Ricardo Prado Pires de Campos *

Muito se tem falado em reforma tributária no país nos últimos anos, mas ela costuma esbarrar em interesses econômicos muito fortes. As pessoas e as empresas que são prejudicadas pelo sistema tributário atual são unânimes em cobrar modificações; mas as que são beneficiadas, e elas existem, não querem mudança, não.

Há setores no mundo financeiro, na indústria, no agronegócio e até nos serviços que possuem alíquotas diferenciadas e, por essa razão, pagam menos do que os demais. Aliás, há inúmeros casos de isenção tributária, ou seja, há atividades econômicas que não pagam nenhum imposto. Como justificar para quem perde de 20% a 30% de sua renda com tributos, que outros não paguem nada. Não há justificativa sustentável.

Pode parecer razoável sustentar que alguns podem pagar mais do que outros, ou que algumas atividades, ditas supérfluas, possam ser taxadas em valores maiores do que as chamadas essenciais, todavia, essa própria classificação tem muito de discricionariedade, e envolve, sim, um favorecimento para determinados setores em detrimento de outros. Tudo bem, vamos admitir que essa escala de essencialidade esteja correta (o que não nos parece totalmente verdadeiro, mas em parte), ainda assim, não é correto isentar alguns e sobrecarregar em demasia outros.

Todos devem dar a sua contribuição tributária para o desenvolvimento do país. Arroz, feijão e remédios podem ser essenciais, mas não poderiam ser transportados se não houvesse vias públicas nas cidades e nas rodovias.

Costumamos reclamar muito dos governos, mas nosso cotidiano é inviável sem eles. Os liberais costumam propagar que são capazes de viver sem o Estado, que basta que o Estado não atrapalhe que eles cuidam de suas vidas. Será verdade? Imagine que você construiu a sua casa com seus próprios recursos e não deve nada a ninguém. Ótimo. Na hora de sair de casa, todavia, você já precisa da Prefeitura porque sem via pública não teria aonde ir. E não basta abrir a rua ou avenida, é preciso conservar, e isso exige dinheiro ou contribuição de todos os usuários. Se você for sair a noite, além da via vai precisar, também, de iluminação. Nova necessidade de contribuição. Mas não é só. Imagine ficar em casa sem o serviço de limpeza pública para recolher seu lixo.

O Estado mantém uma infinidade de serviços que exigem contribuição financeira da população através dos tributos. Manter a saúde pública, o sistema de educação, do básico às universidades, a segurança pública e o sistema de Justiça, os serviços de transporte com rodovias, ferrovias, portos e aeroportos, todo um sistema de infraestrutura caríssimo que foi sendo construído ao longo das décadas e que exige manutenção constante, sob pena de ficar inoperante.

Lógico que os estados precisam melhorar sua eficiência, reduzir gastos e obter o maior benefício possível em prol da coletividade. Essa é uma luta constante, mas não dá mais para negar a importância do Estado na sociedade contemporânea, e a obrigatoriedade de todos contribuírem para a manutenção desses serviços públicos através dos impostos, contribuições sociais e outras taxas.

Pois bem, enquanto uma pessoa que recebe salário, no país, pode ser taxada em até 27,5% a título de imposto de renda, uma pessoa que receba o mesmo valor a título de juros em algumas aplicações financeiras (poupança, LCA, LCI, dividendos e outras) pode não pagar nada, pois, tais aplicações são isentas.

É verdade, nem todas as aplicações são isentas, os rendimentos das aplicações em títulos públicos (dívida do governo) pagam de 15% a 22,5% conforme o prazo do investimento. O problema é que isso gera um sistema absolutamente desigual.

Claro, o governo precisa ter alguma margem de manobra, pois, num momento precisa mais de um determinado tipo de investimento do que de outro e, assim, a diferença de alíquotas serve para estimular ou direcionar o capital disponível. Alguma diferenciação é compreensível, mas zero de impostos para uns e 27,5% para outros, parece violar qualquer ideia de Justiça tributária.

Isso fica absolutamente nítido quando se calcula a porcentagem real de impostos pagos pelas pessoas ricas e pelos trabalhadores que recebem salários. Estes acabam tendo um terço ou mais de seus rendimentos retidos na fonte a título de imposto de renda e contribuição previdenciária. Apenas aqueles que não ganham sequer o mínimo para viver (abaixo de dois salários-mínimos) escapam dessa tributação elevada.

Na época da Inconfidência Mineira, a reclamação era contra o imposto sobre a mineração do ouro, o famoso “quinto” dos infernos, ou seja, a quinta parte ou 20%. Era muito, pois, a Coroa não retribuía com a quantidade de serviços que temos hoje.

Casos de pessoas muito ricas, divulgados pela imprensa, demonstram que graças as isenções tributárias, elas não chegam a gastar nem 10% de sua renda com impostos, alguns nem 5%.

Um megainvestidor brasileiro chegou a divulgar que o ano passado recebeu mais de um milhão por dia de renda passiva, decorrente de seus investimentos, e a renda que ele recebe (dividendos) é isenta de impostos.

Não tenho nada contra milionários ou bilionários. Vivemos num mundo capitalista e todas as pessoas têm o direito de sonhar em enriquecer. A riqueza não é um mal, a pobreza é que se constitui num problema a ser resolvido. Todavia, não é justo que os tributos incidam de forma tão desigual entre as pessoas.

É verdade que essa desigualdade decorre da diferença entre atividades econômicas ou do tipo da aplicação financeira, mas, ainda assim, é profundamente injusta e improdutiva. Isenção tributária é uma vantagem competitiva que não deveria ser concedida, afinal, todos usufruímos dos serviços públicos, em maior ou menor grau. Ninguém pode dizer que não usufrui de nenhum serviço estatal, como acesso as vias públicas, a iluminação pública, a segurança, ao serviço de coleta de lixo e muitos outros.

Portanto, se todos contribuírem um pouco, você evita cobranças extorsivas contra outros. O que se poderia admitir são as isenções para rendas muito baixas, aquelas insuficientes para uma vida digna. E aqui não importa se são provenientes do trabalho assalariado, serviços ou outras rendas, mesmo que originadas do setor financeiro. Quem só recebe o mínimo para sobreviver sem conforto, este sim poderia ser isento de tributação sobre a renda; mas quem possui um padrão razoável de vida não deveria ser excluído de dar sua contribuição para a vida em sociedade.

O tributo é nossa contribuição pelo usufruto dos serviços prestados pelo Estado. É como a despesa de condomínio nos edifícios.

Agora, se o condomínio possui serviços especiais que apenas alguns condôminos usufruem, estes podem ser cobrados separadamente apenas dos beneficiários. O básico é para todos, mas algumas benfeitorias beneficiam apenas parte da sociedade, portanto, alguma diferença de tratamento pode ser justificada.

O que nos parece absolutamente injusto é isentar muitas espécies de aplicações financeiras (renda sobre capital), mais utilizadas pelas classes ricas, e cobrar altos impostos dos trabalhadores assalariados que, em geral, possuem renda menor. Tanto a renda ativa (decorrente do trabalho) como a renda passiva (decorrente de aplicações financeiras e aluguéis) deveriam pagar as mesmas alíquotas no imposto de renda. Todas elas são formas de renda.
Esperemos que o projeto de reforma tributária a ser apresentado pelo novo governo caminhe no sentido de maior equivalência tributária entre os trabalhadores e os capitalistas. Trabalho e capital contribuem para o desenvolvimento conjuntamente. Necessário que ambos façam a sua parte e deem a sua parcela de contribuição, pois, o sistema atual sobrecarrega os assalariados em benefício do capital, no que tange ao imposto de renda das pessoas físicas.

* Ricardo Prado Pires de Campos é professor de Direito e escritor, procurador de Justiça aposentado, e atualmente preside o MPD – Movimento do Ministério Público Democrático. Coautor nas obras: 200 anos da Independência do Brasil (Ed. Quartier Latin) e Em defesa da Democracia (Editora Dialética).