A entrevistada do mês é a Dra. Valderez Deusdedit Abbud, Procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, atualmente trabalhando na área de Habeas Corpus e Mandados de Segurança criminais. Em 2020, assumiu a segunda vice-presidência do MPD, com mandato até junho de 2022.

Enquanto Promotora, atuou no I Tribunal do Júri da Capital do Estado e, como Procuradora, atua junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Algumas de suas atuações foram destaques na imprensa como exemplo de combate ao machismo, pois, trabalhou nos processos que envolveram acusações contra um juiz e dois promotores acusados e condenados por atentarem contra as vidas de suas respectivas mulheres.

Foi a segunda mulher candidata ao cargo de Procuradora-geral de Justiça no Ministério Público do Estado de São Paulo, além de haver participado de diversas gestões na administração da Instituição.

Confira abaixo a entrevista completa da procuradora.

1) Das funções exercidas no Ministério Público, quais foram as melhores experiências e os maiores desafios?

Após ter tomado posse no Ministério Público em 11 de setembro de 1980, assumi todas as comarcas para as quais fui promovida ou designada. Desta longeva carreira, destaco, sem medo de errar, que minha passagem pelo 1º Tribunal do Júri foi a maior e a melhor experiência da minha vida institucional. Atuar no júri é um privilégio também para a vida e para formação pessoal, já que lá se debate sobre os dois maiores valores do ser humano: a vida e a liberdade. É um espaço que, além da discussão jurídica, divaga-se sobre questões filosóficas, sociais e culturais. Não deixa também de ser um grande desafio, pois, no plenário do júri, não se fala em nome próprio, você está lá representando o Ministério Público e, sobretudo, a sociedade. Dai a necessidade imprescindível de defender a tese acusatória com compostura e serenidade, ainda que com contundência.

2) Quais os maiores desafios de ser mulher em uma instituição como o Ministério Público?

Nós vivemos numa sociedade marcada pela ideologia patriarcal, onde as mulheres ainda são consideradas cidadãs de segunda categoria, a despeito dos grandes avanços obtidos pela luta incessante das mulheres, especialmente a partir da constituição de 1988. Mas ainda há forte desigualdade social, condição que se constata no mercado de trabalho, em que mulheres, embora desempenhando a mesma função que os homens, recebem salário menor; na escassa representação das mulheres na política; na dupla jornada de trabalho que marca o cotidiano das mulheres, enfim, são situações que refletem a assimetria e o autoritarismo social. E no Ministério Público não poderia ser diferente. Conquanto na Instituição não exista diferença salarial entre os membros, nem tampouco óbice á promoção na carreira em razão de gênero, a discriminação também se faz presente, mas de forma mais perversa e insidiosa, porque realizada de modo dissimulado, em geral por meio de piadas e brincadeiras, que nada tem de jocoso, mas que revela a reprodução da ideologia patriarcal de dominação que permeia a sociedade brasileira.

3) Quais mudanças, como especialista, acredita serem necessárias para o combate à violência contra a mulher?

Não há dúvida de que tivemos grandes avanços legislativos visando ao combate à violência contra a mulher. Sem ingressar na cronologia histórica das leis que trouxeram maior proteção à mulher, basta lembrar a edição da Lei Maria da Penha e a Lei nº 13.104/15, que instituiu a figura do Feminicídio no Código Penal. Mas, a despeito da edição dessas leis, como explicar o aumento endêmico da violência contra a mulher? Na realidade, a sociedade é tolerante com a violência contra a mulher e, por isso, parece-me que o grande e atual desafio é desconstruir a ideologia de dominação que caracteriza a sociedade contemporânea, por meio da qual se reproduz a desigualdade entre homens e mulheres. Ora, para que a lei cumpra sua função social é imprescindível que seus aplicadores tenham clara percepção de que a violência contra a mulher é fruto da ideologia de dominação impregnada em todos os integrantes da sociedade – homens e mulheres – de tal modo que, por meio de decisões paradigmáticas – venham a contribuir para a extirpação dessa grave chaga social.

4) Quais as dificuldades de fazer valer a lei contra membros do próprio sistema de Justiça? Sua atuação, em casos envolvendo promotores e juiz acusados de violência contra as mulheres, foi destaque na imprensa. Sentiu barreiras por conta do corporativismo?

As categorias profissionais, em geral, criam mecanismos invisíveis de proteção que, não raras vezes, desbordam para o deletério corporativismo, de modo a comprometer a apuração pela proximidade entre investigador e investigado. Entretanto, nestes casos mencionados, a Chefia da Instituição foi muito firme e, em momento nenhum, sucumbiu ao corporativismo. Ao contrário, fez valer o princípio sagrado de que todos são iguais perante a lei.

5) Quando e por que você decidiu se associar ao MPD?

No ano de 1991, o Ministério Público de São Paulo ainda trazia a marca do autoritarismo que comandou o país por mais de duas décadas. A divergência de ideias e o debate, tão característicos do regime democrático, eram recebidos como indisciplina ou insubordinação e, por conseguinte, respondidos com sindicâncias ou processos administrativos. A Constituição de 1988, como expressão de ruptura com o regime autoritário, que, dentre outras, conferiu-lhe a função de defender a ordem democrática, ainda não vigorava no Ministério Público de São Paulo. Em suma: não havia nenhum espaço de participação, tal a intolerância que caracterizava a administração superior. Além disso, o Ministério Público de São Paulo vinha perdendo prestígio externo, em razão da relação nada republicana que estabeleceu com o Governo, período durante o qual a instituição figurava diuturnamente nas páginas dos jornais e de revistas de âmbito nacional. Com esse cenário, um grupo de Promotores e Procuradores de Justiça, com história de resistência a toda forma de arbítrio, se uniu em torno da ideia de criar uma entidade com propósitos democráticos, que propiciasse o debate, a crítica e a divergência e, sobretudo, que desnudasse perante a sociedade o Ministério Público formal e defensor do Governo, apresentando a verdadeira função da instituição, que é a defesa da ordem jurídica, mas, aquela do regime democrático. O MPD nasceu para executar uma tarefa política junto à sociedade e não como mais uma entidade de classe. Dentre seus propósitos não figura a defesa de seus integrantes, mas da sociedade que é, em última instância, a destinatária da função institucional. E, não há dúvida de que, entre outros fatores, a atuação do MPD contribuiu para a democratização da instituição, que, hoje, se caracteriza pela democracia interna, contando com novas formas de participação.

6) A Senhora exerce atualmente a segunda vice-presidência do MPD. O que pretende melhorar na associação em sua gestão?

Melhorar significa continuar perseguindo o ideal que inspirou a criação da entidade, aproximando-se cada vez mais da sociedade, com debates, reuniões setoriais ou cursos, sempre com a perspectiva de que a população tenha clareza dos direitos de que todos os cidadãos são titulares, com a finalidade de promover uma vida mais digna, independentemente da origem, raça, etnia, gênero, idade, condição econômica e social, orientação ou identidade sexual, credo religioso ou convicção política.

7) Quais pontos da sua carreira que você destacaria e acredita que podem contribuir para sua atuação?

Creio que o ponto a destacar foi a opção que fiz de atuar na área criminal, função essencial do Ministério Público, sua razão de existir. Nos dias atuais, precisamos valorizar a atuação criminal propiciando aos integrantes meios e condições para a eficaz execução do mandato constitucional que nos foi conferido.

8) Qual a importância de um movimento como o Ministério Público Democrático?

Parece-me que é a apresentação para a sociedade de que todo cidadão é detentor de direitos e pode e deve lutar para garanti-los, desnudando essa ordem social gritantemente injusta, que pede grande transformação, sobretudo na erradicação de intolerável grau de desigualdade.

9) Em relação ao Ministério Público, quais são os pontos fortes da Instituição e onde precisa melhorar?

É uma instituição de imensa relevância social. Basta lembrar que a Constituição, dentre outras atribuições, incumbiu-lhe a defesa da ordem jurídica e do estado democrático de direito. Ou seja, a defesa das liberdades civis e do respeito aos direitos humanos é suficiente para demonstrar a importância social do Ministério Público.

10) Se você pudesse dar um conselho para um jovem formado em direito e que pretende ingressar no Ministério Público, qual seria?

O ingresso no Ministério Público não pode se resumir à busca de um emprego ou função. Todo pretendente ao cargo de Promotor de Justiça deve ter como premissa a convicção de que o interesse público deve preponderar sobre o individual. Fazer parte do Ministério Público significa selar um compromisso perene com a defesa do interesse coletivo, pois o povo é quem detém, em última instância, o poder de criar e modificar o direito. Com essa perspectiva, tenho certeza de que os (as) jovens integrantes estarão escolhendo a carreira certa para intervir diretamente nos rumos da sociedade.