Em entrevista para o MPD, o Dr. Antônio Visconti fala sobre a carreira do MPSP, iniciada em 1964, no período militar; a importância de organizações como o MPD para a democracia e a experiência como um dos fundadores, além de fatos curiosos sobre a sua carreira.
Visconti foi eleito duas vezes para o Conselho Superior do Ministério Público, e também para o Colégio de Procuradores de Justiça, além de atuar nas Procuradorias Criminais. Ele também exerceu o cargo de chefe de gabinete do procurador-geral.
Na sua opinião, o papel principal do MPD é “restaurar o sentimento de que somos promotores de justiça, ou seja, temos compromisso indefectível com a busca da verdade real e sobretudo com a legalidade estrita de nossa atividade”.
Confira a entrevista completa, na íntegra, abaixo.
MPD — Por quais motivos resolveu ingressar no Ministério Público, quais objetivos o impulsionaram?
Em Sorocaba, morava atrás do Fórum, a Pça. Frei Baraúna e o que me atraiu foi o júri. Na terceira ou quarta vez que assistia a um julgamento, o presidente, Dr. Geraldo Gomes Correia percebeu que eu ainda não tinha 18 anos e eu tive de me retirar. Não me lembro bem por que, o certo é que simpatizei mais com a Promotoria. Já na faculdade, em 1958 ou 1959 passei a integrar a Conferência Vicentina São Basílio Magno, de assistência a famílias pobres, então presidida por Fábio Konder Comparato. O secretário era Paulo Salvador Frontini, que pretendia ingressar no MP e me encaminhou ao estágio. Inicialmente, em 1960, ainda no 3o ano, fui estagiar com o dr. Alceu Arruda, na 21ª Vara Criminal e no ano seguinte, na 47ª Curadoria de Massas Falidas, cujo titular era o Dr. Ruy Junqueira de Freitas Camargo. Este logo foi convocado para a Procuradoria de Justiça, e o Dr. Benedito José Barreto Fonseca, Promotor substituto assumiu o cargo. Alguns meses depois foi promovido, estagiei então com o Dr. Cassio Monaco e nos últimos meses com o novo titular, Dr. Roberto Guerra de Andrade. Na mesma sala, atuava o titular da 3ª Curadoria, Dr. Durval Cintra Carneiro, com quem também aprendi bastante.
Meu programa de estudos para concurso foi organizado pelo Dr. José Roberto Franco Fonseca. Fabio Comparato me deu valioso conselho: que estudasse bem a teoria geral do crime no livro do Prof. Basileu Garcia, embora a voz corrente fosse de que se tratava de ora superada. Eram companheiros no estágio João Benedicto de Azevedo Marques e José Roberto Antonini. Não pude prestar concurso de 1963 porque ainda não tinha o certificado de conclusão do curso. No ano seguinte, fui aprovado e iniciei a carreira.
MPD — A carreira no Ministério Público correspondeu às expectativas? Recomendaria aos estudantes de Direito?
Sem dúvida alguma. Apesar de ter ingressado em maio de 1964 na aurora do regime militar, logo, sempre orientado por Paulo Frontini, me liguei a um grupo de contestadores da nova ordem, liderado por Samuel Sergio Salinas e de que fazia parte o recém punido pelo novo regime, Darcy Passos, que perdeu o cargo. O Procurador-Geral, Dr. Werner Rodrigues Nogueira, embora um conservador, assumiu a defesa intransigente dos colegas na mira do novo regime e conseguiu impedir a prisão de quase todos.
Na época a Justiça do Trabalho estava estruturada apenas nas cidades maiores, de forma que a representação dos trabalhadores na Justiça comum fora incumbida aos Promotores, pois nas cidades menores o patrocínio das causas trabalhistas por advogados era inviável, pois se incompatibilizariam com os clientes potenciais com recursos para contratá-los. Os mais combativos nessa atividade eram logo tachados de comunistas pelos proprietários rurais e a ira da nova ordem se volveu contra eles, felizmente com poucas vítimas de perda do cargo.
E a grande maioria dos inquéritos de perseguição aos chamados subversivos foi arquivada pelos Promotores. Nos governos Juscelino e Goulart a oposição comandada pela UDN – União Democrática Nacional – era cerrada, o deputado Carlos Lacerda pregava golpe militar inclusive na tribuna da Câmara, por isso houve várias tentativas de enquadrar oposicionistas mais agressivos na Lei de Segurança Nacional, sempre barradas no Supremo. Com isso foi se consolidando jurisprudência que virtualmente impedia processos com base nessa legislação. E essa jurisprudência foi largamente utilizada pelos Promotores em favor dos novos subversivos. A partir de um dos novos atos institucionais a competência foi passada para a Justiça Militar e Ministério Público estadual perdeu essa atribuição. E os processo se multiplicaram.
Em 1967, na região de Bauru, iniciamos o movimento dos grupos de estudo, com preocupação de lhes assegurar a independência, impedindo sua instrumentalização pelas lideranças políticas da época. Seu dirigente informal era Júlio Cesar Ribas, Promotor de extraordinária combatividade (o que lhe valeu providências do governo militar, escapando de grave punição, até mesmo a perda do cargo, graças ao mesmo Dr. Werner Rodrigues Nogueira, agora Corregedor do Ministério Público, e do Procurador-Geral, Dr. Virgílio Lopes da Silva).
Enquanto durou o regime militar a posição do Procurador-Geral era extremamente fragilizada. Embora escolhido em lista tríplice, exercia cargo de confiança do Governador, portanto demissível ad nutum. E a elaboração legislativa da ditadura também expunha a Instituição a grandes riscos, porque instituiu sistema pelo qual projetos do Executivo, se não apreciados em alguns meses pelo Legislativo, convertiam-se em lei. E dispositivo da Constituição de 1967 que garantia equiparação de vencimentos com o Judiciário caiu no Ato Institucionalº 5, de forma que passou a existir apenas de fato – verdadeira espada de Dâmocles sobre o MP.
Haveria muito mais a comentar mas esta resposta já está alongada em demasia. Sem dúvida estimular todos a ingressar na Instituição e tenho ainda o sonho de estruturar um curso que viabilize o ingresso de estudantes pobres, oriundos das faculdades privadas, não raro fábricas de diplomas, obrigados a trabalhar e com exíguo tempo para preparar-se. Uma primeira tentativa não foi longe; o Procurador de Justiça Renan Severo Teixeira da Cunha organizou uma segunda fase, que também não vingou. Mas restou a experiência e se Deus quiser ainda levarei novamente esse projeto ao MD.
MPD — O senhor foi um dos fundadores do MPD, tendo participado de diversas diretorias. Como foi essa experiência? Quais as razões que levaram a criação do MPD?
Embora a Instituição realizasse eleições anualmente para o Conselho Superior e a partir de 1983 para o Órgão Especial do Colégio de Procuradores, e a cada dois anos para a Associação Paulista do Ministério Público, que se fortaleceu a partir do final dos anos 60, nunca se firmou oposição ao grupo hegemônico na Instituição. Com isso não havia espaço para os dissidentes. Em 1978 a chapa derrotada nas eleições para a APMP, encabeçada pelo mesmo Renan Severo Teixeira da Cunha, embora derrotada, realizou campanha levantando novas bandeiras e no curso dela, Júlio Cesar Ribas e Samuel Sergio Salinas começaram a pregar a necessidade de se criar outra entidade que desse voz aos dissidentes.
No início dos anos 80, quando aprovada a nova Lei Orgânica dos Ministério Públicos dos Estados, o Presidente da República vetou o dispositivo que assegurava equiparação de vencimentos com a Magistratura. Ao mesmo tempo, o Tribunal de Justiça promoveu reajustamento dos vencimentos de seus integrantes sem iniciativa do Governador, o que desequiparou os vencimentos com os do MP – a equiparação de fato sempre se manteve. Isso gerou grande crise, na qual surgiu um grupo de jovens Promotores contestadores e mencionarei apenas os nomes dos que presidiram o MPD para evitar inevitáveis esquecimentos e ressentimentos: Marco Vinício Petrelluzzi e Luiz Antônio Guimarães Marrey.
Esse novo grupo tinha boa articulação com o recém-criado PSDB e com o então assessor do Consultor Geral da República e depois Ministro da Justiça Saulo Ramos, o Promotor José Celso de Melo Filho, naquela época nomeado para o STF. E Marrey foi chefe de gabinete do Ministro da Justiça Paulo Brossard.
Assim, esse grupo teve várias iniciativas de modificações legislativas e elaborou o primeiro projeto de lei orgânica nacional, no governo Sarney. E levantou a bandeira do MP como guardião da legalidade democrática.
Nessa época Marcelo Pedroso Goulart e Antônio Alberto Machado eram Promotores de Sertãozinho e passaram a coordenar o Grupo de Estudos “Aluízio Arruda”, da região de Ribeirão Preto, inovando seu formato, temário e multiplicando reuniões (não por acaso as lideranças da época se preocuparam com o surgimento de um possível foco de contestação e tratam de recuperar o controle do grupo, trazendo-o de volta a sua rotina, já grandemente burocrática e distanciada do espírito e objetivo que pautaram seu surgimento).. Participaram de congresso da Magistratura Democrática na Europa e idealizaram instituir entidade similar no Brasil (na maioria desses países europeus Magistratura e MP eram uma única instituição).
Das conversações desses grupos nasceu o MPD, que logo ganhou projeção no Estado, com forte atuação na elaboração da Lei Orgânica estadual. Marrey era o então coordenador e comandou a luta contra o projeto preparado pelo chefe do MP da época, Antônio Araldo Ferraz Dal Pozzo. Era líder do PT na Assembléia Pedro Dallari, que propugnava nossas ideias.
(No ano anterior, quando Marco Vinício Petrelluzzi e Marcelo Goulart dividindo a coordenação do MPD, o primeiro deu curta declaração a um jornal criticando afastamento de Promotores da condução de processo contra figurões do governo estadual anterior, o que gerou processo disciplinar encerrado com sua punição, ratificada pelo Órgão Especial do Colégio de Procuradores sem sequer prévia divulgação de pauta, o que levou a expressivo número de abstenções).
Também levamos nossas posições para a grande imprensa, o que nos valeu acesas censuras de muitos integrantes da classe, Éramos acusados de lavar publicamente a roupa suja…
Surpreendentemente emenda elaborada por Luiz Antônio Nusdeo, o mais frequente coadjuvante de Marrey na Assembleia, proibindo reeleição de membro do Conselho Superior já na eleição de 1993 foi aceita pelo relator, deputado Oswaldo Justo. Foi o caminho para a conquista da maioria no Conselho Superior do Ministério Público. Antônio Augusto de Camargo Ferraz liderava grupo que rompeu com o Procurador-Geral da época, outro grupo, liderado por Luiz Carlos Galvão de Barros, lutava pela nomeação do Procurador—Geral na primeira eleição de lista por toda a classe, uniram-se as três correntes e surgiu chapa cujos seis integrantes foram eleitos. Mas de novo estou me alongando muito. Por isso fico por aqui.
MPD — Quais foram os principais desafios de que participou e que poderia destacar?
Já mencionei alguns episódios. Sem dúvida, foi a luta vitoriosa para fazer a Instituição passar a respirar ares democráticos. A vitória na disputa pelo Conselho Superior em 1993 foi o divisor de águas. As atas das reuniões passaram a retratar as disputas, novamente gerando grandes críticas (fala-se demais em transparência, mas sua prática é muito difícil).
E depois a chegada ao comando da Instituição em 1996, com a nomeação de Marrey para sua chefia foi indiscutivelmente um marco na democratização da Instituição, que ganhou notável restauração de sua imagem pública, muito arranhada pela precedente proximidade excessiva com o poder Executivo no Estado.
Novamente houve grande ruído porque Marrey não fora o mais votado e a boa articulação com o então Governador Mario Covas, comandada por Marco Vinício Petrelluzzi, então assessor especial de Covas. Ergueu-se a bandeira do imperativo de escolher o mais votado em nome do respeito democrático à vontade da classe (nunca vinda à baila em algumas escolhas do não mais votado, surgida no governo Franco Montoro quando lideranças do grupo hegemônico no Ministério Público estavam fortemente comprometidas com governos arenistas anteriores – e note-se que a lista era então elaborada apenas pelo Órgão Especial do Colégio de Procuradores, eleitos em chapa única sem sequer disputa por candidatura avulsa).
MPD — Com base em sua experiência como promotor e procurador de Justiça: a instituição do Ministério Público já tem a autonomia que necessita ou isso ainda precisa ser conquistado?
Pensávamos que a caminhada já estivesse consolidada nesse campo, porém o atual desempenho do Procurador-Geral da República infelizmente nos traz de volta os momentos sombrios da era ditatorial quando rezávamos para que o MP saísse das manchetes porque quase sempre denunciavam nossas fragilidades e pipocadas quando poderosos estavam na cena processual.
Também não me entusiasma o sistema de formação da lista tríplice via eleição geral interna.
Enfim, a indicação do chefe da Instituição segue sendo um problema, da mesma forma que a composição dos tribunais superiores (o que absolutamente não significa formá-los via concurso público ou privilegiando o que integram o Judiciário de carreira).
Sem nenhuma dúvida, contudo, precisamos refletir seriamente sobre a atuação do Ministério Público nos tribunais. O atual sistema de pareceres precisa de urgente abolição, faz-nos pouco mais que consultores jurídicos dos tribunais, algo absolutamente anacrônico e inadequado à realidade atual. Reflexo dessa situação anômala é a reivindicação forte pela possibilidade de Promotores ocuparem a chefia da Instituição, como se isso trouxesse algum ganho substancial a ela. A ideia malsinada das metas privilegia a quantidade e tenho ouvido de prestigiosos colegas que a qualidade de suas peças caiu muito em face da carga de processos a cada semana.
Aqui devo lembrar a observação de Renan Teixeira da Cunha, sempre crítico destacado das formas de atuação tradicional de Procuradores e Promotores. Estes vivem na rotina do absurdo de sorte que passam a considerar o absurdo normal. Romper com ela, posto extremamente difícil, é o grande imperativo de um novo Ministério Público, consolidado na atual ordem constitucional.
Igualmente nunca me entusiasmou o conceito de Promotor natural, com todas as vênias aos seus entusiastas defensores. E não é de hoje que penso assim. Principalmente quando passei a integrar a Promotoria do Júri, então com 10 integrantes, firmei a convicção de que alguém deveria estar no comando, para estabelecer padrões de atuação em equipe, absolutamente indispensáveis num sistema em que é impossível cada Promotor acompanhar integralmente os processos nos quais atua, especialmente nas audiências, um dos momentos culminantes do processo, pois ali se compõe a prova.
(Aqui cabe novo parênteses: na época, não havia o cargo de Promotor do Júri. Desde sempre era função de grande relevo, chamada de vitrine de MP, de forma que seus ocupantes eram designados pelo Procurador-Geral, que não delegava a tarefa a assessores. Nunca houve maiores problemas por esse sistema, ao contrário, permitia discreto e imediato afastamento daqueles que não tinham desempenho satisfatório; em compensação criados os cargos, logo surgiram dificuldades intransponíveis na disciplina dos trabalhos, várias punições se deveram a graves desvios de conduta – evidência da necessidade de se repensar a reestruturação da carreira).
Numa tentativa de síntese, o Ministério Público, a meu ver, em função da equiparação de vencimentos com a Magistratura tomou como modelo a organização desta. Precisaria ver-se como advogado da sociedade e a visão de advogado é completamente diversa da de magistrado.
E hoje o Ministério Público abarca atribuições de grande relevo fora da área penal, com problemas técnicos de alta complexidade, que o Promotor iniciante não tem condições de solucionar, à medida que muitas vezes se resolverão somente no Supremo.
É assunto para uma série de entrevistas, contudo.
MPD — Como o Ministério Público pode e deve contribuir nesse momento de crises importantes da história nacional?
Em primeiro lugar me parece essencial restaurar aquela forma de atuação iniciada por Aristides Junqueira Alvarenga. Foram a meu ver os primeiro importantes passos para concretizar o desempenho independente da Instituição, no nível de seu comando, tomando iniciativas contrárias ao interesse do Presidente, por exemplo, ao impugnar a candidatura de Silvio Santos à Presidência da República em 1989, objetivando obstar a eleição de Collor, acérrimo crítico de José Sarney e que dispensara o apoio de partidos tradicionais.
Neste momento, é sonhar demais. Porém é essencial mostrar ao povo que não compactua com as lastimáveis omissões de sua chefia porque de novo a ordem democrática se acha em sério risco e é necessário muita reza, coragem e criatividade para de alguma forma colocar um dique à escalada golpista. Nesse aspecto, a posição pública de dezenas de Subprocuradores-Gerais da República cobrando da chefia o fim de suas omissões e de sua convivência com o golpismo, é exemplar.
E a passividade do chefe nacional vem abrindo caminho a iniciativas do Poder Judiciário nada compatíveis com o sistema acusatório, na esfera criminal, principalmente. O que dá pretexto aos ataques à ordem democrática – criou-se o eufemismo do contragolpe… Contragolpe ocorreu entre 11 e 21 de novembro de 1955, quando o Ministro da Guerra, Gal. Teixeira Lott, comandou a deposição de dois presidentes para assegurar a posse de Juscelino Kubitschek, firmemente eleito e cuja chegada ao poder desagradava amplos setores da sociedade, em especial na Forças Armadas; basta assinalar que teve apoio entusiástico do notável Sobral Pinto, defensor intransigente da ordem democrática.
MPD — Qual deve ser o papel do MPD no presente e no futuro?
Encontrar caminhos para fazer ouvir sua voz na defesa da democracia. E refletir seriamente sobre a identidade da Instituição e sua adequação ao mandato constitucional, algo ainda muito distante. Especialmente reagir contra o punitivismo e o policialismo que parece haver contaminado parte significativa dos integrantes da carreira.
Nosso convidado frequente, Antonio Cluny, em palestra de nossa iniciativa na Universidade Mackenzie defendia o poder de investigação do Ministério Público primacialmente para prevenir frequentes abusos da Polícia na investigação. Lamentavelmente, porém, penso que o MP no Brasil tomou rumo oposto, deixando-se contaminar pelo policialismo. O abuso de autoridade parece ter passado a se constituir na rotina do seu procedimento, uma expressão de acórdãos dos idos de 70. Parece ter havido largo emprego de prisão processual para forçar delações premiadas, instituto eficaz na investigação de crimes mais graves, mas que não pode ser usado sem grande cautela e discrição. E requer melhor regulamentação legal, a possibilidade de se realizar com a Polícia após encerrada a investigação policial me parece uma excrescência; e não pode ter a dimensão de um testemunho comum ao pretexto de que o delator presta compromisso de dizer a verdade.
O papel principal do MPD, porém, a meu juízo, é restaurar o sentimento de que somos promotores de justiça, ou seja, temos compromisso indefectível com a busca da verdade real e sobretudo com a legalidade estrita de nossa atividade. Isso implica resistir ao punitivismo que impera na Justiça Criminal, com a prodigalização da prisão processual, exagero na fixação de penas, porque sobretudo os efeitos mais graves recaem justamente sobre os párias sociais; no capítulo das faltas graves na execução os critérios de análise de provas são deploráveis – a palavra do agente sempre prevalece, exige-se do apenado prova impossível, não vigora o in dubio pro reo. Acabou a unificação pelo crime continuado, tudo é reiteração criminosa, concurso material, pouco importando que as penas se avolumem astronomicamente. E no julgamento de adolescentes infratores, quase sempre defendido apenas formalmente, a arbitrariedade campeava quando atuava nos habeas corpus (parece que houve alguma melhora atualmente).
Velar pelo respeito dos poderes públicos aos direitos constitucionais é atribuição institucional explícita na constituição. No entanto, a audiência de custódia foi bombardeada com base em tecnicalidades, como se a legalidade de prisões em flagrante não fosse um dos mais importantes direitos das pessoas. No entanto, a regulamentação das audiências veda discussão sobre provas. Pergunto: se naquele momento o Juiz deliberará sobre a conversão da prisão em preventiva como deixar de analisar provas, se seus pressupostos são a comprovação da existência do crime e de indícios de ilicitude, culpabilidade e autoria? Em tese cabe ao advogado velar por esses direitos, mas se sabe que a defesa técnica frequentemente é meramente formal, de sorte que o Promotor não pode deixar de verificar cuidadosamente os requisitos da prisão preventiva, sem falar na legalidade da prisão em flagrante. (No ano passado fui nomeado para defender réu acusado de tentativa de homicídio, que fizera ampla confissão no auto de flagrante. Chamou-me a atenção que no decreto da preventiva o Juiz consignou que a legítima defesa seria examinada na instrução, conquanto dessa descriminante absolutamente não se cogitasse no auto. Visitando o preso no CDP este me deu versão inteiramente diversa daquela do flagrante, em relato claro de legítima defesa e sobretudo negando intenção homicida; ingenuamente procurei cópia do termo de audiência de custódia, imaginando que ali constataria a nova versão do acusado. O Promotor estranhou o pedido, mas concordou e o termo absolutamente nada trazia a esse respeito; não seria caso de se registrar, ainda que resumidamente, o relato do acusado? E a omissão levou à denegação do habeas corpus e a prisão se estendeu por quase ano e quatro meses, quando finalmente foi desclassificada a imputação para lesões corporais). Mas também é tema para muitas entrevistas.
MPD — O quê julga importante na formação dos profissionais do Direito?
Sólida base de ética profissional e de direitos humanos. Procuro, aliás, evitar o uso da expressão direitos humanos, porque infelizmente para grande parte da população é identificada como proteção a bandidos. Seria interessante realizar pesquisa para verificar que percentual da sociedade tem consciência de que alimentação, vestuário, habitação, educação, saúde, assistência jurídica, integram o rol dos direitos humanos. Prefiro falar em direitos fundamentais a fim de fugir do estigma que os arautos da violência policial lograram agregar os direitos humanos. Sem esquecer de noções elementares de conhecimentos gerais – Filosofia, História, Literatura, Aritmética, Política etc..
Um Procurador-Geral do Paraná, ainda no final do século passado, contou que contrataram um grupo de professores do Instituto Rio Branco, do Itamarati, para dar curso de conhecimentos gerais durante alguns meses aos substitutos recém chegados à Instituição. Não sei se a experiência frutificou, mas me pareceu iniciativa das mais felizes.
MPD — Quais pontos considera os mais críticos do Poder Judiciário e do Ministério Público; e como evoluir?
Infelizmente o controvertido Ministro GILMAR MENDES me parece ter toda a razão ao dizer que a Justiça Criminal no Brasil para ser ruim precisa melhorar muito.
Indiscutivelmente o MP Federal deu novo patamar ao combate à impunidade no Brasil. Porém a um preço muito alto por ter dado prevalência aos fins em relação aos meios. E com o pecado mais grave de tomar rumos messiânicos em nome da relevância das finalidades e em muitos casos tomar nítido caráter partidário. Em 2015 quando se começavam a festejar os êxitos da Lava Jato, comparando-a com a Operação Mãos Limpas italiana, mandei uma carta à Folha lembrando que na Itália a desmoralização dos partidos políticos desaguou em Berlusconi. Não imaginava que o Brasil contribuiria decisivamente para levar ao poder essa gente que aí está, trazendo tanto sobressalto à ordem democrática que ilusoriamente alguns proclamavam consolidada.
MPD — Algum fato inusitado ou pitoresco durante sua vida profissional que possa ser compartilhado?
Isto daria um livro que quem sabe um dia ainda escreverei. Seleciono dois episódios.
O governo militar instituiu o Serviço Nacional de Informações – SNI – e chegavam alguns ofícios à Promotoria buscando dados sobre políticos, sempre da oposição. Não os respondia.
Porém quando estava na Promotoria de Bariri, em 1968, um dos próceres da sublegenda da ARENA Aliança Renovadora Nacional, o partido do governo, foi a minha casa, aparentando grande constrangimento e me entregando ofício do SNI solicitando informações sobre eventual uso eleitoreiro de bolsas de estudo pelo candidato da sublegenda adversária do partido. Na verdade, soubera que o encarregado de o receber deveria endereçá-lo à Câmara Municipal. Desse modo eu saberia que o grupo interessado tinha conhecimento da diligência obtida no SNI contra o candidato adversário.
De imediato oficiei em resposta, colocando-me à disposição do SNI, desde que a solicitação de informações me fosse remetida por intermédio do Procurador-Geral de Justiça ou do Corregedor-Geral do Ministério Público, únicas autoridades a que estava administrativamente subordinado. Tirei cópia e a remeti ao Procurador-Geral, Dr. Virgílio Lopes da Silva ponderando que ou o objeto da solicitação era de grande relevância, de forma que S. Exa. deveria ser informado a respeito, ou se tratava de questão menor e não cabia ao Promotor conduzir-se como investigador do SNI.
Tratando-se de questão delicada – no mês seguinte viria o AI 5, desencadeado pela recusa da Câmara Federal em autorizar processo contra o deputado Marcio Moreira Alves, por infração à Lei de Segurança Nacional (porque fizera discurso no pinga fogo da Câmara, sem a menor repercussão, incentivando as moças solteiras a se negar a dançar com oficiais das Forças Armadas nos bailes comemorativos da independência do Brasil). Tempos de instabilidade política e muita insegurança.
Por isso, no final da tarde, procurei o Juiz da comarca, dr. Antônio Carlos de Almeida Ribeiro, espécie de varão de Plutarco da Magistratura, e mostrei os ofícios. Imediatamente sugeriu fôssemos ao Correio postar as cartas. Ponderou que era uma atitude de risco e eu poderia começar a cogitar ter família recentemente constituída, com filho já a caminho e talvez fosse mais conveniente engolir o sapo. E assim foi feito. Dias depois chegou resposta do Procurador-Geral aprovando meu procedimento.
Recordo-me também, infelizmente já sem os indispensáveis contornos, de uma crise que provocou reunião extraordinária do Órgão Especial do Colégio de Procuradores. Com a reforma do Judiciário, passou a se exigir comprovação de prática forense aos candidatos a ingresso na carreira, tal como na Magistratura. Como de costume, tomou-se como padrão a regulamentação do Poder Judiciário, prevendo tantas e tais atividades que preencheriam o requisito, esvaziando-o, que chegou determinação superior para se discipliná-lo adequadamente.
O Órgão Especial divulgou as bases da nova regulamentação e alguns Promotores apresentaram objeções. As mais sérias as da colega Valderez Deusdedit Abbud, na ocasião, por motivos vários, não propriamente persona grata no sodalício, no qual o Procurador-Geral Rodrigo Rebello Pinho não contava com maioria. Naquele momento, contudo, tinha maioria no Conselho Superior, de forma que nosso grupo compôs a banca examinadora do concurso de ingresso. A se realizar.
A representação da Valderez foi vista com a esperada hostilidade e para não deixar dúvidas a deliberação majoritária foi por nem sequer conhecer de seu objeto.
E o Órgão Especial decidiu que a aferição do requisito de prática forense ficaria a cargo da banca, a ser realizada findas as provas escritas. Os componentes da comissão examinadora insurgiram-se contra essa disposição. E com razão. Afinal, barrar a participação na prova oral daquele que venceu as primeiras fases seria missão demais espinhosa, fonte de pressões e até de questionamentos judiciais.
O Órgão Especial foi chamado a decidir o impasse. Uma parte dos membros vislumbrou a possibilidade de destituir a banca e quiçá formar outra, obviamente passando por cima do Conselho Superior, ao qual cabe essa atribuição. Problema debatido por algumas horas, os conciliadores chegaram a um consenso e nova regulação para o concurso foi elaborada, com diversas outras modificações.
Terminada a tumultuada reunião, já bem depois das 13h, o Procurador José Ricardo Peirão Rodrigues, um dos principais articuladores do consenso a custo obtido, chegou até mim e comentou: “Não vá falar nada agora, que porá tudo a perder, mas você percebeu que fizemos exatamente a regulamentação proposta pela Valderez?”.
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