Há cerca de duas semanas, o país foi surpreendido com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de cassar o mandato do Deputado Federal Deltan Dallagnol por considerá-lo inelegível em razão de haver pedido exoneração do Ministério Público Federal quando havia reclamações abertas contra ele no Conselho Nacional do Ministério Público pendentes de deliberação.
Essa decisão foi um tremendo golpe contra a nossa democracia, não só porque cassou os 344 mil votos que lhe conferiram o título de deputado federal mais votado do Paraná, mas também porque feriu o texto da Lei da Ficha Limpa, violou a Constituição, contrariou toda a lógica de nosso ordenamento jurídico, desrespeitou a própria jurisprudência do TSE e do Supremo Tribunal Federal e deixou no ar uma amarga sensação de casuísmo e injustiça, que contribui para o descrédito de nossas instituições.
Analisando a decisão na rádio CBN, o jurista Walter Fanganiello Maierovicth, crítico da Lava Jato, chegou a pontuar uma percepção sua de que essa decisão tinha um colorido vingativo, asseverando “tribunal é para fazer justiça e não vingança”. Tudo nesse julgamento discrepou do normal, do conteúdo à forma como ele se deu.
Também o ministro aposentado do STF Marco Aurélio Mello se confessou perplexo com a decisão tomada pelo TSE e foi enfático ao afirmar ser essa “uma interpretação à margem da ordem jurídica”.
Muitos daqueles que não gostam da Lava Jato ou, mais especificamente, do Deputado Federal Deltan Dallagnol celebraram a decisão como quem saboreia uma doce vingança. Cegos pelo rancor, estão subestimando os riscos para a democracia decorrentes do super-empoderamento e voluntarismo do Poder Judiciário. Os cidadãos precisam estar seguros e protegidos dos desmandos do Estado todo poderoso. O Poder Judiciário deve ser o refúgio do cidadão, não o seu cadafalso.
Um comentarista de uma emissora de TV chegou a proferir a boutade de que Deltan não poderia reclamar da decisão porque ele foi a favor da Lei da Ficha Limpa, além do mais, estaria provando de seu próprio veneno, tendo em vista supostos erros cometidos na Lava Jato. Primeiro, a Lei da Ficha Limpa, tal como editada, não foi aplicada, mas uma inédita, inusitada e inconstitucional interpretação da lei, que, só assim, poderia alcançar Deltan. Se Dallagnol cometeu ou não algum erro na Lava Jato é absolutamente irrelevante para o julgamento do TSE. Ali estava em questão tão somente sua capacidade eleitoral passiva, se ele podia ou não ser eleito. Nada mais. A mistura de alhos com bugalhos é muito útil apenas para aqueles que, à míngua de bons argumentos, querem desviar o foco da discussão sobre a juridicidade da decisão do TSE.
Examinemos a questão com mais detalhe. A Lei da Ficha Limpa estabelece que são inelegíveis “os magistrados e os membros do Ministério Público que (…) tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”. A lei é muito clara, apenas a existência de processos administrativos disciplinares (PAD) pendentes de julgamento produz o efeito da inelegibilidade no membro do Ministério Público que se exonera. Esse é o critério legal. Contra Deltan não havia nenhum PAD aberto, somente reclamações, que são procedimentos preliminares, ainda carecedores de investigações para apuração de eventuais materialidade e autoria de condutas em tese ilícitas.
O relator do caso no TSE ampliou o critério legal para considerar que outros procedimentos no CNMP, como as reclamações, também teriam o condão de produzir a inelegibilidade. No caso concreto, ele presumiu que Deltan Dallagnol agiu com fraude à lei, quando a lei muito claramente estabeleceu qual é o critério legal de fraude a ser combatida, a exoneração na pendência de processos administrativos disciplinares. Foi além, em um hercúleo esforço de futurologia, presumiu que os procedimentos preliminares ainda incipientes evoluiriam para processos administrativos disciplinares, negando a possibilidade de que tais procedimentos fossem simplesmente arquivados, como acontece com grande parte, senão a maioria, desses procedimentos.
O relator ainda considerou como indício de fraude o fato de Deltan ter-se exonerado alguns meses antes do prazo fatal de desincompatibilização estabelecido pela lei. Ora, o que a lei não admite é que a exoneração ocorra depois de vencido o prazo. Antes de vencido o prazo, a exoneração pode-se dar a qualquer tempo, desde que não haja processos administrativos disciplinares, até porque é direito potestativo do servidor pedir exoneração do cargo e se assim é, o exercício regular desse direito nem de longe pode ser tomado como indício de burla à lei. Ao contrário, foi o justo cumprimento da lei.
Reside aí não só a frontal violação ao texto da lei, mas a própria inconstitucionalidade dessa interpretação. Toda a fundamentação do Constitucionalismo se dá a partir da ideia de limitação dos poderes do Estado e proteção das liberdades e direitos do cidadão. Disso decorre a existência de princípios de proteção dos direitos e instrumentos de sua garantia, como o devido processo legal, a presunção de inocência, o princípio do in dubio pro reo, que no Direito Eleitoral assume a feição de in dubio pro suffragium. Daí porque, no campo abstrato normativo, sempre que houver um choque entre uma pretensão estatal de restrição de direito e o desejo manifesto de um cidadão exercê-lo, deve prevalecer sempre a interpretação que limita a restrição e amplia a proteção do direito. No campo fático, sempre que uma situação se apresentar duvidosa ou controversa quanto à sua submissão a uma norma restritiva de direito, deve prevalecer a liberdade de o cidadão exercer seu direito. Isso é um dos pilares do Direito, como já proclamava o antigo brocardo latino odiosa restrigenda, favorabilia amplianda. Essa é aliás a consagrada jurisprudência do próprio TSE em matéria de inelegibilidades.
Em caso de todo semelhante, envolvendo o atual Senador Sérgio Moro, julgado em 15 de dezembro de 2022, apenas cinco meses antes, o TSE consagrou mais uma vez a elegibilidade. Em ação movida por partidos políticos, alegou-se que o ex-juiz pedira exoneração da magistratura na pendência de procedimentos contra si no Conselho Nacional de Justiça e, por essa razão, seria inelegível. O relator do caso assinalou que “Os preditos expedientes correram sob a forma de Pedido de Providências e de Reclamação Disciplinar. É forçosa, portanto, a conclusão pela ausência de instauração de Processo Administrativo Disciplinar, elementar reclamada pela legislação eleitoral para a configuração do impedimento temporário. Isso porque não é qualquer espécie de procedimento disciplinar que leva à aplicação de penalidades ao magistrado.” E concluiu, realçando a pacífica jurisprudência do TSE: “É iterativa a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido de que normas delineadas na Lei de Inelegibilidade (LC nº 64/1990), por serem de ordem restritiva, também devem ser interpretadas restritivamente, sob pena de se incorrer em indevida analogia, desnaturando o comando legal.” Nada justifica que apenas cinco meses depois, interpretação diametralmente oposta seja adotada. Curiosamente, o relator do caso envolvendo Deltan Dallagnol acompanhou o voto do relator do caso atinente a Sérgio Moro.
Ainda que a nova interpretação, mais restritiva, pudesse ser tida como constitucional e razoável, há outro obstáculo intransponível para sua aplicação ao caso do Deputado Federal Deltan Dallagnol. Nova interpretação em matéria de eleitoral somente pode ser aplicada a eleições que ocorram a partir de pelo menos um ano de sua adoção, isto é, essa inusitada interpretação dada pelo relator e sufragada pelo colegiado do TSE somente poderia ser aplicada a situações concretas relativas a eleições que ocorram a partir de maio de 2024.
Além do conteúdo inconstitucional da inovação adotada e de sua indevida aplicação retroativa a este caso referente às eleições de 2022, chamou a atenção também a forma como o julgamento ocorreu. Em pouco mais de um minuto, o processo foi apregoado, relatado e votado pelo Plenário do TSE. Como é possível que uma tese inovadora, contrária a tudo o que sempre se fez e se defendeu no TSE, seja sufragada assim, sem nenhuma discussão, sem sequer sua exposição oral pelo relator na sessão? Repita-se, apenas cinco meses antes, o TSE decidira exatamente o oposto. Essa forma apressada de julgar algo tão inovador quanto gravoso passa a impressão de que houve uma discussão interna prévia, longe do público e, portanto, fora do momento e do lugar onde se deveria dar tal discussão, que é na sessão plenária do TSE. Para isso serve a sessão que a Constituição exige que seja pública.
Como se trata de matéria eminentemente constitucional, há ainda a possibilidade de revisão do caso pelo STF em sede de Recurso Extraordinário. Resta saber quais valores serão protegidos e consagrados pela Corte que tem o dever jurídico, ético e moral de defender os cidadãos brasileiros dos abusos do poder estatal em todas as suas formas, incluída eventualmente a forma judicial.
*Júlio Marcelo de Oliveira, procurador de Contas junto ao TCU e membro da Diretoria do Movimento do Ministério Público Democrático
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a)
Deixar um comentário