17/08/2016

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O IMPACTO DA CORRUPÇÃO NA QUALIDADE DA DEMOCRACIA

Por José Álvaro Moisés
Os escândalos do “mensalão” e denúncias de “mal feitos” no primeiro mandato de Dilma Rousseff – seguidas da demissão, neste caso, de sete ministros acusados de envolvimento – não impediram que Lula da Silva se reelegesse presidente em 2006 e, do mesmo modo, Dilma Rousseff em 2014, ambos com votação expressiva. Isso sugere algumas possibilidades: a maioria dos eleitores não estava informada dos fatos; informada ou não, a maioria não estava convencida do envolvimento de ambos e do seu partido nas denúncias; ou a maioria, em qualquer caso, não associa “o uso indevido de recursos públicos para fins privados” – como corrupção.
A questão envolve a indagação sobre a natureza do fenômeno da corrupção, da cultura política na sua persistente ocorrência no país e se isso afeta a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. A corrupção é um dos problemas mais sérios e complexos que assolam as novas e velhas democracias. O conhecimento convencional mostra que ela envolve o abuso do poder público para qualquer tipo de benefício privado, inclusive, vantagens para os partidos de governo em detrimento da oposição.
As explicações usuais de economistas e cientistas políticos para o fenômeno da corrupção apontam para o papel do desenvolvimento econômico e do desenho institucional. Os estudos mais comuns tratam das consequências sistêmicas negativas da corrupção como o clientelismo, o nepotismo e a ilegitimidade política, e das supostas implicações positivas como a estabilidade política e o chamado ‘engraxamento’ de estruturas burocráticas. Tratam também das implicações da corrupção para decisões das políticas econômicas e dos efeitos negativos para o investimento público e privado.
Desenvolvimento e modernização, com suas conhecidas implicações para a transformação das relações econômicas, sociais, culturais e políticas das sociedades, são vistos por parte da literatura como condição necessária para fazer o sistema político coibir delitos contra o interesse público. Sociedades menos desenvolvidas tenderiam a não distinguir entre pagamentos legítimos e prebendas ilegais nas relações entre agentes públicos e privados, e estimulariam a tolerância social diante de comportamentos antirrepublicanos.
Diferente do cenário de países modernizados pelo impacto de transformações econômicas e sociais – em que o enforcement of the law e a punição dos crimes seriam mais institucionalizados e efetivos -, as nações com baixos níveis de desenvolvimento enfrentariam dificuldades para estabelecer e institucionalizar a distinção entre as esferas pública e privada, legitimando muitas vezes a apropriação privada de recursos públicos. Nesse caso, essas práticas se chocariam com as regras legais e os ethos burocráticos vigentes, tornando praticamente inefetivo o princípio do primado da lei. As chances de comportamento corrupto seriam, portanto, muito maiores em países de níveis baixos ou médios de desenvolvimento econômico e social, a exemplo da África, Oriente Médio, Leste Europeu e América Latina.
Mas, nas últimas décadas, uma sucessão de escândalos mostram que a questão também envolve as instituições que, em tese, podem assegurar ou não maior controle sobre as decisões que mobilizam grandes somas de recursos públicos. Os sistemas democráticos baseados em efetiva competição política propiciariam maior escrutínio público da ação de governos e colocariam o comportamento de burocratas e políticos sob a vigilância dos eleitores (accountability horizontal).
A associação entre indicadores de liberdades civis e políticas e a percepção pública sobre a corrupção, baseada em índices internacionais agregados, varia dependendo dos níveis de mensuração do fenômeno, mas a longevidade da democracia e a liberdade de imprensa são fatores claramente identificados nas pesquisas por sua capacidade de assegurar a responsabilização de políticos e de burocratas corruptos. Quando ambas existem e são vigorosas, se não impedem completamente a existência da corrupção, oferecem claras alternativas para que a sociedade a controle e puna os seus responsáveis.
Sistemas políticos em que os chefes de governo são eleitos diretamente aparecem em pesquisas como os mais associados com níveis agregados de percepção da corrupção. Diferentes estudos mostraram também que a influência do presidencialismo para a ocorrência da corrupção é mais forte quando combinado com o sistema de representação proporcional baseado em listas fechadas de candidatos. A questão tem evidentes implicações para a América Latina, cuja tradição política envolve, quase que majoritariamente, sistemas políticos em que os presidentes são eleitos diretamente. A literatura especializada mostrou que, historicamente, os diferentes populismos que existiram no continente estiveram muitas vezes associados com a corrupção. O conjunto de evidências sugere, portanto, que o desenvolvimento institucional é um bom preditor de situações de menor incidência da corrupção.
A própria presença de lideranças personalistas e carismáticas na América Latina, como parte da tradição de governos populistas envolvendo a relação direta entre líderes e eleitores e a desvalorização de instituições como partidos e parlamentos, aponta para isso. Os efeitos da aceitação da corrupção impactam a qualidade da democracia em vários sentidos: diminuem a adesão ao regime, estimulam a aceitação de escolhas autoritárias, influenciam negativamente a submissão à lei e a confiança interpessoal, e inibem tendências de participação política. Todos fatores que rebaixam as qualidades do regime democrático.
Com efeito, afetam tanto a legitimidade do Estado democrático quanto o princípio segundo o qual ninguém está acima da lei na democracia; fraudam o princípio de igualdade política inerente ao regime, pois parte de seus protagonistas pode manter o poder e usufruir de benefícios políticos desproporcionais aos que alcançariam através de modos legítimos de competir politicamente; e distorcem a dimensão republicana da democracia porque faz as políticas públicas resultarem, não da disputa aberta de projetos diferentes colocados ao debate público, mas de acordos de bastidores que favorecem interesses espúrios e de facções.
Os fatos evidenciados na Operação Lava Jato, em torno da corrupção na Petrobrás, demonstram que o fenômeno assumiu natureza sistêmica, com a formação de um cartel que agrupou altos funcionários da empresa, executivos de empreiteiras que prestavam serviços à estatal e representantes de partidos. A corrupção é um dos fatores responsáveis pelo incremento da desconfiança dos brasileiros das instituições democráticas, um aspecto cujo volume e continuidade no tempo tende a inibir e desqualificar a participação popular e, ademais, oferecer a possibilidade de formação de uma base social de apoio a alternativas autoritárias.
José Álvaro Moisés é formado em Ciência Sociais pela Universidade de São Paulo (1970), é mestre em Política e Governo pela University of Essex (1972) e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1978).
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Imagem: Arquivo/Web