Mario de Magalhães Papaterra Limongi e Ministério Público

Está em curso julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a questão do porte de drogas. A tendência é a descriminalização do porte de maconha. Como era de se esperar, reações surgiram.

De um lado, vozes conservadoras consideram que a decisão a ser proferida significa um caminho para a liberação total do tráfico de drogas. De acordo com esse pensamento a liberação do uso de maconha seria apenas o início para a liberação do uso indiscriminado de drogas. Mais que isso, a não punição ao usuário tornaria impossível a repressão ao tráfico, principal causa, segundo sustentam, do aumento da violência.

De outro lado, discute-se se a matéria comporta julgamento pelo Poder Judiciário.

O presidente do Senado, por exemplo, sustenta que a matéria é da alçada exclusiva do Poder Legislativo, único que pode definir a tipicidade da conduta de quem usa ou comercializa substância entorpecente que, por definição, causa dependência física e psíquica.

A matéria – descriminalização do uso de drogas – suscita debates.

Os defensores da posição que, tudo indica, o Supremo Tribunal Federal vai adotar para a maconha, afirmam que a questão é de saúde pública e não criminal, o que vale dizer que admitem que o uso de drogas não deve ser incentivado ou ignorado pelo Estado, mas não justifica seja considerado como conduta típicas

Não me parece sustentável o primeiro argumento. Não vejo como se possa sustentar a não punição ao usuário de drogas importaria, necessariamente, em fragilizar a repressão ao tráfico. A toda evidência, a ideia repressiva da legislação tem sido, para dizer o mínimo, insuficiente, seja para a devida e necessária punição aos traficantes, seja para inibir o aumento de viciados. A proliferação das chamadas Cracolândias é o exemplo mais claro deste fracasso.

As forças policiais – Polícia Civil, Polícia Militar e Polícia Federal – em diversas operações informam de aumento exponencial nas apreensões. A todo instante há notícia de prisões de traficantes apontados como os principais distribuidores de drogas em determinadas regiões.

Não cabe aqui discutir sobre a qualidade das diligências policiais. Mas, é certo que, apesar da expressiva quantidade de droga apreendida e do expressivo número de prisões, não há qualquer indício de que as quadrilhas que se dedicam ao tráfico de substância entorpecente tenham diminuído sua atividade.

Isso posto, parece evidente que a atual sistemática, que prioriza a punição, não vem obtendo êxito.

O segundo argumento – a decisão do Supremo invade matéria da alçada do Poder Legislativo – , sem dúvida, é mais consistente.
Bem por isso, cabe aqui uma discussão sobre a legislação a respeito do tema.

O Brasil, a exemplo de vários países, não tem uma política clara para o tema. Ainda assim, é possível, como já afirmado acima, se dizer que a opção tem sido por uma posição mais repressiva.

O Código Penal de 1940 tratou do tema no artigo 281, tipificando condutas relativas ao tráfico e à posse ilícita.

Durante a ditadura militar, treze dias após a edição do AI 5, o Decreto-lei 385, de 26 de dezembro de 1968, revogou o artigo 281 do Código Penal e, em retrocesso evidente, equiparou a conduta do usuário e do traficante.

Essa inaceitável situação perdurou até a edição da Lei 6.368, de 1976, a primeira conhecida como a Lei de Entorpecentes, que distinguiu a conduta do usuário- punida com detenção-, do traficante- punida com reclusão.

Curioso que a Lei 6.368/76, duramente criticada por punir o usuário, representou, em verdade, uma evolução pois acabou com o absurdo de se punir igualmente usuário e traficante.

Hoje a matéria é regulada pela Lei 11.343/06, que distingue o usuário do traficante, mas é criticada por não estabelecer critérios seguros para diferenciar o tráfico do mero uso de substância entorpecente.

A crítica parece procedente.

Diante da falta de critério objetivo na lei, a quantidade de drogas apreendidas e as circunstâncias da prisão- local supostamente conhecido como ponto de venda, atitude do preso diante da aproximação da polícia, entre outras- passaram a ser decisivas para definir se o autuado em flagrante delito deve ser indiciado como traficante ou tratado como usuário.

A esmagadora maioria dos processos instaurados tem como nascedouro a prisão em flagrante delito.

Infelizmente, não há trabalho de investigação e, assim, só se tem o auto de prisão em flagrante delito para a definição do tipo penal, o que, a toda evidência, conduz a conclusões, para dizer o mínimo, duvidosas.

A palavra do policial que deu a voz de prisão em flagrante, no mais das vezes, constitui a prova mais importante para se definir se o investigado é ou não traficante.

Uma vez definido que se trata de tráfico, outra questão se coloca e mais uma vez com precariedade de informações.

O preso deve ser indiciado como incurso no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06 ou é admissível reconhecer a causa de diminuição prevista no § 4º?

A causa de diminuição de pena, impropriamente chamada de tráfico privilegiado, aplica-se a réu primário que não pertença a organização criminosa.

A intenção do legislador, certamente, foi diferenciar a conduta do gerente do tráfico do pequeno traficante, permitindo a este último pena mais leve.

Como é sabido, recentemente o Supremo Tribunal Federal editou súmula concedendo ao condenado por tráfico privilegiado o direito à pena restritiva de direito, o que, sem dúvida, representou uma evolução, eis que, antes da edição da súmula, não poucos magistrados de primeira e segunda instância aplicavam penas privativas de liberdade, mesmo reconhecendo a incidência do redutor

Sucede, no entanto, que a exigência da primariedade permite que os chamados “mulas” recebam penas desproporcionais.

Isto porque há entendimento jurisprudencial forte no sentido de que o redutor só pode ser aplicado a traficante eventual. Ora, o “mula”, embora peça sem grande importância no mundo do tráfico, por ser peça de fácil reposição, não é traficante eventual, pelo que acaba sendo punido com regime fechado, o que, claramente, não se justifica.

Pior: como a lei não estabelece critérios para se diferenciar o traficante do usuário, há vários julgados em que se reconhece a viabilidade do usuário, até para manter o vício, também se dedicar ao comércio ilícito. Ora, quem está nesta condição (traficante e usuário), dificilmente será primário eis que frequentemente será surpreendido trazendo consigo substância entorpecente.

Em verdade, o legislador, até agora, com pequenas modificações, optou pela repressão.

Se, de um lado, a opção pela punição não redundou em eficiência, de outra, não será a liberação do uso de maconha que vai aumentar o problema.

Para aqueles que sustentam que só a punição pode diminuir o consumo de drogas, não custa lembrar o que ocorreu com a indústria do fumo (droga lícita, é verdade, mas com poderoso lobby).

Faço parte de uma geração em que todos fumavam em lugares públicos (quem não se lembra como sofriam os não fumantes em aviões, restaurantes e até mesmo salas de aula?). Sem repressão, mas com políticas públicas sérias dando conta do grave risco à saúde que o fumo representa, a diminuição no hábito de fumar foi impressionante a ponto do fumante hoje se sentir constrangido.

Não se imagina que a liberação geral de todo tipo de droga seja defensável.

Ainda que se possa sustentar, como no caso da nicotina, que o uso de drogas deve ser combatido com políticas mais ligadas à área de saúde, inegável que a comercialização de drogas pesadas deve ser repelida pela legislação criminal, tarefa que deve ser exercida pelo Poder Legislativo e não pelo Supremo Tribunal Federal.

Diante deste quadro, já passou da hora de uma profunda modificação legislativa sem nenhum receio de vozes conservadoras. A omissão do Poder Legislativo incentiva o protagonismo do Supremo Tribunal Federal.

Cabe ao Poder Legislativo modificar a legislação e distinguir, com clareza o traficante (pernicioso e merecedor da reprimenda penal) do usuário. Em seguida, urge distinguir diversas condutas hoje tratadas de maneira uniforme, não sendo mais razoável que pequenos traficantes sejam tratados com rigor que deve ser reservado ao gerente do tráfico.

Em suma: ainda que se possa entender que o Supremo Tribunal Federal, ao descriminalizar o uso de maconha, invada área da alçada do Poder Legislativo, tal decisão em nada vai fomentar a violência.

Cabe ao Poder Legislativo, reconhecendo as imperfeições da legislação a respeito do tema, enfrentar a matéria de maneira realista e responsável.