Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser * 07 DEZEMBRO 2023 | 9min de leitura

A Constituição Federal expressamente prevê a proteção ao meio ambiente[1].

No nosso ordenamento jurídico, “os animais de quaisquer espécies em fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha (art. 1º da Lei nº 5.197/1996).

De seu turno, a Lei Federal nº 9.605/1998 estabelece sanções de natureza penal e administrativa a quem pratica atos lesivos ao meio ambiente, como no caso de guarda de espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente (artigo 29).

Ainda, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais da Organização das Nações Unidas prevê, em seu artigo 10, que “nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem. A exibição dos animais e os espetáculos que os utilizam são incompatíveis com a dignidade do animal.

Com frequência, há notícias de aves da fauna silvestre mantidas em cativeiro, sem a devida permissão, licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, embora os infratores apresentem justificativas, como ignorância ou desconhecimento da lei e o “admirar do canto dos pássaros”.

Além de ninguém se escusar de cumprir a lei, alegando que não a conhece (artigo 3º da LINDB), para configuração da responsabilidade civil não se exige a consciência da ilicitude.

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Consiga-se, ainda, que a responsabilidade civil pelo dano ambiental é objetiva, conforme disposto no § 3º do artigo 225 da Constituição Federal[2] e no § 1º do artigo 14 da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – LPNMA (Lei nº 6.938/81)[3].

A manutenção do aprisionamento de aves silvestres provoca um presumido dano ambiental, pois, além do sofrimento a elas imposto, ainda deixa de disseminar sementes, cerceia a procriação, provoca risco de manutenção da espécie e desequilíbrio ecológico.

Nesse sentido:

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL. Capivari. Posse em cativeiro de espécime da fauna silvestre nativa: 1 papa-capim, 1 trinca-ferro e 1 curió. Dano ambiental. Reparação. – 1. Infração ambiental. O art. 24, § 3º, III do DF nº 6.514/08, reproduzido pelo art. 21, § 3º, III, da Resolução SMA nº 32 de 11-5-2010, diz ser infração contra a fauna a simples posse em cativeiro de espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade ambiental competente ou em desacordo com a obtida. – 2. Dano ambiental. O dano ambiental decorre ‘in re ipsa’ da apreensão e mantença em cativeiro dos espécimes da fauna silvestre, pois protegidos pela lei e participantes de um ciclo vital interrompido pelo cativeiro. Presumida a degradação ambiental do simples fato descrito, cabia ao réu, nos termos do art. 373, II do CPC, a prova excludente da responsabilidade civil, seja pela licença ambiental que admite não existir, seja pela comprovação da inexistência do dano ambiental, que não veio aos autos. Precedentes das Câmaras Ambientais. – Procedência. Recurso do réu desprovido”[4].

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL – POSSE DE PÁSSAROS SILVESTRES EM CATIVEIRO – OCORRÊNCIA – DEMONSTRAÇÃO DA INFRAÇÃO E DA AUTORIA – INDENIZAÇÃO APURADA PELO LAUDO PERICIAL – SENTENÇA DE CONDENAÇÃO MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO. Tendo sido comprovado a posse pela ré de aves silvestres em cativeiro, em desacordo com a legislação ambiental pertinente, configurado o dano ambiental, o que dá ensejo à responsabilização da requerida, que deverá arcar com a indenização apurada no laudo pericial produzido e destinada ao Fundo Estl de Reparação de Interesses Difusos e Coletivos Lesados. Recurso não provido”[5].

Além disso, ainda que as aves sejam originárias de criação em cativeiro, estamos diante de dano ambiental, persistindo a responsabilidade pelo ato ilícito praticado e as sanções estabelecidas em lei.

Cabe frisar, também, que o ônus da prova nas ações ambientais é, em regra, do poluidor que tem todas as prerrogativas constitucionais asseguradas no art. 5º, incisos LIV, LV e LVI da Constituição Federal. Entretanto, apesar de titular de tais prerrogativas, havendo lesão ou ameaça a direito material de natureza ambiental o poluidor já sabe desde o início que é obrigado a provar tudo o que for possível e interessante para o desfecho da questão, não podendo ao final da ação alegar cerceamento de direito de defesa até porque sabia quais eram as normas diante de todo o regramento do processo ambiental.

Além disso, inverte-se o ônus da prova nas demandas ambientais primeiro porque o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de responsabilidade e interesse público, até pela sua natureza jurídica de bem difuso, pertencente a todos de forma indistinta, bem como, porque a responsabilidade sobre os danos causados é objetiva, de acordo com o disposto no artigo 14 da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, independendo de comprovação de culpa do agente: basta que se prove o dano e o nexo de causalidade, para que haja responsabilização do agente. Por essas razões, a inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental (cf. Súmula 618/STJ)[6].

E como lembra EDIS MILARÉ[7], “a incerteza científica milita em favor do ambiente, carregando-se ao interessado o ônus de provar que as intervenções pretendidas não trarão consequências indesejadas ao meio considerado”.

Dessa forma, é perfeitamente subsumível a essa situação de aprisionamento de aves silvestres, o Princípio da Precaução, um dos princípios basilares do Direito Ambiental, incorporado ao Direito Ambiental na “Conferência da Terra” ou ECO 92, o qual foi “inscrito expressamente na legislação pátria através da “Conferência sobre Mudanças do Clima”, acordado pelo Brasil no âmbito da Organização das Nações Unidas por ocasião da ECO 92, e ratificada pelo Congresso Nacional via Decreto Legislativo 1, de 3 de fevereiro de 1994″[8].

Ademais, o artigo 4º da Lei nº 6.938/1981 estabelece que a Política Nacional do Meio Ambiente visará: “VII – à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, e ao usuário, de contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”. O § 1º do art. 14, por sua vez, dispõe que “sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente”.

E conforme o artigo 3º, IV, da Lei nº 6.398/1981, entende-se como “poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”.

Portanto, não se pode manter em cativeiro espécimes silvestres sem permissão, licença ou autorização para divertimento, revelando-se a condenação imperativa.

No mais, não há previsão legal para a concessão de perdão judicial, destinando-se a indenização a reparar o dano ambiental causado, além de possuir caráter educativo, não se confundindo com a responsabilidade penal[9].

 [1]”Art. 225 da CF/88: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O parágrafo 1º do referido artigo 225 dispõe que “para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público…inciso VII – proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

[2]”Art. 225, § 3º da CF: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

[3]”Art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81: Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente”.

[4] TJSP, Apelação Cível nº 1000495-45.2020.8.26.0125, a 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, Rel. Des. Torres de Carvalho, j. em 19.08.2021.

[5] TJSP, Apelação Cível nº 3003380-42.2013.8.26.0125, 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, Rel. Des. Paulo Ayrosa, j. em 14.02.2020.

[6] REsp n. 1.818.008/RO, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13/10/2020; AgInt no TP n. 2.476/RJ, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 1/9/2020; AgInt no AREsp n. 1.373.360/PR, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 14/10/2019; e AgInt no AREsp n. 1.311.669/SC, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 3/12/2018.

[7] Direito Ambiental, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 103.

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[8] Ibidem, p. 103/104.

[9] CAPÍTULO V

DOS CRIMES CONTRA O MEIO AMBIENTE

Seção I

Dos Crimes contra a Fauna

Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:

  • 1º Incorre nas mesmas penas: III – quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.
  • 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.

*Maria Fátima Vaquero Ramalho Leyser, procuradora de Justiça / Ministério Público do Estado de São Paulo e associada do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD

Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica