Alexandra Beurlen *
09.02.2023 16:07  

Todo ser humano tem direito a um nível de vida que lhe propicie e à sua família uma alimentação adequada. Assim preceituam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, documentos dos quais o Brasil é signatário.

O direito humano à alimentação adequada foi, ainda, expressamente incluído no rol dos direitos sociais descritos pelo art. 6º da Constituição Federal brasileira, desde a Emenda Constitucional nº 64/2010, em que pese estivesse implicitamente reconhecido pela Carta, desde sua origem.

Direito fundamental essencial para a realização de muitos outros, mas especial e umbilicalmente ligado aos direitos à saúde e à vida, possui em sua dimensão mais pungente o direito humano a estar livre da fome, de óbvia urgência, diante das consequências cruéis da desnutrição.

Embora pareça óbvio, em uma sociedade civilizada, que incumbe ao Estado não permitir que seus cidadãos padeçam de fome, a República Federativa do Brasil, tendo por objetivo a construção de uma sociedade solidária, fundada na dignidade da pessoa humana, prefere deixar claros os limites de interpretação das normas que disciplinam poderes e deveres de seus entes.

Tal decisão político-constitucional é de extrema importância quando, como ressalta Amartya Sen: “a fome é uma característica de algumas pessoas por não ter alimento suficiente. Não é uma consequência de não existir alimento suficiente (…). Para entender a fome é necessário, então, compreender a estrutura da propriedade” (tradução livre – Poverty and Famines – An Essay on Entitlement and Deprivation – Oxford University Press, 1983).

A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), Lei nº 11.346/2006, visa a assegurar o direito humano à alimentação adequada, construindo juridicamente o conceito de segurança alimentar e nutricional e apontando as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais de observância indispensável para a realização da alimentação como direito.

Criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) para que o poder público e a sociedade civil, juntos, pudessem formular e implementar as políticas públicas indispensáveis à efetivação do direito humano à alimenta adequada, reconhecendo, em seu art. 2º, § 2º, que: “É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade.”

Não se trata, então, de uma opção dos Poderes Públicos a implementação de políticas que visem à promoção do direito humano à alimentação adequada, mas um dever de planejamento no sentido de alcançar, no menor intervalo de tempo possível, a plena realização deste direito e os caminhos por seguir são previstos pela Losan.

É necessário assegurar, para tanto, que todos os entes federativos brasileiros, promovam uma adesão real ao Sisan, com a formação e funcionamento dos respectivos Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional, bem como com a elaboração de um planejamento para a promoção do direito humano à alimentação adequada, traduzido na política de segurança alimentar e nutricional do ente federativo, com a respectiva correspondência financeira e orçamentária.

Tal planejamento deve partir da compreensão de que, para estar livre da fome, em um primeiro momento, e alcançar a segurança alimentar e nutricional, com plena realização do direito humano à alimentação adequada, a médio prazo, é indispensável o acesso ao alimento em qualidade e quantidade suficientes e adequadas, o que, como ressaltou Sen, não é garantido com a existência do alimento, mas a partir da comunhão de distintas políticas públicas que proporcionem a todos os meios de subsistência (terra, trabalho, assistência social, entre outros).

Incumbe constitucionalmente ao Ministério Público brasileiro a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da CF/88). Não há dúvidas, pois, que a esta instituição essencial à função jurisdicional do Estado, em seus distintos ramos, cabe a garantia do direito a estar livre da fome e do direito à alimentação adequada em seu aspecto mais amplo, zelando pelo efetivo respeito dos poderes públicos a ambos.

Conhecer a realidade alimentar e nutricional do ente federativo em que atua e, dentro dos limites de sua atribuição funcional, utilizar-se de todos os instrumentos jurídicos disponíveis para a tutela de direitos individuais, difusos e coletivos indisponíveis é dever do agente ministerial, a fim de evitar que a omissão do Estado no cumprimento de suas obrigações previstas pela Losan viole gravemente a dignidade humana, mormente face à relevância direito de estar livre da fome.

Explica Asbjorn Eide que a realização do direito humano à alimentação adequada não significa inação até quando e como o Estado bem pretender assegurá-lo, ao contrário, impõe-se sua realização à medida da disponibilidade orçamentária e com o máximo de urgência possível (EIDE, Asbjorn, Human rights requirements to social and economic development. In: Food policy, pp. 23 a 39. Grã-Bretanha: Elsevier Science, volume 21, n.° 1, 1996, p. 34.).

A existência do dever estatal e a importância do direito à alimentação adequada (precipuamente na dimensão de estar livre da fome) impõe aos entes federativos com recursos insuficientes para assegurar todas as suas demandas, uma ponderação que deve ser norteada pelos objetivos, valores e princípios constitucionais do Estado brasileiro. E, neste particular, a atuação ministerial se torna ainda mais significativa, como responsável por promover as medidas necessárias à garantia dos direitos fundamentais (art. 129, II, da CF/88).

Merece destaque o voto do ministro Herman Benjamin, no julgamento do REsp nº 1.389.952-MT: “[…] somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Ou seja, não se nega que haja ausência de recursos suficientes para atender a todas as atribuições que a Constituição e a Lei impuseram ao estado. Todavia, se não se pode cumprir tudo, deve-se, ao menos, garantir aos cidadãos um mínimo de direitos que são essenciais a uma vida digna […]” (destaque inexistente no original).

Não há dúvidas de que, ao menos no âmbito do direito a estar livre da fome, estamos diante de uma prioridade constitucional que não permite análise discricionária dos gestores públicos e, por conseguinte, demanda do Ministério Público uma atuação voltada à garantia do cumprimento do dever estatal, previsto pela Losan e pela Constituição Federal, de assegurar a todos os meios de acesso ao alimento adequado.

* É promotora de Justiça em Alagoas e associada do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).

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