Por Márcio Berclaz

“A angústia é constante, no sentido de que minha escolha original é uma coisa constante. De fato, para mim a angústia é a ausência total de qualquer justificação e, ao mesmo tempo, a responsabilidade em relação a todos (…) o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas o que escolhe ser, mas é também um legislador que escolhe ao mesmo tempo o que será a humanidade inteira, não poderia furtar-se do sentimento de sua total e sua profunda responsabilidade”

Jean Paul Sartre

Quem age de modo contemplativo, aplaudindo a instituição de maneira cega, corporativa e acrítica, com mascaramentos que beiram a má-fé, ou quem, preocupado com a defesa da democracia e dos direitos humanos como obrigatórias capas constitucionais de sentido do agir institucional, olha para dentro, aponta vulnerabilidades, indica problemas e propõe alternativas e soluções?

Quem defende a cínica blindagem e o fechamento da instituição ao povo (inclusive do seu processo político) ou quem sustenta a necessidade urgente de aproximação do Ministério Público com o povo e a sociedade, não só como política permanente de comunicação, mas também, e inclusive, para que esses participem e contribuam para construir, com legitimidade, e também por respeito à coerência, os caminhos institucionais?

Quem não aceita a inconstitucionalidade do papel relegado, de modo geral, aos membros atuantes no segundo grau, meros pareceristas que, via de regra, estão dissociados de atribuições originárias de parte ou mesmo do cumprimento de relevantes encargos extrajudiciais ou quem propõe a mudança e o redirecionamento das energias para que o trabalho em segundo grau seja vivo e transformador?

Quem acha correto que o planejamento do Ministério Público seja feito por empresas privadas para reproduzir a obviedade dos textos legais, sem vinculação ao entendimento de membros, servidores e sociedade, ou quem pensa que o planejamento institucional deveria começar pelo debate interno, por adequado diagnóstico ou análise de situação e sem desperdício da experiência das universidades públicas brasileiras como espaço privilegiado de produção de conhecimento?

Quem, em nível de vulgarização e pensando fora do ideal, vê na Defensoria Pública o inimigo, ou quem busca efetivá-la como instituição de garantia de acesso à justiça que qualifica o contraditório e provoca maior atenção, diligência e cuidado na atuação do Ministério Público, inclusive concorrendo para que o fazer ministerial desonere-se de atuar como substituto processual nas questões individuais indisponíveis (por exemplo, saúde pública)?

Quem mantém ou postula prisões desnecessárias a pretexto de realizar segurança pública, agradar eventual clamor popular ou outro motivo de ordem pragmática ou puramente voluntarista ou quem busca atuar tecnicamente para zelar pela condição de parte imparcial ou parte qualificada pela compreensão de que o exercício da titularidade da ação penal deve ser conciliado com o interesse público e, portanto, está sujeito a limites e bloqueios?

Quem busca prevalência messiânica-regulatória do Ministério Público, inclusive sobre as demais instituições, para atuações paternalistas e isoladas, ou quem, respeitando a cidadania como fundamento da República, busca a emancipação dos sujeitos para que estes sejam multiplicadores de ações independentes do agir e do abrigo institucional?

Quem está preocupado em tornar o Ministério Público passagem necessária para tudo para uma supostamente positiva avaliação institucional por institutos de pesquisa, ou quem quer que a instituição cumpra com os objetivos da República com olhar além dos próprios interesses na certeza de que essa missão dignifica a sua razão de ser?

Quem pensa que o agir associativo e a representação institucional limitam-se a questões de remunerações ou quem, ao lado disso, preocupa-se com o estabelecimento de debate permanente com o Legislativo e com os projetos relacionados à atividade finalística da instituição?

Quem crê que a falta de bons dados é motivo para não divulgá-los como defesa institucional; quem pensa que a transparência do Ministério Público é menor do que as demais instituições por este ser fiscal; ou quem se esforça para que, cada vez mais, sejam produzidas pesquisas e saber crítico reflexivo sobre o grau de efetividade e resultados obtidos no cumprimento da missão constitucional do Ministério Público?

Quem aposta em explorar picuinhas e conflitos menores entre os diferentes Ministérios Públicos a pretexto de justificar uma política institucional antiga e ultrapassada que dificulta que as ondas de avanço exerçam influência, ou quem estimula a integração permanente entre os ramos da instituição não só como forma de construir a unidade institucional, mas como forma exercício cotidiano de aprendizado e interlocução democrática?

Quem deposita todas as suas fichas no modelo normativo representativo da democracia (que apesar de necessário, está em franca crise,ou quem exige que o defensor do regime democrático dê exemplo e contemple também a deliberação, a participação e mecanismos para gerir os conflitos derivados da abertura à radicalidade?

Quem entende que a independência funcional e o livre convencimento são absolutos e sujeitos a mais elevada discricionariedade, ou quem busca debater a crítica da razão e propõe a construção de uma teoria da decisão, tudo para que as decisões adotadas pelos agentes políticos do Ministério Público pautem-se, no maior grau possível, por postulados hermenêuticos de tradição, coerência e integridade, traduzindo uma linguagem pública institucional ao invés de um agir moral de ordem privada?

O inferno são os outros, já dizia o existencialista Sartre. Que o Ministério Público saiba, cada vez mais, exercer a autocrítica e desenvolver o seu “outro” contra-hegemônico; afinal, para além das simplificações e dos erros de interpretação derivados de uma pré-compreensão inautêntica, existem tensões e campos em disputa. Que assim seja para o bem e conformidade de uma instituição madura e com alteridade para o cumprimento do seu papel constitucional, livre da pulsão de morte ou da estagnação de toda e qualquer instituição: a entropia e o exercício do poder delegado fetichizado e autorreferencial. A existência precede a essência. É preciso ser responsável com o projeto de Ministério Público que se tem. E o Ministério Público, para ser responsável consigo, precisa ser responsável com a sociedade e, sobretudo, com a Constituição. Eu sei, nem todos agem assim. Aqui, contudo, pelo menos para alguns, não há como dar de ombros.

Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, ).