Airton Florentino de Barros e Ministério Público Democrático

Diante do triste terror do holocausto, é tão justo que os judeus protestem sem parar quanto é indispensável que o mundo civilizado coíba permanentemente o antissemitismo.

Está virando moda, entretanto, jornalistas serem processados por organizações judaicas por suposto antissemitismo em razão de uma simples censura a medidas governamentais de Israel.

Antes de tudo, é bom que se diga que a crítica a atos de judeus não significa por si só antissemitismo.

Há grande diferença entre, de um lado, gestos de desrespeito, repulsa, manifesta inimizade ou agressão ao povo judeu por conta de sua origem, etnia, religião e, de outro, a simples crítica à conduta do governo israelense ou de determinado judeu.

Antes de tudo, é necessário distinguir o povo judeu de seu governo.

O primeiro conta com todas as virtudes de um povo realizador como poucos. E sem puxar a sardinha para o lado de cá, os judeus que nasceram ou residem no Brasil são os melhores do mundo. O brasileiro não tem o que deles reclamar, senão admirar.

Mas o governo israelense, aí já são outros quinhentos. Ditatorial, sem dúvida, sobretudo se considerados os últimos atos que editou. Quer até aniquilar o Judiciário, com o objetivo de praticar abusos impunimente. Não tem, pois, noção de democracia. Desconhece a lei, a começar das convenções internacionais, exceto no ponto que lhe interesse, como fez, por exemplo, com a Resolução 181/1947, da ONU, que aplaudiu na parte em que criou o Estado judeu independente, mas desrespeitou na parte da demarcação de seu território. Invoca a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, para proibir práticas antissemitas, mas a desconsidera sempre que pratica a islamofobia.

Vítima de abominável terrorismo de integrantes do Hamas que, em 7 de outubro de 2023, invadiram Sderot, na fronteira nordeste de Gaza, assassinaram brutalmente cerca de 1.200 e sequestraram perto de 200 pessoas, tinha o governo de Israel o incontestável direito de defesa que, todavia, não podia ultrapassar os limites de uma reação proporcional, sob pena de transformar o excesso em ação criminosa.

O direito de defesa de Israel consistia, pois, em repelir a agressão, prendendo os terroristas, processando-os e condenando-os nos termos de suas leis vigentes. Seriam legítimos até mesmo atos violentos que levassem à morte dos invasores, em confronto armado direto, desde que dentro do território do Estado atacado, ou seja, nos limites de sua soberania.

Já em relação aos terroristas que conseguiram sair de seu território, ainda que com reféns, não restava alternativa ao governo israelense senão respeitar normas internacionais, fundadas no respeito à soberania de cada Estado, no pacto de não agressão e autodeterminação dos povos.

Restava-lhe, pois, abrir negociações bilaterais ou solicitar a colaboração internacional para a prisão dos terroristas.

Em hipótese alguma seria legítimo ao governo israelense invadir território que não lhe pertence, nem mesmo para buscar terroristas e muito menos ainda para exterminar os palestinos enjaulados na Faixa de Gaza e adonar-se do território.

Sabe-se que, não só pela maldade do general De Gaulle, mas também por outras razões, como, por exemplo, o IDH (de um povo miserável) incompatível com o tamanho de seu PIB (de um dos Estados mais ricos do Planeta), o Brasil ainda não é considerado um país sério.

Entretanto, nem os violentíssimos organismos de segurança e os chamados esquadrões da morte do período mais nefasto da ditadura militar brasileira, para prender um líder político de oposição, sob a acusação de subversão da ordem e até de terrorismo, chegaram ao ponto de exterminar toda a inocente população do bairro onde o suspeito supostamente se abrigava.

A propósito, o Estado de Direito pressupõe a observância da legalidade nos atos de autoridades e o devido processo legal para a condenação de criminosos. Trata-se, pois, de conquista civilizatória universal.

De outra parte, não custa mencionar que Agostinho de Hipona (Séc. IV d. C) considerava “guerra justa” aquela destinada a repelir a injusta invasão de território por Estado inimigo e, assim, recuperá-lo ou, ainda, para a conversão dos povos pagãos e primitivos de outros territórios ao cristianismo.

Há muito tempo, como é sabido, não se admite no mundo civilizado um Estado que não seja laico, de modo que não se admite mais como “guerra justa” aquela fundada na imposição de pensamento religioso ou a chamada “guerra santa”. Em outros termos, a única hipótese seria aquela da luta armada para a recuperação de território injustamente invadido, em imediata resposta ao esbulho.

No caso, porém, não há território de Israel a ser recuperado de invasores. E o Direito Internacional não autoriza mais qualquer guerra para invasão de terras de outro Estado, mesmo sob o pretexto da perseguição a criminosos e, muito menos, com a finalidade de expansão territorial.

No entanto, é necessário considerar que o governo de Israel, desde a conquista de seu Estado por deliberação da ONU (Resolução 181/1947), nunca escondeu o intento de anexar áreas alheias ao seu território. Espalhou, assim, por todos os lados, seu aparato bélico, que nunca parou de crescer desde a fundação da Haganah, sendo hoje um dos mais poderosos do mundo. E aproveita-se disso para cada vez mais submeter à humilhação a população palestina.

Aliás, desde 1948, tão agressiva foi a ilícita expansão territorial israelense que, para que o Estado palestino não perdesse para Israel todo o solo demarcado pela ONU, Jordânia e Egito dispuseram-se a assumir o controle da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, respectivamente, mas sem nunca anexar tais áreas ao seu próprio território, seja por respeito à causa palestina, seja por reverência às convenções internacionais.

Todavia, num incidente que os historiadores ainda não conseguiram apurar quem teria provocado, iniciou-se a chamada Guerra dos Seis Dias, em 1967, em que, vitorioso, o governo de Israel arvorou-se dono de novas áreas. Tomou para o seu absoluto controle, assim, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, entre outras áreas, para nunca mais devolvê-las. É verdade, não custa registrar, que a Península do Sinai foi devolvida ao Egito em 1982, em cumprimento a um Tratado de Paz assinado em 1979, por meio do qual, em contrapartida, o Egito reconheceu a soberania do Estado de Israel.

Se essa convenção bilateral teve a virtude de garantir relativa paz até o presente entre os dois países, também não é menos verdade que tornou o Egito incapaz de produzir, a partir daí, qualquer ato efetivo na defesa dos territórios palestinos. Não é por outra razão que os egípcios preferem seguir as orientações de Israel até em relação à abertura de sua própria fronteira com Rafah, mesmo para a simples passagem de ajuda humanitária.

O certo é que o governo de Israel vem transformando cada maior ou menor incidente de fronteira em manobra militar a serviço de nova “reforma agrária” em seu proveito e em prejuízo dos palestinos. Tanto que de 1948 até hoje já subtraiu para si metade do território atribuído pela ONU ao Estado palestino.

E não é só. No período em que ocupou militarmente a Faixa de Gaza, de 1967 a 2005, o governo de Israel não economizou crueldade, inclusive usando a mídia para generalizadamente apresentar os palestinos como terroristas. Além disso, tira proveito do fato de não terem os palestinos ainda o reconhecimento da soberania de seu Estado.

Assim, como o Estado palestino, ao seu juízo, é informal, a prisão de judeus decretada pela autoridade do território palestino é considerada sequestro e os judeus detidos apenas reféns. Já a prisão de um adolescente palestino, sem nota de culpa ou acusação formal, por tempo indeterminado, por ser decretada pelo Estado de Israel, não é considerada sequestro, mas legítima detenção de um criminoso. E isso ocorreu e ainda ocorre aos montes.

Trata-se apenas de um exemplo. Suficiente, entretanto, para demonstrar que o governo de Israel pode muito bem estar criando empecilhos para o não reconhecimento do Estado palestino, dado que a situação atual lhe é vantajosa.

É certo que o governo israelense, nesse tempo, enfrentou duas Intifadas, uma entre 1987 e 1993 e a outra entre 2000 e 2005, ambas iniciadas em razão da extrema opressão a que os militares de Israel submeteram o povo palestino.

A primeira, aliás, chamada não sem motivo de “Guerra das Pedras”. Foi iniciada como espontâneo protesto popular contra a opressão. De qualquer modo, para cada pedra atirada por um palestino, um tiro de canhão contra os manifestantes era a invariável resposta do outro lado.

E ainda que se possa discutir a forma com que os cidadãos o exercem, o direito de resistência à opressão é um direito humano fundamental desde a universalizada Carta francesa de 1789.

Foi exatamente esse grande protesto palestino que levou a comunidade internacional a censurar o governo de Israel a ponto de ensejar ambiente propício para o acordo firmado em Oslo, em 1993, por meio do qual seriam projetadas concretas condições para o reconhecimento recíproco da existência dos Estados palestino e israelense, independentes.

Muito estranho que o Hamas, justamente durante a ocupação militar israelense, encontrou circunstâncias favoráveis para constituir-se como partido político e ganhar força suficiente para se opor ao citado acordo de Oslo e dividir a Fatah, partido político laico e mais moderado que representava a autoridade palestina.

Nunca a Fatah quis o Hamas controlando o território da Faixa de Gaza, e nem muito menos o povo palestino ali residente.

Muito suspeita e incoerente a conduta do governo de Israel que, ao invés de se opor ao radicalismo do grupo Hamas, que classifica como terrorista, tenha preferido retirar seus militares e entregar espontaneamente a Faixa de Gaza ao seu controle.

Mais estranho ainda é que, depois de retirar seus militares do território, o governo de Israel tenha contado com a permissão do alegado governo do Hamas para continuar controlando os espaços terrestre, aéreo e marítimo da Faixa de Gaza, além de todos os serviços públicos essenciais.

De fato, o Hamas não tem autoridade para emitir passaportes e nem mesmo a moeda local. É de pasmar, mas a moeda circulante no território da Faixa de Gaza é o shekel israelense. Todo o combustível ali consumido continuou sendo fornecido por empresas israelenses, na frequência e quantidade por elas definidas. A energia elétrica de Gaza, de que também depende o sistema de tratamento e distribuição de água, é produzida por geradores elétricos movidos pelo referido combustível. E mesmo os serviços de telecomunicações, ainda que operados por empresas supostamente palestinas, submetem-se ao controle de fronteira de Israel, como passagem de cabos, por exemplo.

Tanto que, logo no início dessa invasão israelense que já destruiu a maior parte da estrutura da Faixa de Gaza nos últimos meses, suas forças militares cortaram todo o suprimento de água, luz e combustível de todo o território atacado.

O Hamas serviu e continua servindo, pois, mais aos interesses de Israel do que ao povo palestino.

Afinal, a Faixa de Gaza não passa de um pequeno território enjaulado, em que foram confinados 2,5 milhões de palestinos em condições desumanas. Ao norte, sua fronteira com Israel é de aproximadamente 12 quilômetros. A leste, do limite norte ao extremo sul, sua fronteira de pouco mais de 40 quilômetros é também com Israel. Toda essa fronteira é milimetricamente cercada por Israel. É certo que tem, do lado oeste, fronteira com o Mediterrâneo, a que os palestinos, incluindo os pescadores, todavia, não têm acesso senão com autorização da patrulha naval israelense, que completa rigoroso cerco.

Resta a pequena fronteira sul com o Egito que, repita-se, depois das consequências da Guerra dos Seis Dias, nada pode fazer para a defesa da causa palestina.

Em outras palavras, ninguém sem autorização do governo de Israel pode entrar ou sair da Faixa de Gaza, seja por via terrestre, seja pelo mar, seja, ainda, por via aérea, até porque o único aeroporto construído ao sul, em Rafah, foi destruído há 20 anos pelos militares israelenses. E a lista de pessoas que pretendem transpor a fronteira sul só é aprovada atualmente pelo Egito depois de passar pelo crivo do governo de Israel. Basta ver a dificuldade que até mesmo brasileiros tiveram nos últimos meses para retirarem-se da Faixa de Gaza.

Além disso, é preciso que o governo de Israel preste outros sérios esclarecimentos.

O Hamas, em 2017, enviou ao governo de Israel proposta de acordo de paz, que começaria pela alteração da Carta de Fundação do Hamas, num movimento chamado “Islã Moderado”, para admitir a coexistência do Estado de Israel com o Estado da Palestina, este último com os territórios então estabelecidos como da Cisjordânia, da Faixa de Gaza, além de Jerusalém Oriental.

Nenhuma resposta de Israel se tornou conhecida.

E, agora, as suspeitas circunstâncias em que ocorreu o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro estão a exigir melhor apuração, como parece pretender até mesmo a própria população de Israel.

Sabe-se que o governo de Israel, antes desse incidente, estava envolto em protestos populares, seja em relação à composição do governo, seja em relação a tentativa de esvaziamento do Poder Judiciário. Sabe-se, ainda, que historicamente uma guerra com povos estrangeiros sempre foi fator de união interna.

De outro lado, se ninguém entra ou sai da Faixa de Gaza sem autorização do governo de Israel, como hoje é público e notório, difícil explicar como um grupo de terroristas de Gaza tenha conseguido invadir a fronteira e voltar, ainda mais considerando que a divisa ali conta com um muro subterrâneo, munido de sensores para detectar invasões terrestres, aéreas e subterrâneas, com controle digital a distância.

E mais: muito estranho também que o Hamas, segundo o governo de Israel, uma das mais violentas e perigosas facções terroristas do mundo, tenha oferecido tão pífia resistência nesses noventa dias de invasão militar israelense à Faixa de Gaza.

Mesmo que essa medieval e destruidora invasão militar à Faixa de Gaza fosse legítima, não seria mais eficiente que o governo de Israel utilizasse sua avançada tecnologia de inteligência (satélites, informações militares, drones, equipamentos rastreadores, inclusive de celulares, como o “First Mile”, de que brasileiros foram vítimas) para localizar terroristas e reféns, com ações mais cirúrgicas e sem danos colaterais a civis?

A propósito, se o objetivo do governo de Israel, como diz, ao arrasar com toda a Faixa de Gaza, é exterminar o Hamas, não seria o caso de invadir também o Catar, onde seus principais líderes têm domicílio?

Assim, acusar o governo de Israel de genocídio na Faixa de Gaza, ao contrário do que pretendem algumas organizações judaicas, não é antissemitismo, mas apenas a afirmação da verdade.

Ora, o governo de Israel nunca escondeu seu interesse em expulsar da Faixa de Gaza o povo palestino. E realmente, como se estivesse colocando palestinos de um campo de concentração num trem a caminho de câmaras de gás, anunciou uma trilha segura para a retirada da população civil de Gaza, rumo ao sul, a fim de livrá-la do bombardeio iminente ao norte. Mas lançou bombas mesmo sem dar suficiente prazo à população inocente para esse fim, matando muitos civis, na maioria enfermos, idosos, mulheres e crianças. Quem conseguiu chegar ao centro do território foi em seguida bombardeado sem aviso prévio, com mais mortes de civis, que hoje já somam mais de 30 mil, quase metade crianças. E, por fim, quem conseguiu chegar a Khan Yunes e Rafah, ao sul, já vem sendo vítima de bombardeios generalizados. Foram os palestinos, enfim, empurrados para o curral de extermínio ao sul.

Ora, essa mal denominada guerra tem o confessado objetivo de destruir o povo palestino, por sua origem étnica, racial, religiosa, matando grande número de seus membros, causando lesão grave à sua integridade física e mental, o que ficou claro quando o governo de Israel cortou todo o suprimento de água, luz e combustível, além de impedir o ingresso de ajuda humanitária. Submeteu, portanto, os palestinos a condições capazes de ocasionar-lhes a destruição. Ao explodir hospitais e locais de atendimento médico emergencial, impediu o nascimento de novos palestinos. Além disso fez a transferência forçada de milhares de crianças que se tornaram órfãs nessa matança cruel e indiscriminada.

À luz do Direito Internacional, crime de genocídio é o nome que se dá a essa conduta do governo de Israel, que com isso, para a decepção geral, igualou-se aos mais cruéis de seus algozes em toda a história.