Inscrito no capítulo “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” (CF artigo 5º, XXXVIII), a Instituição do Júri vem resistindo aos argumentos daqueles que pretendem excluir a participação popular na administração da Justiça, sob o equivocado argumento de que juízes leigos não reúnem condições técnicas para decidir causas nas quais se discutem complexas categorias jurídicas.
Fincado em raízes democráticas, o Júri Popular é a única instância do Poder Judiciário que permite o real contato com a sociedade, absolutamente necessário para o arejamento das instituições. Por ser um órgão colegiado, as decisões do Tribunal Popular espelham com mais fidelidade o pensamento médio da sociedade, que não raras vezes se dissocia por completo das crenças e convicções dos juízes, quase sempre encastelados entre códigos e doutrinas, restringindo-se à aplicação automática do fato à lei, que, por ser estática, não acompanha a evolução da sociedade moderna, sempre em transformação.
É verdade que, ocasionalmente, o Conselho de Sentença, por representar o pensamento médio da sociedade, reproduz estereótipos e preconceitos, mas a experiência tem demonstrado que os avanços sociais atingem muito mais diretamente o júri popular do que os juízes de carreira.
A propósito do tema, recentemente, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, na sessão plenária do dia 29 de junho de 2023, como relator de um caso em que se analisava a legítima defesa da honra em feminicídio, voltou a criticar a instituição do Júri, conclamando a Frente Parlamentar Feminina a propor uma emenda constitucional sugerindo a extinção do Tribunal Popular. Para defender sua tese, o e. ministro, argumentou: “Esse instituto é que reproduz o machismo da sociedade dentro do Poder Judiciário. Afora as inúmeras possibilidades recursais, diante do seu arcaísmo, de não se chegar nunca à solução. Seja de feminicídios, mas também dos homicídios de maneira geral, que somam mais de 50 mil assassinados por ano”.
Mas essa conclusão reflete uma análise superficial da realidade cruel que se abate sobre a violência contra a mulher frente ao sistema de justiça e envolve uma boa dose de ingenuidade. Em última análise, o raciocínio do qual essa afirmação provém simplesmente reedita, em versão ampliada, o critério oligárquico que sempre permeou o sistema judicial, estruturalmente machista, patriarcal e sexista.
Ora, não será com a extinção do Tribunal Popular que os feminicídios deixarão de ocorrer ou que seus autores não serão mais contemplados com a absolvição ou com alguma das generosas medidas, em que nosso Direito é tão pródigo, que, na prática, preservam a liberdade de ir e vir tal como era antes da condenação. É que não convence o argumento, segundo o qual o juiz leigo é suscetível à manipulação da retórica, deixando-se seduzir pelo orador mais sagaz ou persuasivo, como se o Júri fosse um teatro no qual os protagonistas expõem suas vaidades para uma plateia dócil e desprovida de juízo de valor, ou que os jurados pautam suas decisões por preconceitos sociais, ideológicos, de raça ou de cor.
Este argumento elitista e que nega a possibilidade de o povo realizar o controle social, recorda a democracia ateniense, na qual somente uma casta social — os “cidadãos” — tinham direito ao voto, além de estampar inescondível desprezo pela vontade do povo, ainda titular de todo poder que em seu nome é exercido (CF, artigo 1º, parágrafo único). Ademais, achar que somente os jurados julgam com marcado subjetivismo significa afirmar que os juízes togados se despem de sua condição humana e, como verdadeiras divindades, realizam a prestação jurisdicional de maneira objetiva e imparcial. Mas não são poucas as decisões provenientes de juízes togados que reforçam e solidificam odiosa intolerância social.
Aliás, o próprio ministro Dias Toffoli, fiel discípulo da extinção do Tribunal Popular, em 29 de setembro de 2020, no julgamento do Habeas Corpus nº 178.777, votou de forma contrária à tese que hoje defende. Trata-se do julgamento de um réu confesso — autor de um feminicídio tentado —, que foi absolvido pelo Tribunal do Júri da comarca de Nova Era, em Minas Gerais, com base na legítima defesa da honra. Mas o Tribunal de Justiça daquele estado reformou o veredicto e determinou a realização de um novo julgamento, decisão mantida pelo Superior Tribunal de Justiça. Porém, por força de HC impetrado pela Defensoria Pública, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria, com o voto do e. ministro Dias Toffoli, manteve a absolvição com fundamento na soberania dos veredictos. E o informativo do Supremo Tribunal Federal registra: “A mudança de entendimento se deve à alteração na composição do colegiado, em razão da saída do ministro Luiz Fux para a Presidência da Corte e do ingresso do ministro Dias Toffoli”.
Este é um bom exemplo para ilustrar a tese que tanto os aplicadores técnicos da lei quanto os julgadores leigos são frutos de uma sociedade desigual, patriarcal, machista e preconceituosa, e que os juízes togados analisam e interpretam a lei de acordo com os seus valores. Ora, atribuir imutabilidade à soberania dos veredictos e manter a absolvição por legítima defesa da honra é igualmente expressar valores que deveriam estar enterrados. Em suma: o Tribunal Popular e a Corte Constitucional do país erraram nesta decisão, mas, com uma diferença: juízes leigos não conhecem a lei, menos ainda a arte da hermenêutica, resultando inconcebível interpretar soberania como sinônimo de imutabilidade.
Bem por isso, não será com a exclusão do Tribunal do Júri do cenário legal que decisões retrógradas e anacrônicas deixarão de figurar no repertório jurídico nacional, ou como bem esclarece a expressão latina Ne Nuntium Necare, que em bom português traduz a ideia de que “não adianta matar o mensageiro”, porque a mensagem ainda existirá.
Há que se rever, isso sim, o arcabouço jurídico nacional para adaptá-lo aos novos rumos do processo civilizatório, banindo, por exemplo, certas categorias jurídicas que atravancam o primado dos direitos humanos das mulheres e de todas as vítimas alvo de discriminação, providência que só depende do STF, único intérprete da Constituição, mas que nunca foi enfrentada com seriedade e, sobretudo, com a perspectiva de eliminar ou atenuar a discriminação e estereótipos que caracterizam a sociedade brasileira.
Somente uma sociedade desigual e tolerante com a violência pode conceber um ordenamento jurídico que inclui o quesito absolutório genérico “o jurado absolve o réu”, autorizando o Conselho de Sentença a expressar toda forma de discriminação e preconceito, podendo absolver o matador de mulheres, o racista, o homofóbico, além de consagrar a violência policial.
Parece claro que a lei em vigor, permitindo a absolvição sem qualquer motivação ou fundamento, ou até mesmo “por clemência” constitui a verdadeira inconstitucionalidade a ser enfrentada pela Suprema Corte ou ser alterada pelos legisladores, pois, este enunciado possibilita a reprodução de toda forma de intransigência, cuja consagração desconsidera a tutela de valores e interesses da própria sociedade. Não é por outra razão que a legítima defesa da honra — tese que havia perdido sua força ao longo dos anos — ressurgiu com acentuado vigor em 2008, a partir da reforma do Código de Processo Penal, que inseriu o quesito absolutório genérico no julgamento de crimes contra a vida.
Para superarmos a distorção hermenêutica dos textos legais, torna-se imperativo romper alguns “totens e tabus”, que deformam o conceito e a finalidade da Constituição e das leis infraconstitucionais, transformando-as em mais uma ferramenta de reprodução da ideologia patriarcal dominante, em vez de instrumento para efetivação de direitos, visando à construção de uma sociedade em que todos tenham as mesmas oportunidades e sejam tratados com respeito e dignidade.
A Constituição da República, no artigo 5º, XXXVIII, dispõe: “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) – o sigilo das votações; c) – a soberania dos veredictos; d) – a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. E o artigo 93, IX, consigna: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
Pelos textos acima transcritos, percebe-se, desde logo, que a configuração estrutural do Tribunal do Júri tem previsão constitucional, delegando ao legislador infraconstitucional tão somente a sua forma de organização, desde que, naturalmente, não contrarie preceitos inscritos na própria carta. E o artigo 93, IX dispõe que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário — aí incluindo-se o Tribunal do Júri — devem ser fundamentados.
Pois bem. Para que as normas citadas coexistam em harmonia, a solução está na desconstrução de alguns mitos e no enfrentamento de dois pontos fundamentais: a natureza das decisões do Tribunal Popular e a soberania dos veredictos, valores muito caros à nossa melhor tradição jurídica. Persiste até os dias de hoje a crença equivocada de que as decisões do Júri, antes da reforma de 2008, não eram motivadas e, em nome da soberania, permitia-se até a absolvição por clemência. Certamente essa conclusão não deriva de nenhuma norma constitucional, mas, da construção doutrinária a partir do artigo 472, em que o jurado solenemente assume o compromisso de “examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça”.
É evidente que a redação deste artigo não permite deduzir que os jurados possam julgar apenas de acordo com seus próprios códigos de valores, mas tem servido de mote para o eterno retorno do renitente combate ao Tribunal do Júri. O certo é que, antes da reforma penal de 2008, havia especificação das teses e o julgamento se dava dentro dos limites do que fora exposto em plenário.
Sabia-se, por exemplo, com base em qual excludente os jurados absolveram ou qual delas rechaçaram, método que dificultava ao conselho de sentença julgar de maneira arbitrária, discriminatória ou abusiva, menos ainda por “clemência”. Se não era uma decisão com o formato que dispõe o artigo 381, do CPP, não se pode garantir que é uma decisão sem fundamentação.
Mas, atualmente, com a inserção do quesito absolutório genérico pode-se assegurar, sem medo de errar, que as decisões do Tribunal Popular são arbitrárias e desprovidas de fundamentação, pois, agora, podem condenar ou absolver de acordo com seus próprios princípios, padrões ou convicções, sem nenhum compromisso com a prova apresentada e, sobretudo, indiferentes à ideia de sepultar odiosos preconceitos na busca de uma sociedade mais justa e igualitária. E a outra lenda generalizada, que não se sabe de onde veio, mas que se reproduz com a força da verdade, é o significado que os aplicadores da lei atribuem ao conceito de soberania, direito assegurado no artigo 5º, XXXVIII, alínea c, da Constituição da República.
Parece claro, no entanto, que a Constituição não atribuiu ao Tribunal do Júri o poder divino e incontrastável da imutabilidade de seus veredictos. O legislador, em harmonia com os preceitos constitucionais, atribuiu a ele mesmo — o Tribunal do Júri — o poder de alterar o mérito de suas próprias decisões. Ou seja, a proclamada soberania dos veredictos somente impede a alteração de mérito por outras vertentes do sistema de justiça, o que não significa concluir que suas decisões são onipotentes e irrecorríveis.
Mas há outras vantagens que recomendam a permanência do Tribunal do Júri. A resposta imediata da justiça criminal no julgamento popular desafia a tradicional morosidade na solução de conflitos — sem dúvida —, um dos maiores obstáculos para a efetiva distribuição da Justiça. Tudo isso sem contar que, ao menos no Brasil, o Poder Judiciário é único dos Poderes da República, no qual não há nenhum tipo de participação popular na sua composição.
Essas razões justificam o legislador constitucional ter conferido à sociedade a competência para julgar os crimes que atentam contra o bem maior do ser humano que é a própria vida. Os crimes dolosos contra a vida (homicídio; induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; infanticídio e aborto), especialmente o homicídio, são crimes passíveis de serem cometidos por integrantes de um grupo social que não vivem na marginalidade; sem antecedentes criminais e que marcam sua vida pelo trabalho e cumprimento às leis, mas que, por circunstâncias, podem dar vazão a seus impulsos mais primários e romper as regras do código de convivência social, e cometer um homicídio.
Com essa perspectiva, não é exagero afirmar que, se a expressiva maioria da sociedade não é capaz de praticar crimes contra o patrimônio, por exemplo, todos são capazes de matar, dependendo da situação em que estejam envolvidos. É verdade que há homicídios cuja maneira de comissão revela intensa perversidade e total ausência de freios morais do agressor. Mas esta não é a regra.
Sendo assim, sábia a decisão do legislador ao cometer ao povo o julgamento de um crime gravíssimo, que, com suas crenças e convicções, focalizando um drama crucial da natureza humana dará ao cidadão submetido a julgamento a decisão almejada pela sociedade, porque, gostem ou não, o povo é que detém, em última instância, o poder de criar e modificar o direito. Oxalá a presença do povo nos assuntos da Justiça se estenda para outros crimes que, por força do obsoleto culto à forma, restaram impunes, para grande frustração social.
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