento da lei, como tem ocorrido como muita frequência.

Não se chegará a lugar algum, de qualquer modo, se a opção for esperar dos políticos já eleitos, uma eficaz reforma eleitoral. Tanto que as chamadas Leis contra a Compra de Votos e da Ficha Limpa dependeram da imensa e dispendiosa luta da iniciativa popular.

De fato, na matéria eleitoral, não há alternativa, senão a intervenção do poder regulamentar do TSE, a exemplo do que ocorreu com os temas da redução do número de vereadores e da fidelidade partidária, inclusive com o pronunciamento definitivo do STF.

É imperioso então que, na busca de um sistema partidário mais decente, o Judiciário faça valer sua autoridade, impondo aos partidos políticos, em cumprimento à Constituição e à lei, uma estrutura estatutária asseguradora de efetiva democracia interna.

Não é possível, pois, que os partidos políticos, por serem entidades não públicas, continuem a ser tratados como propriedade privada de natureza hereditária e vitalícia, a ponto de alguns serem mais conhecidos por seus “donos” do que por seu próprio nome ou ideologia.

Deve o partido político ser uma organização popular e, assim, obrigatoriamente, um ente não governamental, justamente para não virar um “Partidão” único a serviço do ditador do momento. Todavia, tem a finalidade social de, na defesa da democracia, garantir acesso do cidadão aos cargos públicos eletivos, autenticando, por meio de normas estatutárias de fidelidade e disciplina partidária, a representação popular. Por isso mesmo é subsidiado por recursos públicos (CF, arts.14, §3º, 17, §§1º e 3º e 77, §2º).

Assim, a adoção da oligarquia no comando interno dos partidos políticos contraria gritantemente a lei, até por ser fundamento da república o pluralismo político (CF, art.1º, V), de modo que o regime estabelecido pela CF e pela lei para o processo eleitoral oficial (elegibilidade, reeleição, impedimentos, tempo de mandato) deve refletir-se sobre a estrutura e funcionamento dos partidos políticos. Do contrário, haverá dano irreparável à representação popular e consequentemente à democracia.

Exatamente por isso, tem ocorrido grande proliferação de novos partidos, com o indevido plágio de ideologia de outros já existentes. É que, diante da dificuldade de enfrentar a contenda interna, baseada em convenções apenas formais, homologadoras da preferência de seus coronéis, resta ao filiado rejeitado, preterido ou isolado criar nova agremiação política.

Ora, a lei não reconhece a ninguém o direito de constituir um partido como propriedade privada de fundadores e filiados, dos tais políticos profissionais, dirigentes vitalícios, negociantes de legenda, ação entre compadres e amigos ou, até, em certos casos, representando organizações criminosas.

Não se pode esquecer que o atual complexo sistema partidário é responsável em grande parte pela decadência moral da política nacional e corrupção generalizada, situação que pode ser revertida, contudo, pela observância mais rigorosa da lei que, concretizada, significará uma verdadeira reforma moralizadora.

Se se fizer uma peneira, por exemplo, na verificação de preenchimento dos pressupostos básicos para a constituição dos Partidos Políticos, nem haverá necessidade de instituição das tão polêmicas cláusulas de barreira.

Como órgão responsável pelo registro de partidos (Lei 9.096/95, art.7º), o TSE poderia anular o registro ou impedir a sua realização quando não atendidos os mencionados pressupostos, além de, com seu poder regulamentar (Código Eleitoral, art.23, IX), impor regramento mais rigoroso para a elaboração ou adaptação dos estatutos e programas partidários aos citados princípios garantidores do pluralismo político e democracia intrapartidária.

De sua parte, o Ministério Público, por meio da ação civil pública, poderia provocar decisões judiciais que obrigassem os Partidos Políticos a se adequarem aos princípios apontados, com a eliminação dos chamados cardeais no vitalício comando partidário, através da exigência de estrutura interna democrática a garantir o efetivo acesso aos órgãos diretivos a todos os filiados e a renovadora rotatividade de candidatos.

É muito comum, infelizmente, atribuir-se ao povo a culpa pela eleição de péssimos governantes. Todavia, por mais que os eleitores procurem informações acerca dos candidatos, buscando a melhor opção, sua escolha nunca será a ideal, visto que não lhes resta alternativa senão a de votar num dos nomes da lista partidária, contaminada pelo vergonhoso esquema de reserva de mercado para os mesmos de sempre. E, como é notório, os protagonistas dessa trapaça ou os que a ela se submete são os mais suscetíveis à corrupção.

Assim, os maiores partidos políticos, na atualidade, ao invés de autenticar a representação popular, como impõe a lei, garantem, ao contrário, a manutenção de um verdadeiro cartel de vendedores de legendas a quem der mais, partilhando o produto desse crime entre os que o integram. Natural, pois, em tais circunstâncias, que os candidatos que apresentam ao povo, a cada eleição, não se interessem pela autêntica representação popular, guardando, antes, rigorosa fidelidade ao clandestino compromisso que assumiram nos bastidores das coligações.

Certamente essa generalizada farsa na política brasileira não existiria se o TSE, com seu amplo poder regulamentar, na defesa da transparência e da democracia no processo eleitoral, impusesse dos partidos políticos a adoção de estatutos que, além de exigir bons antecedentes de seus dirigentes, limitassem seus mandatos a curtos prazos, de modo a alargar a efetiva participação e fiscalização de todo os filiados.

Ministério Público e Justiça Eleitoral não podem continuar adiando a adoção de medidas tendentes a evitar que, numa simulação de processo de autenticação da representação popular, arremedo de democracia, os eleitores continuem a ser chamados a votar não em quem, por escolha, votariam, mas em quem lhes impõem os cardeais dos Partidos, sempre entre o ruim e o pior.