A Justiça gratuita pode até ter critérios de falta de condições financeiras para se iniciar o processo judicial, mas precisa ser cobrada ao final do perdedor da demanda, o que não vem ocorrendo no Brasil, pois não se envia a certidão com as custas para o Estado cobrar

Por Andre Luis Alves de Melo, 09/08/2024 07h25

Relembrando que não tem almoço grátis, também não tem justiça grátis (gratuita). Isto é, alguém tem que pagar, e no caso, seria o povo com o pagamento de tributos e impostos.

Importante também destacar que embora jurídico, judicial e justiça não sejam necessariamente a mesma coisa, é comum que sejam tratados como semelhantes, o que será adotado por facilidade de leitura.

O custo do sistema judicial no Brasil é um dos mais caros do mundo, considerando o custo per capita, o que já era constatado no trabalho de Mestrado que propiciou a obra A República dos Bacharéis no Século XX, ed. Lumen Juris. Alegar que a justiça é um valor social e não tem preço é uma retórica encantadora, mas em tempos de internet convence a poucos e que não sejam diretamente beneficiados.

A Justiça gratuita pode até ter critérios de falta de condições financeiras para se iniciar o processo judicial, mas precisa ser cobrada ao final do perdedor da demanda, o que não vem ocorrendo no Brasil, pois não se envia a certidão com as custas para o Estado cobrar.

Ao não se cobrar as despesas do perdedor da ação ao final, acaba sempre estimulando o demandismo e onerando quem ajuíza ação e tem que adiantar as despesas, caso o Autor não tenha também o benefício da justiça gratuita.

Equivocadamente o Judiciário segue a prática de acreditar que o mesmo pode conceder justiça gratuita ao final do processo e não comunicar ao Executivo os valores da despesa. No entanto, o texto legal é expresso em afirmar que o Estado tem o prazo de cinco anos para cobrar as despesas. Porém, como o Judiciário não envia a certidão de débito ao Executivo para iniciar a cobrança, então não há como cobrar, ou seja, uma indevida omissão na arrecadação. Também não adianta o Judiciário “suspender” a cobrança dos débitos, mas deixar de enviar a certidão com os valores para o Executivo cobrar, pois este também não terá como provar que o beneficiado tem condições de pagar as despesas.

Caso o devedor não tenha renda ou bens para pagar a dívida, ocorrerá como no caso de cobrança de tributos, ou seja, prescrição. Mas, não arquivamento de dívida sem uma análise do débito e capacidade de pagamento.

Outros alegam que pela lei basta requerer a gratuidade, e o Estado é obrigado a conceder. No entanto, a Constituição Federal é cristalina ao exigir a comprovação da carência, econômica, para se obter a gratuidade de justiça.

Em regra, tentam uma retórica de diferenciar gratuidade de justiça e assistência jurídica gratuita, mas se não forem a mesma coisa, então não se tem previsão de gratuidade de justiça na Constituição. Afinal, não se pode diferenciar deontologicamente gratuidade de justiça (despesas processuais) com atuação advocatícia na assistência jurídica gratuita (também uma espécie de despesa).

Na Europa este sistema de gratuidade chama “apoio judiciário” e há mecanismos de controle, inclusive prestação de contas, sendo que o site https://e-justice.europa.eu/37129/PT/legal_aid, explica como funciona em cada país.

No Brasil, a forma caótica de concessão de justiça gratuita e sem controle efetivo, acaba beneficiando os prestadores de serviço (operadores do Direito) em vez de a população. Seria como se o Estado criasse um programa de fornecer carros gratuitos, supostamente para pobres, mas, estes não precisassem comprovar a carência, bastaria alegar. Então os beneficiados, de fato, seria quem constrói e vende os carros e não a população carente. No sistema processual é similar, uma espécie de indústria processual, e quanto mais vender processos para a população, mas recursos financeiros os operadores de Direito obterão e mais grave será se não houver controle sobre quem está sendo beneficiado com a gratuidade.

Seria o mesmo também que o Governo criasse um programa de habitação para supostamente pobres, mas qualquer um pudesse adquirir sem comprovar, bastando alegar carência, qualquer tipo de “vulnerabilidade”. Ou seja, quem seria beneficiado seriam os construtores e alguns beneficiados com critérios subjetivos e não muito claros.

Não há nem sequer um cadastro de beneficiados com justiça gratuita, usando CPF ou CNPJ. Ou seja, um suposto programa social sem critério e controle algum. Na verdade, este discurso de ajudar pobre, na prática é ajudar a si mesmo, e usar o pobre como escudo.

Como não há um critério objetivo para a concessão da justiça gratuita, então vira um favor rei em vez de um direito.

De fato, temos uma cultura de crença em Estado Grátis, mas isso implica em mais impostos, sobrecarregando a maioria do povo, e este impostos acabam beneficiando quem é ligado ao Estado, muitas vezes em detrimento de quem paga os impostos.

No caso do meio jurídico temos presídios gratuitos para criminosos, advogados gratuitos para quem comete crimes, isso tudo financiado por quem não comete crimes. Em tese, nada impede que Governo inicie cobrança dos réus de despesas que o Estado teve com advogados, ao final do processo, e presídios. Inclusive muitos países já estão cobrando pela estadia prisional, pois o crime foi uma opção do criminoso e não uma imposição social (como defendem alguns), logo se não tiver condições de pagar, o débito permanece até eventual prescrição, como qualquer dívida tributária ou similar.

Em uma audiência pública na Câmara dos Deputados há alguns anos ficou claro como 02 categorias profissionais usam os pobres para se manter, e então os pobres não podem ter autonomia para escolher, nem deixarem de ser pobres, ou seja, passam a ser tutelados e vigiados por estes aparentes bons samaritanos, mas que na prática sugam na pobreza, apesar de um discurso romântico.

Assim, deixamos de ser um Estado Democrático de Direito, e passamos a ser um Estado do Bacharel em Direito. Temos mais da metade das faculdades de Direito existentes no mundo, e não temos mais “justiça” por isso, o que demanda divórcio total entre o ensino jurídico e a necessidade do povo. Inclusive ainda continuamos estudando Direito Internacional e alegando que não há espaço na grade para se incluir Direito de Trânsito (sendo que mais de 30 mil pessoas morrem por ano em razão de acidentes de trânsito), qual seria a maior necessidade e função social?

Dentre estes paradoxos cita-se o caso de que o Estado é obrigado a manter assistência jurídica gratuita para supostos pobres, mas não há um critério transparente e objetivo para definir quem teria direito, nem mesmo a prioridade para quem, por exemplo, está inscrito no cadastro do SUAS como carente. No entanto, por ser um legado direito essencial o Estado mantém este serviço gratuito. No entanto, a classe média não pode abater as despesas com advogados no Imposto de renda, e também não pode usar os serviços estatais de assistência jurídica por não ser pobre. Logo, cria-se um limbo. Se é serviço essencial, então deveria permitir abater a despesa no Imposto de renda. E também estimular os Planos de Assistência Jurídica, pois existentes em praticamente todos os países do mundo e uma forma facilitar o acesso ao serviço jurídico e não é captação de processos, pois para caracterizar tal situação é preciso provar que a captação foi de um processo.

A priori, é fácil reduzir o custo e o acesso aos direitos com medidas mais preventivas. Por exemplo, não faz sentido, por exemplo, que um Professor em Universidade Federal no sul do país possa ter um direito aplicado de forma diferente em relação a um Professor em Universidade Federal no Nordeste, pois é a mesma Lei federal, e na prática, o mesmo patrão a União Federal, mas essa diferença acontece, pois são Tribunais Federais diferentes. Hoje com os processos eletrônicos e julgamentos por vídeo até poderia ter Câmaras espalhadas por Estados, mas seria um único Tribunal, sem as várias e pesadas estruturas administrativas palacianas, e assim haveria julgamentos nacionais uniformizando a jurisprudência administrativa, até aliviando para o STJ. Estima-se que com uns 50 enunciados haveria uma redução, em torno, de 60% dos processos na área previdenciária.

No mínimo, os 06 TRFs poderiam reunir-se através de Seminários e elaborar enunciados, como ocorre no FONAJE (Fórum dos Juizados Especiais), pois embora não seja um órgão judicante, é um Fórum que reúne em seminários anuais e aprova enunciados, os quais funcionam como orientação e são muito adotados. E nos FONAJE ainda é possível que terceiros participem e encaminhem sugestões, o que é muito democrático.

E aproveitando que se fala em Juizado Especial, este é uma boa ideia, mas que tem servido ao demandismo, pois lojistas transformaram o mesmo em uma espécie de departamento de cobrança, logo é mais um caso de que ainda que não se cobre custas para ajuizar, ao final deveria fazer os cálculos do custo, pois na prática concede-se justiça gratuita, e arquiva o processo, sem comunicar ao Executivo, nem faz o cálculo dos valores, e registra em algum documento para eventual cômputo do custo total anual, por exemplo.

No caso do Juizado Especial ainda tem a questão de que a própria lei fala em gratuidade, no art. 54 da lei 9099, ou seja, isenção de custas, taxas e despesa no ajuizamento. Contudo, o art. 55 da mesma lei fala em isenção de custas e honorários ao final do processo, portanto, não incluiu taxas e despesas na isenção nesta fase final. Mas, não há muito interesse em discutir isso, pois no país da cultura do Estado grátis, o Legislador já dispensou parte dos pagamentos, e na prática judicial amplia-se ainda mais, pois o que parece é que quanto mais se vender processos mais varas serão criadas, servidores, e outras carreiras jurídicas também, logo não há interesse, pois acredita-se que o orçamento é algo infinito.

Na verdade, não há muito interesse corporativo em reduzir número de processos, pois seria como se a indústria automobilística fazer campanha para se reduzir número de venda de veículos novos.

Falando em coletivismo, outro gargalo é a baixa produtividade agravando esta questão de justiça grátis. Embora setores significativos fiquem indignados com tal alegação e juntem dados, de fato, o que se usa é a falsa ideia do coletivismo para dados, o que esconde os gargalos. O correto seria premiar, por exemplo, o Juiz Trabalhista que mais sentenciou no ano X, e não o Tribunal Trabalhista como um todo, atualmente é assim, premiar Tribunal. E também o Juiz de Vara Previdenciária que mais sentenciou no ano X… e também estender à equipe de Vara Judicial que mais baixou feitos em determinado ano. Afinal, não basta sentenciar, se processo não é baixado (encerrado efetivamente) e continua artificialmente no acervo. Até há suspeita de que alguns não baixam, para alegar que tem muito acervo (estoque processual).

Atualmente, com esta premiação por Tribunal, implica que este coletivismo, esconde os gargalos, como dito acima. O que funciona comprovadamente, e não apenas em teoria, é a meritocracia, ou seja, premiar pelo esforço individual ou de equipes, inclusive criando rankings. Então, é possível criar várias categorias conforme a ramificação de matérias judiciais e premiar, com medidas simples como certificados, preferência para promoções, reconhecimento público, etc.

Com esta facilidade para justiça gratuita e com a cultura das faculdades de Direito no sentido de judicializar tudo, não há muito interesse em se usar os meios extrajudiciais, nem mesmo em financiar ou estruturar, pois o réu em ações cíveis geralmente perde em quase 80% dos casos, excluindo as por dano moral, logo o réu tende a procrastinar, inclusive contando que não haja ação judicial, e além disso, tendo pouco, ou nenhum, interesse em se submeter aos meios extrajudiciais, pois o custo do processo judicial será diluído com toda a população e gratuito para as partes.

Nos Estados Unidos quando fala que irá processar, a parte contrária tem muito medo, pois sabe que se perder, pagará além do valor, um alto custo de custas, e isto a estimula a fazer acordos extrajudiciais. No Brasil, a conta do processo é paga por todos, mesmo que não ajuíze ação, em razão da gratuidade judicial, logo o ilícito compensa para o devedor, em geral, o perdedor ao final.

Por fim, justiça gratuita deve ter critérios objetivos para concessão, de transparência e auditoria permanente, exigindo comprovação da necessidade, e alimentando um cadastro com CPF e CNPJ de beneficiados, além da justiça gratuita pela eficiência consistente em enunciados (mas democraticamente e com audiências públicas) e também pela premiação dos órgãos jurídicos na base da pirâmide jurídica mais produtivos, e estimulando os meios extrajudiciais e preventivos.

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica.