JÚLIO MARCELO 06 DEZEMBRO 2023 | 10min de leitura

Lei 9.637/98, conhecida como Lei das Organizações Sociais, recém completou 25 anos de sua edição. A bem da verdade, o regime instituído pela lei já vinha vigendo desde o ano anterior na forma inaugurada pela Medida Provisória 1.591, de 9 de outubro de 1997, sucessivamente reeditada até ser, ao final, convertida em lei em maio de 1998. Passado um quarto de século de sua edição, ainda muito se discute sobre os benefícios por ela trazidos, as vulnerabilidades que apresenta e os meios para mitigá-las.

Trata-se de lei federal, destinada a prever a qualificação de associações ou fundações privadas, todas sem finalidade lucrativa, como Organizações Sociais (OSs) e regular as parcerias entres essas OSs e a administração pública no âmbito exclusivamente federal. Assim, estados e municípios, para poderem realizar contratações do mesmo tipo, precisam aprovar suas próprias leis com essa finalidade.

Embora a ideia original do governo federal conferisse ampla liberdade aos estados e municípios para conformação das OSs em seus respectivos âmbitos, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 1923/DF, definiu que a lei federal produz efeitos de norma geral de observância obrigatória para os entes subnacionais, de modo que suas leis devem reproduzir o regramento federal sobre a matéria e inovar apenas onde e quando não houver choque com a norma federal.

O modelo nasceu no governo Fernando Henrique Cardoso, dentro da reforma administrativa do Estado brasileiro, proposta e conduzida pelo ministro Bresser Pereira, na perspectiva de tornar o Estado mais gerencial, mais orientado a resultados, por meio de flexibilidade e agilidade para contratar e gerir pessoal, bem como adquirir bens e serviços.

Em certa medida, essa preocupação correspondeu a uma reação ao fato de a Constituição Federal de 1988 ter adotado para a Administração Pública direta, autárquica e fundacional o regime pleno de direito público, incluído o Regime Jurídico Único para pessoal, de natureza estatutária. Assim todas as autarquias e fundações públicas antes regidas pelo direito privado passaram ao regime de direito público e todos os seus empregados, então sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho, mudaram para o regime estatutário no momento em que foi aprovada a Lei 8.112/90.

Muito embora, em sua concepção, as OSs possam ser organizações do terceiro setor, não governamentais, que podem assumir funções de parceria com o Estado, no âmbito federal, os melhores exemplos de sucesso são de entidades que já integravam a administração pública e foram transformadas em OSs para adquirirem maior agilidade e flexibilidade, como foram os casos do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e outras entidades no âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Vale dizer, no âmbito federal, ocorreu o desenho de uma nova roupagem para entidades que já compunham a administração pública.

Já nos estados, o modelo foi implantado especialmente para gerir instituições de saúde, seguindo o exemplo inaugurado pelo estado de São Paulo, que repassou grande parte da rede pública de saúde para a gestão de organizações sociais. Quando a lei paulista de organizações sociais foi proposta, o problema que o estado procurava resolver era a existência de mais de uma dezena de esqueletos de hospitais espalhados em seu território, sobretudo na capital, sem funcionamento pela incapacidade de o estado os equipar e, sobretudo, contratar servidores, em razão de restrições fiscais. Ao fim da tramitação do projeto de lei, também o setor de cultura foi incluído em seu escopo. Assim nasceu a Lei Complementar 846/98.

Embora a lei viesse resolver um problema de estremada relevância, outros problemas nasceram com essa solução e foram motivo de críticas ao modelo. Um deles diz com a transparência da gestão dessas unidades de saúde, com o desconhecimento de como os recursos são geridos, quem são os prestadores de serviço contratados, quem são os profissionais selecionados, quanto se paga por seus serviços etc.

Não se trata aqui de pretender impor a essas entidades o mesmo regime jurídico dos órgãos públicos, mas de evitar que as OSs se transformem em veículos de nepotismo, de corrupção e de remuneração exorbitante e fora dos padrões de mercado. Não basta saber quantas consultas foram feitas e quantos procedimentos foram realizados por meio de declarações das próprias entidades. Há que haver auditorias que comprovem essas quantidades e garantam que os meios utilizados ocorram de acordo com os princípios básicos da administração pública, como a moralidade e a impessoalidade. É preciso poder comparar a performance dessas entidades com as demais da rede pública de igual porte, custo e investimento, até para que se possa validar o modelo.

As OSs devem existir como instrumento para potencializar o atingimento de finalidades públicas e não como burla de regras básicas da administração pública. Não à toa a Lei Complementar 141/2012 estabeleceu, no § 2o de seu artigo 13 que “Os recursos da União previstos nesta Lei Complementar serão transferidos aos demais entes da Federação e movimentados, até a sua destinação final, em contas específicas mantidas em instituição financeira oficial federal, observados os critérios e procedimentos definidos em ato próprio do Chefe do Poder Executivo da União.”

Por destinação final deve-se entender o credor final do recurso da saúde despendido seja pela administração direta, seja pela indireta, ou ainda por meio das organizações sociais. A destinação final não é a OS, mas o fornecedor de bens e serviços para a OS. Nada previne melhor a corrupção que a transparência no manejo e destinação dos recursos e as OSs não podem servir de biombo para encobrir essa destinação final.

Outra crítica comum ao modelo é que algumas unidades geridas por OSs praticariam um modelo de seleção de pacientes, dirigindo os pacientes mais graves e custosos para os hospitais remanescentes da rede pública, reservando para si os pacientes de evolução mais rápida. Evidentemente essa prática não pode ser admitida e, quando confirmada, deve ser punida, porque equivale a negar assistência a pacientes que constituem o público-alvo da entidade e que, portanto, devem ser obrigatoriamente atendidos com o mesmo grau de atenção e excelência destinados aos demais pacientes. A obtenção de números positivos em volume de atendimentos e grau de resolutividade por uma OS não se pode dar à custa da rejeição de pacientes mais graves.

No quesito gestão de pessoal, vale destacar o caso do Hospital Brigadeiro. A OS contratada assumiu o hospital já em operação com cerca de 1.300 servidores públicos, que foram cedidos para a OS. Caso contrário, teriam de ser realocados em outras unidades e a OS teria de contratar essa força de trabalho, fazendo com que o Estado tivesse de pagar duas vezes para ter o mesmo efetivo. Esse exemplo é bastante revelador de que o problema da gestão pública, ao contrário do que muitos pregam, não está propriamente no regime jurídico dos servidores, mas na própria qualidade da gestão, isto é, nos processos de tomada de decisão, gestão de pessoas, planejamento de contratações etc. Quando a gestão é comprometida com resultados, orientada para a efetiva prestação de serviços à população, com metas quantificadas e controláveis, os resultados positivos aparecem. Quando o serviço público se volta para si mesmo, priorizando a conveniência de dirigentes e corporações, prestando serviço público em medida confortável para o próprio serviço público, os resultados definham e se apequenam.

Muita vez se diz que o servidor público não quer trabalhar. Isso pode ser verdade para uma pequena minoria. A maioria quer servir ao público, quer se sentir útil, quer se orgulhar do seu local de trabalho. Uma gestão qualificada, impessoal, que estabelece metas realizáveis e aferíveis, com o engajamento e exemplo dos dirigentes, produz excelentes resultados em qualquer regime jurídico. Quando o usuário do serviço público é colocado no centro das preocupações dos gestores, a qualidade se eleva e a importância do serviço público se revela.

Além da saúde, instituições culturais também foram objeto da preocupação do legislador paulista no estabelecimento de seu modelo de Organizações Sociais. Destaque-se o caso da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, instituição que floresceu com sua transformação em Organização Social, com mais liberdade para captar recursos junto à iniciativa privada para financiamento de suas atividades, reduzindo ao longo do tempo sua dependência de recursos do orçamento do estado.

Vê-se, pois, que as OSs são uma ferramenta, um modelo de prestação de serviço público. Como toda ferramenta, pode ser bem ou mal utilizada. Se bem utilizada, com transparência, métrica adequada e auditável, pode ser extremamente útil para a sociedade. Se mal utilizada, pode facilmente degenerar-se em veículo de corrupção, nepotismo e patrimonialismo da pior espécie.

Da mesma forma, a administração direta ou indireta pode ser uma ferramenta de boa ou má prestação de serviço público. Há diversos órgãos e entidades da administração pública reconhecidos pela qualidade de seus quadros e de seus serviços.

Não se pode imaginar o funcionamento de uma OS como uma atividade empresarial. A OS não tem por foco a geração de lucros, mas o atingimento de objetivos públicos. Daí porque estão fadadas ao fracasso as contratações de entidades múltiplas que são fundadas por “empreendedores” para obter contratos com o serviço público com o objetivo de enriquecimento de seus fundadores por meio dos contratos que as OSs celebram com prestadores de serviço ou da remuneração que destinam a seus dirigentes. Infelizmente, por todo o Brasil, há dezenas de casos de corrupção envolvendo esquemas dessa natureza.

Esse é um problema que nasce já com a qualificação indevida de entidades recém-criadas, sem nenhuma tradição na prestação do serviço público objeto da contratação. A qualificação não é algo que se possa obter de modo meramente formal. Ela há de ser substancial, resultante da experiência da entidade naquela atividade. Esse há de ser o primeiro crivo para evitar que aventureiros e mal-intencionados capturem a administração pública, especialmente em setores tão sensíveis para a população como a saúde.

Disso decorre que um número elevado de OSs realmente capacitadas para bem gerir uma unidade governamental, na saúde ou não, não é algo de fácil ocorrência, de fácil replicação. Excelência na prestação de serviços é algo que leva tempo para se construir, especialmente em entidades complexas. Não é à toa que bem poucos hospitais, mesmo no setor privado, atuam em nível de excelência. Não é apenas o volume de recursos empregado, mas toda uma cultura organizacional, treinamento, recrutamento e retenção de talentos, atualização tecnológica, enfim, tudo o que compõe a gestão. Daí porque entidades recém-criadas, sem tradição alguma, não devem e não podem ser qualificadas como OSs. Daí também porque o modelo não é uma panaceia, uma vara mágica para resolver todos os problemas de falta de qualidade da gestão em órgãos públicos.

Por fim, cabe reconhecer os avanços que o modelo traz, sem descurar dos riscos a ele associados. Com boa gestão dos riscos, transparência e controle adequados, as OSs podem contribuir significativamente para dotar a administração pública de uma ferramenta a mais para bem servir à sociedade.

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