Juízes devem ser menos burocráticos na aplicação de leis

Mesmo diante do aumento excessivo de processos, juízes ao redor do Brasil têm buscado alternativas para solucionar questões judiciais e ajudar na construção de uma sociedade mais justa e pacificada. A magistrada Luciana Nucci, da 1a Vara Cível de Votorantim-SP, entende que o uso da lei é estritamente necessário para a ordem social, principalmente em casos de violência física. Mas, defende que juízes pensem em inovações para que a lei seja aplicada de forma menos burocrática. Segundo afirma, esta renovação possibilita o desenvolvimento de meios efetivos para solução de casos e conciliação entre partes em conflitos. A juíza é uma das fontes da matéria de capa para a Revista MPD Dialógico 44, que aborda perspectivas sobre paz e estabilidade social, cuja íntegra da entrevista pode ser lida abaixo.
Luciana Nucci destaca a Justiça Restaurativa como uma das formas mais eficazes de se promover uma sociedade mais pacifica, mas ressalta que seu uso “não significa perdão ou benevolência, mas conscientização de todos os envolvidos no problema”. A juíza foi uma das palestrantes convidadas da 15a Conferência Internacional de Chefes de Justiça do Mundo, realizada em dezembro do ano passado, na Índia. Na oportunidade, apresentou que a paz social depende tanto da ausência de conflitos armados como da garantia dos direitos fundamentais das pessoas.
MPD Dialógico: Quem é a juíza Luciana Nucci? O que a motivou a escolher esta área?
Luciana Nucci: Eu passei a entender que sou um ser em construção, em eterna busca. Estou juíza, mas sempre na busca do justo, do belo e do verdadeiro. Sempre quis fazer direito. A minha mãe era professora de português e o meu pai, investigador de polícia, mas não tive influência de nenhum deles na minha escolha. Entretanto, em razão do meu sonho, minha mãe me levou pra conhecer a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, ainda na época de escola. Quando entrei no prédio histórico, senti algo inexplicável, que confirmou minhas expectativas, razão pela qual me preparei para a FUVEST e, felizmente, consegui aprovação. No primeiro dia em que voltei à São Francisco, já como aluna, disse a mim mesma que concluiria o curso para ser juíza. Esta vontade veio de meu interior. Até hoje não sei explicá-la. Talvez seja o instrumento que a vida me disponibilizou na busca de ser uma pessoa melhor.
MPD Dialógico: O que já fez na profissão e atualmente faz?

Luciana Nucci: Já atuei em Santo André (substituta); fui juíza titular de Fartura, de Angatuba e de Ribeirão Pires. Estou hoje na Primeira Vara Cível de Votorantim. Na área acadêmica, fiz mestrado em Direito Comparado pela Samford University (Alabama, nos EUA) e, atualmente, sou mestranda em Direito Civil pela USP, além de orientadora de novos juízes junto à Escola Paulista da Magistratura.
MPD Dialógico: Como entende que o seu trabalho ajuda nos processos de paz?

Luciana Nucci: Exercer a magistratura é muito difícil. É uma profissão solitária, de lida com muitos problemas sociais. Os conflitos são diversos e evidenciam o lado ruim das pessoas, o lado negro do ser humano, o que nos faz, às vezes, perder a fé. O número de processos também é invencível, há uma grande litigiosidade em nossa sociedade. Tudo isso tornou necessária uma nova percepção da realidade e da minha forma de pensar e agir: tive de me reinventar para sobreviver diante do grande volume de feitos e para conseguir encarar a desgraça humana. Sempre tive o sonho de criar um mundo melhor e foi com essa perspectiva que ingressei na carreira. O meu caminho é costurado com o da magistratura. Foi por meio da profissão, que cheguei até a pensar em abandonar, que entendi que precisava me resgatar, retomar os sonhos e a ideologia do começo, que haviam sido trancados em meu coração por questão de necessidade, de sobrevivência. Quando cheguei aqui em Votorantim, o setor de conciliação já existia. Por meio da Escola Paulista de Magistratura, fizemos cursos de conciliação e mediação, formando novos agentes e melhorando todo o sistema de solução pacífica de conflitos. Busquei, ainda, a instalação de mais uma Vara, que veio em 2009, com a especialização de matérias. Em 2012, consegui a criação do CEJUSC na Comarca, disponibilizando mais uma forma de solução construtiva de conflitos. Gostaria de trabalhar, ainda, com a justiça restaurativa e outras formas mais efetivas de pacificação social. O conflito pertence às partes e não ao Estado. É importante que as partes construam a solução do seu próprio problema. O que me dá forças para continuar lutando vem disso. A sociedade evoluiu, mas ainda resolvemos os conflitos por meio de uma forma arcaica e que já não mais funciona adequadamente. Com o desenvolvimento humano, temos que buscar outra forma, mais condizente com o estágio de evolução atual. Juridicamente, resolvemos o problema, mas o conflito persiste no seio social. O volume de casos não se pode vencer; precisamos mudar a forma de fazer (e não continuar alterando o modo como já fazemos). Acho que isto é muito mais profundo. Precisamos inovar, começar pela educação, dentro das casas e das escolas, uma nova mentalidade na formação das crianças e jovens. Ensinando outras formas de reação para os problemas, uma educação mais centrada em como sermos melhores, como amadurecer com dignidade, como lidar melhor com o conflito, que faz parte de nossas vidas e pode ser positivo, se visto como forma de aprimoramento e de resgate de relações. Isto já é feito nas escolas (mediação). Precisamos transformar a base social, principalmente pela educação.
MPD Dialógico: A senhora realizou uma viagem a Índia recentemente para debater a paz. Como foi esta viagem?

Luciana Nucci: A Constituição da Índia estabelece como obrigação do Estado a promoção do debate em torno de questões relacionadas com a paz, como a justiça social e a proteção das minorias. Todo ano acontece um encontro com magistrados convidados de todo o mundo, para debates e conversas, inclusive com estudantes. Eles têm a ideia de criar um Parlamento e um Judiciário supranacionais, visando à pacificação social. A Índia é conflituosa, mas também é linda, única. O congresso foi muito especial. Eu desejava muito visitar aquele país, mas deveria ter feito o passeio turístico antes do congresso, porque todo o encanto e a lembrança ficaram naquela experiência inicial, em que estive ao lado de tantas pessoas, todas reunidas na busca de ideias e de mudança. Todos estavam ali na expectativa de criar um mundo melhor, mais pacífico e mais justo. Foi um convite que recebi pela Escola Paulista de Magistratura, com autorização do Poder Judiciário, a quem agradecerei imensamente pela oportunidade.
MPD Dialógico: O que foi realmente debatido? Quais as conclusões e medidas sugeridas a serem adotadas?

Luciana Nucci: Houve uma resolução ao final assinada por todos em busca de providências para a solução mais pacifica dos problemas mundiais e talvez a internacionalização dos problemas e a criação de uma entidade supranacional. Algo complexo de ser realizado, mas o ideal por trás de tudo isso é muito atrativo: a garantia de proteção dos direitos humanos, da igualdade e do meio ambiente.
MPD Dialógico: Em sua opinião, como a paz se torna um fator de estabilidade social?

Luciana Nucci: Na palestra que eu apresentei, falei justamente sobre isso. Temos muita ideia de que o mundo equilibrado é aquele sem violência material, como a guerra. O mundo harmonioso, porém, é aquele sem este tipo de violência, mas também sem violência contra os direitos humanos, que são a garantia daquele mínimo necessário para a sobrevivência digna (respeito da dignidade da pessoa humana). No nível interno, os direitos humanos também são tutelados pelo direito nacional sob o título de direitos fundamentais e garantias. Trata-se de conquista antiga da humanidade. Ou seja, estabilidade social depende de ausência de violência concreta e de ausência de violência estrutural. Há um termo africano que evidencia bem isso: quando não está bom pra um, não está bom pra todo mundo (Ubuntu). Esta é uma visão que falta a todos nós, principalmente no Ocidente: a sociedade é uma rede. Quando há um conflito ou uma desestruturação, por mais distante que pareça, ela pode nos alcançar. Não adianta fechar os olhos para a violência, porque ela acaba batendo na nossa porta. Precisamos aprender a pensar no todo e a resolver nossos problemas de forma mais madura e humana.
MPD Dialógico: Quais são os passos necessários para se chegar a esta paz e consequente estabilidade social?
Luciana Nucci: Eu acredito muito no fator educação. Com maior responsabilização das autoridades para que implementem políticas públicas, que efetivamente contribuam nesse sentido. Deve-se buscar garantir respeito e dignidade a cada cidadão. O fundamental é a educação, a mudança de paradigma. O conflito sempre vai existir, mas podemos aprender a lidar com ele de forma diferente, mais positiva. O conflito surge quando há interesses opostos, ou seja, sempre! Às vezes, entender o ponto de vista do outro torna mais fácil a solução do problema.
MPD Dialógico: Com ondas de violência, como abordar a paz e lutar por ela quando se enfrenta uma guerra civil não declarada?
Luciana Nucci: No momento em que há a violência física, a aplicação da lei é estritamente necessária, porque sem ordem, sem aplicação da lei, não se consegue alcançar qualquer resultado. Este é o sistema que temos por ora, ainda que não consiga sempre dar a resposta mais adequada. Talvez o necessário seja uma forma inovadora de fazer a lei ser aplicada, não só como algo burocrático, matemático e formal. Responsabilização, mas não só por meio da pena e sim por meio do entendimento, da solidariedade com a vítima, de conhecimento da realidade de cada um, de construção da melhor solução, o que se pode conseguir por meio de meios alternativos de solução de conflitos, como a justiça restaurativa e também a mediação e a conciliação.
MPD Dialógico: Como ambicionar a paz nesse sentido?

Luciana Nucci: Acredito que a paz pode e deve começar em cada um de nós. A mudança é possível, como uma nova filosofia de vida. Apenas ficar esperando do Estado e do Poder Público não é suficiente. A sociedade já está bem madura para que cada um busque resolução de seus conflitos de forma mais harmoniosa e pacífica, mesmo quando haja necessidade de acesso ao Judiciário. O exemplo deve começar dentro de casa e refletir para a sociedade. O Estado, então, se renderá às novas exigências sociais e também se renovará.
MPD Dialógico: A paz é realmente tangível?
Luciana Nucci: Eu espero que ela seja tangível, ainda que atualmente ela não seja tão visível. Eu tenho fé e esperança. Posso ver os seus contornos, ainda que não enxergue bem sua fisionomia. Com fé, carinho e esperança, é possível desenhar as peças do quebra-cabeca, as quais estão ao nosso alcance – na minha concepção, são a mudança na forma de reagir aos conflitos, o autoconhecimento, a educação, a solidariedade. São valores que estão dentro de nós. A dificuldade em encontrá-los existe porque nos envolvemos demais com as nossas necessidades, a prisão do imediatismo, do egoísmo, de buscar o que é bom para nós, aquela visão mais limitada. Focamos muito só no eu e no meu, e não percebemos que o eu e o meu são parte de você e do seu, do dele. Todos que têm esperança de mudança sofrem também, porque falhamos em conjunto. Somos egoístas, agimos com violência e com impaciência. Mas, acredito que, assim como aprendemos a escovar os dentes depois que comemos, podemos aprender a acionar estes valores positivos. Tais valores precisam ser mais trabalhados e reafirmados. A meditação pode ser um bom instrumento para tanto, ao lado da educação.
MPD Dialógico: Como resolver a questão da violência armada numa perspectiva de paz?

Luciana Nucci: Uma da formas seria a justiça restaurativa mesmo para crimes mais graves. Atualmente, trata-se de instrumento de maior aplicação no campo da Infância e Juventude, promovendo a responsabilização do autor da infração, mas também funcionando como via para libertação da vitima. Poderia também ser aplicada no campo penal. Note-se que a aplicação da justiça restaurativa não significa perdão ou benevolência, mas conscientização de todos os envolvidos no problema: consideram-se as causas e as consequências de todo o evento, o autor da violência escuta da vítima o mal que ele fez, se ela assim quiser, ele assume responsabilidade e se compromete a reparar o mal. A vítima participa do processo, querendo. A sociedade é chamada a participar para que novos casos não se repitam. Em SP, a justiça restaurativa já funciona em São Caetano do Sul. A Escola Paulista da Magistratura tem trabalhado para que o modelo possa ser disponibilizado a outras cidades.
MPD Dialógico: E os outros tipos de violência, principalmente os que desrespeitam os direitos humanos?

Luciana Nucci: As autoridades precisam ser cobradas. Precisamos usar o voto de forma consciente e eleger pessoas que realmente façam a diferença e implementem políticas públicas, que assegurem os direitos humanos, o mínimo necessário para a sobrevivência digna de todos nós, promovendo a paz, a justiça e a equidade. É necessária mobilização social, e, neste aspecto, o MP é um grande aliado na busca pela preservação e garantia de direitos. O Poder Judiciário, enquanto último recurso do cidadão face as mazelas da vida, é também instrumento indispensável. Uma pessoa que tem dignidade e é respeitada em seus direitos básicos tem muito menos chance de se perder pela violência e para o crime.
MPD Dialógico: Há alguma consideração a mais que a senhora gostaria de acrescentar e que não foi tratado nestas perguntas?

Luciana Nucci: Em suma, gostaria de registrar que, a meu ver, se faz necessária uma mudança de paradigma, uma nova filosofia de vida, a ser professada por cada um de nós. A força transformadora vem dos modelos, do fazer, e não das palavras. Em todos os relacionamentos, principalmente na família, no local de trabalho, no seio social, podemos lutar por uma transformação positiva, por uma nova forma de enfrentar os conflitos e os desafios da sobrevivência humana. Talvez seja sonho ou ideologia, mas é isso que me move. Eu prefiro acreditar que tudo é possível!